domingo, 19 de dezembro de 2010

FÉ É GRAÇA NA SOCIEDADE DO NARCISISMO

“Pureza de coração é desejar uma coisa só...”
Sören Kierkegaard

A primeira coisa que vi na TV, nessa manhã de domingo (19/12), foi uma matéria realizada numa igreja evangélica de Brasília, relacionada à celebração de uma de suas “campanhas”, cujo mote central era o compromisso que Deus tem com a realização dos sonhos e desejos das pessoas. Celebrava-se a realização desses desejos alcançados em 2010, e projetava-se 2011 como um ano de profundas e maiores vitórias e realização de outros tantos desejos. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

DISCUTINDO POLÍTICAS PÚBLICAS E HOMOFOBIA

Recebi o vídeo abaixo de um amigo, tratando do tema das políticas públicas ligadas à homofobia. Assista ao vídeo, e logo abaixo segue meu comentário.






Meu caro irmão Fulano de Tal!

Que bom vê-lo de volta interessado em dialogar e suscitar reflexões. Vamos a elas.

Em minha opinião, as políticas públicas relacionadas aos Direitos Humanos -- e o direito à diversidade da experiência sexual é um Direito Humano -- servem justamente para dissolver a dicotomia homofobia X heterofobia. Elas objetivam justamente fazer com que esses embates se tornem supérfluos, pois numa sociedade onde a diversidade e o respeito são amplamente valorizados, as fobias não fazem mais sentido.

Também acho que não se trata de heterofobia. O que temos, de fato, é uma heteronormatividade. Temos uma sociedade que é heteronormativa, isto é, uma sociedade em que os padrões heterossexuais são considerados naturais, e as demais manifestações da sexualidade humana são consideradas desviantes dessa norma dita natural. Independentemente de acharmos isso certo ou errado, peço-lhe que me acompanhe com calma nesses raciocínios:

1 - Você concorda comigo que a heteronormatividade -- isto é, a visão de que a heterossexualidade é o padrão natural da sexualidade humana -- é um legado religioso e cristão no Ocidente? Sem colocar a verdade disso em questão, todos nós concordamos que foi com o Cristianismo, enquanto uma das matrizes culturais do Ocidente, que aprendemos acerca dos papéis sexuais. Em psicologia nós diríamos que fomos todos "subjetivados" a partir de uma concepção heteronormativa, de tal maneira que isso tornou-se nossa "verdade" e "norma". Não conseguimos aceitar de jeito nenhum que existam outros pontos de vista diferentes disso. Portanto, mais do que algo que está inscrito em nossos corpos, nós todos aprendemos sobre os papéis sexuais com o Cristianismo. Nossas sociedades, de modo amplo, também têm sido subjetivadas há dois mil anos à luz dessa compreensão.

2 - Desde 1890 nosso país tornou-se um estado sem religião oficial, ou seja, laico e democrático de direito. Tudo que um estado moderno de direito faz na condição de estado laico, é feito a partir de bases puramente seculares, humanistas, ideológicas, fundadas numa compreensão do ser humano que às vezes destoa das concepções religiosas. Sobretudo ações como essa citadas no vídeo, não nascem de um estalo da cabeça de alguém. São o produto de lutas intensas, demoradas, de grupos inteiros que se consideram marginalizados. Num estado onde não existem normatividades ditadas pela religião, esses grupos têm todo direito de resistir e fazerem-se ouvir na sua compreensão acerca do que é o ser humano. As políticas públicas são o único meio de esses grupos terem ouvidas suas opiniões. Ou também achamos que eles devem permanecer calados em seus guetos?

3 - E o tal "kit-gay"? Perceba Fulano de Tal que a própria estigmatização do material como um "kit gay" (não é esse o nome do material!) já nos impede de tratar a questão de forma racional, pois de saída já está banhada em preconceitos. Mas eu diria, como alguém que estudou e debateu o programa Brasil sem Homofobia do governo federal, que o objetivo da cartilha não é doutrinário. Também não é impor uma homonormatividade, isto é, não é substituir a heterossexualidade pela homossexualidade. Não é fazer discípulos gays. O objetivo da cartilha é combater o preconceito frente a diversidade sexual, que todos nós aprendemos na infância. É fazer frente à naturalização da heterossexualidade. Repito: num estado sem normatividade religiosa, isso é perfeitamente possível. Sei que os embates são inevitáveis, por conta da cultura de nossa sociedade, que a espelho da cultura das igrejas, é abertamente preconceituosa. Mas, tomados os devidos caminhos dos mecanismos democráticos, projetos dessa natureza são perfeitamente cabíveis em estados como o Brasil. Acho até que são desejáveis!

4 - E as crianças? Bem, como eu disse, é justamente na infância que aprendemos a ler o mundo. É na infância que internalizamos a maioria das categorias com as quais damos sentido ao mundo. Os papéis sexuais, e no caso a heteronormatividade, são assimilados na infância via educação, pois não estão dados na nossa "natureza". Minha opinião é a de que, a depender de como o material possa ser utilizado com essas crianças, ele pode ser extremamente proveitoso. Pode degenerar em promiscuidade? Pode sim! Mas nós, heterossexuais, repetidamente degeneramos em promiscuidade também. Portanto, se o material for usado para fomentar processos educativos que estimulem o respeito pela diversidade, acho que chega numa boa hora. No mais, só devem estar preocupados os pais que não educam seus filhos em casa, deixando tudo nas costas da escola.

Bem, se a coisa toda está certa ou errada, que cada um decida.

Espero ter sido claro, pelo menos. Desculpe a prolixidade. Me curo disso algum dia.

Abraços meu irmão! 

Paulo

sábado, 11 de dezembro de 2010

RELIGIÃO E SEXUALIDADE


Para mim, o maior legado de Sigmund Freud, mais do que a amplitude do sistema psicanalítico, é fazer-nos tomar a sexualidade a sério, sem os atavios hipócritas com que ela é tratada, sobretudo em certos ambientes cristãos. Por conta dessa contribuição, a psicanálise nem precisaria ter razão no que diz.
Eu não tenho certeza, mas suspeito que a psicanálise tenha sido o primeiro discurso sobre a sexualidade humana que ganhou status paradigmático, depois dos discursos sobre a sexualidade construídos pela Igreja Cristã. Há entre esses dois discursos infindáveis divergências. Nem de perto nos compete listá-las aqui.
Também considero que Michel Foucault tenha dado enorme contribuição quando se trata de pensar no sexo. Porque comumente nossa atenção volta-se para os problemas da repressão. Até mesmo a psicanálise dedica boa parte de sua atenção ao problema da repressão sexual, e das conseqüências que dela advém. Foucault trabalha com uma teoria do poder onde a “hipótese repressiva”, como ele a chama, não é o centro do problema. Para ele, o problema é justamente o oposto. A Igreja Cristã – ou o “poder pastoral”, em sua expressão –, generalizando a prática da confissão para o povo leigo, promoveu uma “incitação aos discursos” sobre a sexualidade, discursos esses ausentes na cultura ocidental. No lugar da repressão, Foucault centra sua atenção na torrente de discursos sobre o sexo incitados pelo dispositivo da confissão, levado a cabo pelo poder pastoral. Portanto, em vez de nos perguntar “por que reprimimos a sexualidade?”, deveríamos perguntar “que tipo de discursos nós produzimos sobre a sexualidade?”.
É com esse espírito que eu desejaria contar um caso pitoresco, desses que ilustram como os discursos sobre a sexualidade permanecem sendo um fantasma com que nós, cristãos, vamos ter que conviver por muito tempo. Meu desejo nesse texto, portanto, é muito mais cômico/polêmico que informativo.
Naqueles dias, a moda evangélica eram as vigílias feitas nos montes. Os sujeitos aqui implicados eram todos ligados a uma igreja muito tradicional, onde as práticas pentecostais eram tacitamente confrontadas. No entanto, movidos pela subversão e pela curiosidade em relação às experiências místicas, lá estavam eles, todos os dias a subir o monte de oração. O grupo era grande. Devia ter entre vinte e vinte e cinco jovens, todos muito ávidos pelas experiências carismáticas acerca das quais se ouvia falar serem abundantes entre os pentecostais. O falar em línguas estranhas, as revelações, as curas de enfermidades, as manifestações no corpo, e todas essas manifestações visíveis eram uma espécie de atestado da presença de Deus.
Aquele grupo vivia num ambiente onde a reflexão, a doutrina, a pregação, o ensino, a pedagogia, eram privilegiadas. Mas eles queriam mais! Queriam ver, ouvir, tocar, sentir, beber diretamente na fonte do sagrado, sem as mediações sacramentais clássicas do protestantismo histórico, cuja ênfase está na palavra. Estavam cansados de palavras. Por contraditório que pareça quando formulado conceitualmente, o que eles desejavam era a materialização da palavra pelas vias do espiritual.
Para comprovar a tese de que as relações de poder estão capilarizadas por todos os agrupamentos humanos, aquele grupo também tinha seus líderes. Os líderes eram auto-promovidos. Deviam ser reconhecidos pelos demais com base na qualidade da “vida espiritual”. Em termos concretos, os líderes eram reconhecidos entre aqueles que cultivavam a leitura e a meditação cotidiana das Escrituras, a oração constante, a manifestação de dons carismáticos, a capacidade de bem influenciar, o cuidado com a moralidade (que sempre foi sinônimo de cuidado com a sexualidade).
Em meio aos devaneios carismáticos, o grupo havia inventado algo chamado “ritual da confissão”. Era o momento em que cada membro do grupo deveria confessar os erros cometidos na semana, a fim de que os líderes pudessem orar e pedir purificação sobre os culpados. Acontecia assim: eles se arrumavam num grande círculo com todos em pé; os líderes iam nomeando os erros por gradação de gravidade, daqueles que eram considerados “menos graves” até os “mais graves”; os que iam se reconhecendo naqueles erros, iam dando um passo à frente e se ajoelhando no centro círculo, a fim de que pudessem receber a oração purificadora dos líderes.
Num desses dias, ocorreu o seguinte:
A seção começou com a nomeação dos pecados menos graves.
— Quem não fez a leitura das Escrituras essa semana, por favor, dê um passo à frente e ajoelhe-se!
Dois sujeitos o fizeram.
Descendo até os pecados mais graves, um dos líderes continuou:
— Quem agrediu verbalmente outra pessoa e ainda não lhe pediu perdão essa semana?
Mais dois sujeitos deram um passo à frente e se ajoelharam para receber a oração purificadora.  
O processo continuou, de tal maneira que culminou na derradeira pergunta, considerada no dia como sendo o pecado mais grave. Por acaso, era no campo da sexualidade:
— Quem se masturbou essa semana e ainda não se redimiu?
Fez-se um silêncio grave...
Depois de alguns minutos, todos no grupo, até os líderes, ajoelharam-se a fim de receberem a oração. Juntaram-se todos no centro do círculo, e ajoelhados oraram uns pelos outros, de forma que naquele dia não houve quem não confessasse a necessidade de remissão. Nem mesmo os líderes. Pelo menos é louvável o fato de que todos tenham sido honestos!
Obviamente, este é um caso pitoresco. Ao mesmo tempo em que representa a comicidade de uma situação inusitada, também pode ser encarado como um conto emblemático que sinaliza para um problema a ser pensado com cuidado. Sinaliza para a maneira insistente com que as igrejas cristãs lidam com as questões da sexualidade humana. E não estamos pensando na idéia da repressão, mas, em sintonia com Foucault, nos discursos que se produzem sobre a sexualidade nesses ambientes.
Correndo o risco de estar exagerando, eu diria que em certos ambientes eclesiais o discurso sobre a sexualidade é único que deve ser levado a sério. Dificilmente se pode levar a sério os imperativos morais para “não roubar”, “não mentir”, “amar o próximo”, “controlar a língua” etc. Todos esses são imperativos morais, recorrentemente presentes no discurso cristão, mas que não devem ser levados a sério pois os próprios proponentes não os levam. Tratam com parcimônia os que roubam (quando não são eles mesmos os ladrões); não se importam com a mentira (quando não são eles mesmos a mentir e a acobertar mentiras); tratam com parcimônia os que explicitamente desobedecem o mandamento do amor ao próximo (quando não são eles mesmos que odeiam); tratam com parcimônia o mau uso da língua (quando não são eles mesmos a fazê-lo). Dificilmente os processos disciplinares das igrejas punem essas transgressões. Dificilmente esses pecados têm força para comprometer toda a vida de uma pessoa cristã.
Mas não é assim com o sexo!
Rubem Alves dizia que as igrejas não toleram os pecados do pensamento, isto é, as heresias. Acredito que isso já saiu de moda, posto que a única coisa imperdoável aí são as transgressões no campo da sexualidade. São elas as campeãs nos processos disciplinares. São elas as únicas com o poder de macular a reputação de toda uma vida.
A sexualidade – em suas formas naturalmente pré-concebidas – é um campo tão inegociável para certos ambientes cristãos, que ela (junto com o tema do aborto) foi capaz de contestar um dos grandes fenômenos da Modernidade: o confinamento da importância da religiosidade à esfera privada da vida. Foi em defesa dos tabus e dogmas envolvendo a diversidade da experiência sexual que uma grande parcela das igrejas cristãs no Brasil invadiu a esfera pública, e quase determinou a pauta do último processo eleitoral/presidencial. Somente o sexo poderia reconduzir a militância cristã às ambiências públicas como vimos na última eleição presidencial. Somente o sexo poderia mobilizar a militância de tradições marcadas historicamente pela ausência na esfera pública e pelo desinteresse no debate político no Brasil. Só o sexo deve ser levado a sério no discurso dessas respectivas tradições. Não pela verdade/mentira desses discursos. Mas pelo potencial de ação que eles ajudam a suscitar.
Que volte a moda das vigílias nos montes. E que o ritual da confissão se dissemine entre nossos melhores líderes. Com a honestidade dos sujeitos acima descritos, obviamente.
Textos mencionados
ALVES, Rubem (2003). Religião e repressão. São Paulo: Teológica
FOUCAULT, Michel (1988). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1
FREUD, Sigmund (1996). Três ensaios sobre sexualidade. In: Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O GALO PROFETA E O CANTO DA VAIDADE

Havia um terreiro onde a injustiça e a desigualdade imperavam soltas entre os galos. A vida da maioria dos galos era muito ruim, porque um pequeno grupo se considerava proprietário do poleiro, das cercas, da organização do terreiro, de tal maneira que a população, em sua maioria, consistia em galos pobres. 


Basicamente, apenas dois tipos de canto de galos se faziam ouvir naquele lugar. Ou canto forte e estridente dos poucos galos que mandavam, ou os piados frouxos da maioria dos galos pobres. O piado dos galos pobres era tão fraco que mal podia ser ouvido. Não chegava sequer a ser ouvido pelos galos ricos, que continuavam tranqüilos como os únicos donos do pedaço.

- “A vida é assim: há os que nasceram para mandar e os que nasceram para obedecer”. Diziam alguns de entre os galos pobres.

- “Tudo nessa vida é como Galeus quer”. Diziam outros galos conformados.

Houve um dia, entretanto, que um galo novo chegou àquele terreiro. Ao notar a situação de dificuldade que os galos pobres tinham de enfrentar, decidiu, corajosamente, cantar na mesma altura dos galos ricos. Subia no poleiro e de lá cantava alto, bonito, estridente, chamando os galos pobres a tomarem pé da situação. Seu canto era tal que podia ser ouvido pelos galos ricos, que, obviamente, não gostaram nadinha daquela novidade.

- “Quem é este galo para desafiar nossa autoridade?” Perguntavam alguns de entre os galos mandões.

- “Quem lhe deu tamanha autoridade? Em quem ele confia?” Indagavam outros.

- “É pecado contestar as autoridades constituídas”. Diziam alguns de entre os próprios galos pobres.

E aquele galo, sozinho, repetia todos os dias o seu canto de defesa dos galos pobres e de denúncia da perversidade dos galos ricos, únicos a gozarem boa vida no terreiro, com milho, ração, e até pão de ló. Por muito tempo aquele galo, defensor dos galos pobres, cantou sozinho. Tanto eram o medo e o pavor que os galos pobres tinham dos galos ricos e poderosos, que foi difícil encontrar alguém que o quisesse acompanhar em sua atitude corajosa e destemida. Mas ele nunca temeu o fato de cantar sozinho. Todos os dias, logo cedo, como é costume nos terreiros, todos ouviam seu canto forte de defesa dos direitos dos galos pobres.

- “Como ele é corajoso. Como é admirável a sua coragem!” Diziam alguns poucos galos pobres.

- “Quero ser amigo dele. Quero aprender com ele a ser assim, corajoso e destemido”. Diziam outros.

E sua fama ganhou o terreiro. A admiração por seu canto diferente se espalhou por todo canto, até para além das cercas daquele terreiro. Era tanta a sua fama, que galos de outros cantos queriam ouvi-lo cantar. E ele se pôs a cantar aqui e acolá. E quanto mais cantava mais requisitado era a cantar em diferentes lugares. Não sem méritos! Seu canto era mesmo diferente daqueles que se costumavam ouvir pelos terreiros afora. Era um canto cheio de vida, de coragem, de vontade de justiça, de paixão pela liberdade. E por mais que seu canto encontrasse também a incompreensão de muitos entre os galos pobres, acostumados àquela vida sem autonomia, havia sempre galos em todo lugar dispostos a ouvir seu canto diferente.

Um dia, quando ninguém esperava, uma coisa inusitada e inesperada aconteceu no terreiro. Outros galos começaram a querer cantar com a mesma intensidade e beleza daquele galo corajoso. Foram se dando conta de que se “uma andorinha só não faz verão”, um galo só também não. Afinavam todos os dias o gargalo, e iam ensaiando cantos diferentes, cheios de vida, de paixão pela liberdade, e de vontade de reverter aquela triste situação de dominação de uns poucos galos sobre a maioria do terreiro. Juntaram-se, e foram compondo canções em conjunto. Queriam formar um coral de galos corajosos. Não eram muitos, mas queriam que seu canto fosse forte, a ponto de ser ouvido por aqueles galos que se consideravam os únicos donos do terreiro.

Surpreendentemente, aquele primeiro galo corajoso, destemido, de canto firme e forte, se ufanou. Nunca quis fazer parte do coral daqueles novos galos, dispostos a cantar novas canções de liberdade. Queria continuar a cantar seu canto sozinho. Ninguém entendeu direito o porquê daquilo, mas era triste que aquele galo corajoso, motivo de inspiração para todos os demais que vieram depois dele, não quisesse se juntar ao coral para engrossar os cantos de liberdade.

- “Meu canto forte e estridente não pode se misturar ao de ninguém”. Dizia ele.

E o terreiro permaneceu daquele mesmo jeito. Uns poucos galos viviam no maior conforto, mandando e desmandando na vida dos demais. Tristemente, todos se deram conta de que o canto daquele galo corajoso, mais do que o canto da liberdade, era o canto da vaidade de ser o único defensor dos galos pobres e oprimidos.

Houve um galo, Qoelet, que num de seus cantos dizia que “tudo é vaidade”. É curioso que a defesa da justiça seja também ração para a vaidade de galos. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

VIGÍLIA DE PROTESTO PELA SEGURANÇA PÚBLICA EM ALAGOAS

Olá todos(as)!

À nossa reunião de ontem (25/11) compareceram eu (Paulo), Franqueline, Ascânio e Jorge. Primeiro, discutimos acerca de algumas repercussões que os casos dos assassinatos dos moradores de rua de Maceió têm tido na mídia. Ascânio nos apresentou alguns números que não estão sendo divulgados, e que apontam para uma gravidade muito maior do problema da segurança pública no estado. Concluímos essa parte convencidos de que, embora o problema com os moradores de rua seja o foco agora, nossa atuação deve levar em conta todo o contexto precário no qual se encontra a segurança pública em Alagoas, com um foco especial nas políticas públicas de combate às drogas, tratamento dos drogadictos e de atenção especializada aos moradores de rua.


Logo após, pensando na formatação da vigília, discutimos um pouco acerca da necessidade de ampliação das instituições que participarão tanto da vigília quanto da construção da mesma. Houve consenso quanto à idéia de que entidades não-cristãs (movimentos sociais, religiosos, sindicais, etc.) devem ser convidadas à construção e participação na vigília. No entanto, Franqueline achou por bem manter uma rubrica cristã-evangélica na construção do evento, o que de fato é inevitável, já que nós, representados por entidades cristãs, temos sido os protagonistas dessa ação. Na prática, isso significa que o Manifesto continuaria a ser de entidades cristãs, embora a vigília tenha a participação de grupos e movimentos não propriamente cristãos.


A próxima reunião, já visando a construção da vigília, ficou para o dia 06/12, no Colégio Batista, às 19h. Para essa próxima reunião desejamos ter já a presença dos representantes de algumas instituições que conseguimos listar. Primeiro, convidaremos os representantes de todas aquelas instituições que até aqui já assinaram o Manifesto (exceto aquelas de outros estados). Além daquelas entidades cristãs, vamos convidar outras como a OPEAL (Ordem de Pastores Evangélicos de Alagoas), Igreja Anglicana, a Arquidiocese de Maceió e o CEBI.


Entre os demais movimentos sociais, sindicais e religiosos que listamos na reunião para serem convidados estão o MST, CPT (Comissão Pastoral da Terra), Anajô, Cojira, GUESB (Grupo União Espírita Santa Bárbara – Mãe Neide), UFAL em Defesa da Vida (Drª Ruth Vasconselos), FALC, NADEC, CUT (Central Única dos Trabalhadores), SINTEAL e SINPOL (Sindicato de Policiais). Lembramos que todas essas entidades serão convidadas a construir, juntamente conosco, a vigília.


Por último, começamos a cogitar acerca do dia e lugar de realização da vigília. Foi um consenso a posição de que ela deve ser realizada no centro da cidade. A Praça dos Martírios, a nosso ver, é o lugar que reserva um poder simbólico maior, por três razões: é o local do Palácio do Governo, já foi palco de lutas históricas no estado de Alagoas e todos os dias aglomera um grande contigente de mendigos e moradores de rua.


Contamos com as contribuições (sugestões, críticas, etc.) de todos. Quem souber de mais entidades cristãs ou não-cristãs, por favor, sinta-se à vontade para indicá-las e para convidá-las. Franqueline ficou de redigir essa carta-convite que faremos circular.


Grande abraço a todos(as)!


Vamos trabalhando!


Paulo

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS


Olá todos(as)!

Compartilho o esboço de minha participação na Jornada Religare "Mídia e religião", organizada pelo prof. Dr. Dalmer Pacheco, no dia 23/11, na UFAL.

Abraços!

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS*
Tensões e desafios no Brasil contemporâneo

Tensões entre pensamento religioso e Modernidade
Gostaria de focar minha fala na relação entre intolerância religiosa e Direitos Humanos. Nesse sentido, penso que minha abordagem levará em conta uma perspectiva mais ampla do problema da intolerância religiosa, porque esta não se dirige somente a outras formas de crença religiosa, mas talvez, muito mais a outras formas de comportamento social que extrapolam a esfera da religião. Mas do que a simples manifestação de antigas querelas entre diferentes confissões religiosas, o problema da intolerância extrapola até a transgressão de certos Direitos Humanos, que são conquistas legítimas de nossas sociedades, pelo menos em estados democráticos de direito como o Brasil.
Os Direitos Humanos, obviamente, são uma construção da Modernidade Tardia. A igrejas cristãs, no entanto, têm tido enorme dificuldade de equacionar sua concepção religiosa do mundo com a concepção secularizada que é produto da Modernidade. Poderíamos citar aqueles que consideramos serem alguns dos produtos dessa relação mal digerida:
- o fundamentalismo religioso, que é uma reação às influências do conhecimento científico e sua abordagem do fenômeno religioso (tanto no campo ideológico quanto prático);
- a dificuldade de aceitar que certas conquistas de grupos e indivíduos, mais do que afrontas à religião alheia, são Direitos Humanos conquistados com luta e perseverança na arena democrática;
- as próprias manifestações de intolerância devem ser vistas como resquícios de uma mentalidade alicerçada na ideologia do pensamento único;
- mas também seria importante destacar os setores eclesiásticos (talvez somente algumas vozes isoladas) para quem a “maioridade do mundo” e a “secularização” não representam obstáculos, mas desafios com os quais as igrejas deveriam dialogar constantemente. Cito essas tendências no conjunto daqueles produtos da tensão entre igrejas e pensamento Moderno, justamente porque nas igrejas, os movimentos e indivíduos que propuseram uma postura dialógica frente aos desafios da Modernidade nunca foram aceitos. Alguns deles foram até perseguidos e exilados de suas funções.
Para mim, uma das grandes contradições disso tudo, reside no fato de que muitas dessas igrejas, sobretudo no Brasil, tenham ajudado a construir um estado laico, secularizado, propício à diversidade. Isso se deu num momento da história em que esses grupos eram minoria perseguida. Hoje, com status de religiões amplamente aceitas pelas massas, invertem a situação, sendo que elas agora se tornaram promotoras da intolerância aos grupos diferentes. 
Novas estratégias de enfrentamento na pós-modernidade
Nos dias atuais, estamos assistindo a um fenômeno novo, que, pela qualidade de sua novidade, ainda não tem sido muito bem pensado pelas ciências humanas. Me refiro à tentativa da volta do discurso religioso e de sua influência na esfera pública e na governamentalidade (M. Foucault) estatal. Lembremos que um dos efeitos produzidos na Modernidade é o exílio do papel da religião para a esfera pessoal da vida. A Modernidade confinou a importância da religião exclusivamente na condução pessoal da vida das pessoas, mas sem qualquer poder de influência na esfera pública.
Considero alguns casos emblemáticos desse retorno da religião à influência na esfera pública no ocidente. Um deles é o 11 de Setembro de 2001, assim como o próprio governo Bush (legitimado por uma plataforma explicitamente marcada por valores religiosos), e o último processo eleitoral no Brasil, onde o discurso religioso conservador quase determina a pauta de discussões das campanhas eleitorais. O que quero dizer, é que para além das práticas cotidianas de intolerância religiosa que se dão nas relações entre as pessoas, a esfera pública passa a ser um local de enfrentamento entre concepções religiosas conservadoras e o pensamento laico e secularizado da Modernidade.
Intolerância religiosa e Direitos Humanos
Tenho falado em Direitos Humanos de forma muito genérica, e agora gostaria de ser mais preciso. Primeiro, gostaria de nomear alguns deles:
- o direito à própria diversidade e pluralidade de expressões religiosas;
- o direito à diversidade da experiência da sexual;
- o direito à pluralidade étnica e racial;
- o direito à democratização da terra como habitação e meio de produção;
- entre outros, devidamente representados pelas respectivas políticas públicas de amparo a esses grupos.
Em segundo lugar, gostaria de perguntar: o que são esses Direitos Humanos?
- não são concessões, mas são produto de lutas levadas à cabo sempre por grupos minoritários de nossa sociedade;
- são o produto de possibilidades inerentes a qualquer estado moderno, laico, cujas bases da governamentalidade estatal devem estar apartadas de concepções religiosas de um grupo em detrimento dos demais;
- são conquistas formalmente construídas e representadas pelas políticas públicas, legitimadas pelos meios democráticos dos estados modernos.
Finalizando, o que eu gostaria de trazer para a discussão é o fato de que hoje o problema da intolerância religiosa é muito mais amplo do que as históricas querelas entre as diferentes religiões. A intolerância religiosa dirigida contra as religiões afro-brasileiras (ou contra qualquer outro grupo religioso), contra as pessoas LGBTS, contra os movimentos sociais articulados com a luta pela terra, deve ser encarada como um atentado contra direitos humanos fundamentais, que consideramos como conquistas legítimas dos respectivos grupos.
Para os grupos considerados como vítimas históricas do preconceito religioso, acho que estamos num momento extremamente favorável, já que cada formulação daqueles direitos que citei como Direitos Humanos e sua tradução como políticas públicas, vem acompanhado com um amparo legal de proteção a esses grupos.


* Esboço de palestra apresentada na Jornada Religare “Mídia e religião”, na Universidade Federal de Alagoas, no dia 23 de novembro de 2010.
** Teólogo e pastor batista.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

NEGRITUDE, RELIGIÃO E SOCIEDADE


Neocolonialismo religioso e racismo no estado de Alagoas
“Os gregos estavam tão acima de nós como nós estamos acima da raça negra”
(Augustus H. Strong – Teólogo norte-americano que formou a primeira geração de pastores batistas no Brasil)
Quando participei, há dois anos, como palestrante no encontro da Fraternidade Teológica Latino Americana (Setor Nordeste), lembro-me muito bem de ter sido indagado, durante o debate, acerca da ausência em minha fala das questões relacionadas ao racismo no estado de Alagoas. Obviamente, a questão me fora dirigida por conta de minha condição como teólogo negro. Na oportunidade, eu fazia uma leitura teológica da economia alagoana capitaneada pela indústria canavieira, denunciando-lhe a selvageria com que se apropria dos recursos naturais e com que acumula os meios de produção e a riqueza material produzida nesse estado.
Agora, mais de dois anos depois, e instigado pela proximidade do Dia da Consciência Negra, a pergunta do meu interlocutor volta com toda sua força. Ela tem extrema pertinência. O silêncio com que tratamos o tema é constrangedor. Isso porque já não restam dúvidas de que, no Brasil, produzimos as formas mais sutis de racismo do mundo, invisibilizadas pelo discurso do “mito da democracia racial”, mas perfeitamente visíveis na nossa estrutura social excludente e segregadora.
A branquitude, enquanto estratégia político-ideológica para os fins da hegemonia de determinadas visões de mundo, é uma das marcas explícitas da história da formação do povo alagoano. Seu correlato dialético e antitético é a negritude. Dialético e antitético porque a branquitude tem na negrutide uma necessidade, a fim de afirmar sua superioridade. Sem esse referencial dialético e antitético não haveria suporte para o discurso ideológico da hegemonia branca. Mas essa dialética não serve apenas para sustentar os discursos. Tem servido muito mais para dar o suporte material feito de braços e pernas trabalhadoras, sem os quais nenhuma superioridade pode se efetivar. Padre Antonio Vieira, num de seus sermões, dizia que o negro, após a derrocada da escravidão do índio, viria a ser “os pés e as mãos do senhor [branco]”.
O processo de formação do estado de Alagoas confunde-se, como todos devem saber, com a história da consolidação da agroindústria canavieira. E a consolidação desta, depois de encerrado o processo de dizimação das culturas indígenas do estado (mormente dos Caetés e dos Potiguaras), teve exclusivamente no sistema escravocrata africano o seu suporte laboral. Fernando Lira nos informa que “ao contrário do ocorrido com os índios, nem a igreja nem a coroa se opuseram à escravidão do negro. As ordens religiosas, como as beneditinas, estiveram até mesmo entre os grandes latifundiários de terra, que exploravam o trabalho escravo”. Os negros trazidos para Alagoas procediam majoritariamente de Angola e Guiné. Lira ainda nos diz que “no final do período colonial, Alagoas tinha uma população de 111.973 habitantes, dos quais 42.879 eram livres e 69.094 eram escravos”. Semelhantemente ao ocorrido na maior parte dos estados do Nordeste onde o ciclo do açúcar deixou sua marca, os povos negros comparecem como povos instrumentalizados em favor dos interesses político-econômicos das elites locais.
Esses fatos, amplamente conhecidos de todos – e é isso que torna dispensável uma descrição exaustiva dos mesmos –, são quase sempre apresentados como dados históricos sem nenhuma vinculação com a presente (des)estrutura social do estado de Alagoas. E minha tese fundamental neste artigo vai na direção de afirmar que a terrível desestruturação social de Alagoas tem no racismo um companheiro necessário e perene.
Para ficar com apenas um exemplo concreto de como o racismo tem na nossa atual estrutura sócio-político-econômica um lugar privilegiado, gostaria de mencionar os dados de uma pesquisa de 2003, realizada pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Utilizando dados do Censo 2000 do IBGE, aquele instituto de pesquisas revelava a existência de 1.850.000 pobres em Alagoas. Naquela época Alagoas tinha uma população geral de 2.800.000 habitantes, ou seja, 66% dessa população era considerada pobre. Desses pobres, 1.450.000 tinham procedência negra e índia (pardos, na infeliz expressão do IBGE). Em outras palavras, 78,3% dessa multidão de pobres eram pertencentes às matrizes negra, indígena e mestiça em geral. Seria essa correlação entre miséria e negritude/mestiçagem mera coincidência?
Como teólogo batista, não deixaria de perguntar pelo papel dessas igrejas nesse contexto. É amplamente sabido, como mencionado acima, que a Igreja Católica consentiu abertamente com o sistema escravocrata, e até se fez protagonista do mesmo, possuindo escravos africanos em algumas de suas ordens religiosas. Também é amplamente conhecido o famoso Quebra de Xangô em 1912, ocorrido em Maceió, quando as religiões de matriz africana foram terrivelmente perseguidas e sufocadas pelas autoridades políticas da época, dando origem à tradição do Xangô Rezado Baixo. De fato, tenho bastante curiosidade em saber como nosso protestantismo alagoano –, à época, junto com o protestantismo em todo Brasil, fervoroso defensor da liberdade religiosa promulgada em 1890 –, reagiu ao ver sufocadas as expressões de religiosidade africana neste estado. Teria o protestantismo alagoano defendido a liberdade de culto do Povo de Xangô, ou teria este corroborado a perseguição e o silenciamento desse povo negro?
Se os posicionamentos históricos do protestantismo em Alagoas forem considerados como estáveis, contínuos, e sem muitas alternâncias, responder à questão acima não será muito difícil.
O protestantismo no Brasil é multifacetado. Por isso é preciso deixar claro a quem se está fazendo referência. Neste artigo, nossas perguntas estão relacionadas àquela face do protestantismo brasileiro que vigorou como hegemônica até meados da década de 1980: o protestantismo de missão (onde se encontram os batistas).
Em todo o Brasil, a inserção do protestantismo de missão batista fez-se majoritariamente por intermédio das missões norte-americanas na segunda metade do século XIX. Alagoas, no entanto, registra uma peculiaridade em relação aos demais estados da federação. Aqui entre nós, diferentemente de outros lugares, a dependência da intervenção norte-americana permanece até os dias atuais. Parece seguro dizer que em nenhum outro estado brasileiro mais da metade dos templos batistas tenham sido subsidiados diretamente pelos norte-americanos, como ocorreu em Alagoas. Se estiverem certos aqueles que defendem que as missões protestantes norte-americanas representaram o braço religioso do neocolonialismo no Brasil, em Alagoas ainda estamos numa curiosa relação de submissão neocolonial no campo da religião. O estado de Alagoas parece possuir como peculiaridade a dificuldade de se libertar de relações patronais, como se vê claramente no campo da economia do açúcar, por exemplo.
Paulo D. Siepierski defenderia a tese de que a aversão religiosa de cunho cristão às manifestações culturais afro-brasileiras é somente a versão teológica do preconceito milenar direcionados a esses povos. Uma vez que ninguém nega o fato de que tais missões norte-americanas provindas do Cinturão da Bíblia (sul dos Estados Unidos) são profundamente racistas, compete-nos perguntar:
Ø Em que medida nosso protestantismo de missão (particularmente o batista) tem sido um dos bastiões do racismo no estado de Alagoas? A teologia e a prática das igrejas batistas ajudam a confrontar ou aprofundar o racismo em nosso estado?
Ø Em que medida a teologia e a prática dessas igrejas, assim como de seus mecanismos de educação, demonizam as expressões da religiosidade africana em Alagoas?
Ø Em que medida nossa ideologia religiosa funciona como força de contenção diante das expressões da negritude na cultura e na religião?
Ø A cultura negra se vê representada em nossos cultos? Caso não, por quê?
Ø Que representações sobre o “negro” e o “branco” estão presentes em nosso discurso religioso? Como esses conteúdos estão presentes na nossa pedagogia religiosa?
Se as chagas estruturais que afligem por tanto tempo a sociedade alagoana, refletidas nos piores indicadores sociais do Brasil, têm no racismo um companheiro necessário e perene, que contribuição estariam dando as igrejas protestantes à esta sociedade, com o trato que dispensam à cultura e às religiões do povo negro? Que efeitos colaterais nosso preconceito religioso contra a cultura e a religiosidade de matriz africana ajuda a produzir e corroborar em Alagoas?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

MANIFESTO CONTRA O EXTERMÍNIO DE MORADORES DE RUA EM MACEIÓ

MANIFESTO DE ENTIDADES CRISTÃS CONTRA O EXTERMÍNIO DE MORADORES DE RUA EM ALAGOAS


Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos
Mateus 5,6

Nós, representados pelas entidades cristãs que abaixo assinam este documento, desejamos nos dirigir a toda sociedade alagoana e a esta honrosa entidade, rogando-lhes que contribuam para uma intervenção contundentemente e comprometida com a apuração dos fatos envolvendo os assassinatos dos (até aqui) 31 moradores de rua em Maceió. Como entidades identificadas com o Evangelho da Vida (João 10,10), nos sentimos envergonhados por nosso estado estar sendo mais uma vez mencionado na mídia nacional como um lugar onde impera a cultura da morte. Entendemos, à luz de nossa fé, que cada pessoa humana, independente de sua condição de raça, credo, gênero, ou classe social, é imagem e semelhança do Criador (Gênesis 1,26-27), o que lhe confere total dignidade e valor. Ademais, cremos ainda que é dever dos estados democráticos fazer com que os Direitos Humanos sejam amplamente promovidos em favor de toda a sociedade.
Como entidades identificadas com o Evangelho de Jesus Cristo, desejamos manifestar nossa solidariedade às famílias dos 31 moradores de rua assassinados em Maceió, pois reconhecemos que a Boa Nova de nossa fé tem nos pobres um lugar privilegiado (Lucas 4,18-19). Neste sentido, unimos nossas vozes, em primeiro lugar, à Arquidiocese de Maceió na pessoa de seu Arcebispo Dom Antonio Muniz Fernandes, assim como a todas aquelas entidades e demais pessoas de boa vontade, para quem a vida é o dom mais precioso ofertado por Deus aos seres humanos. Reiteramos, portanto, nossa solicitação para que as entidades competentes não meçam esforços no sentido de oferecer à sociedade alagoana uma resposta rápida e uma intervenção urgente a fim de que cesse o clima de terror instalado nas ruas de nossa capital. Até quando nossas autoridades tratarão com parcimônia a cultura de morte que insiste em marcar o estado de Alagoas? Até quando os mais pobres, especialmente estes que agora são vítimas pontuais dos crimes de mando, permanecerão à mercê do Direito à Vida, que é o mais fundamental entre todos? Até quando nossas autoridades políticas tratarão o problema da segurança pública como um problema de poucos, em detrimento de todos os alagoanos e alagoanas?   
Com este manifesto, desejamos tornar público a toda sociedade alagoana nosso repúdio ao presente estado de coisas. Ele nos envergonha e nos enche de consternação. Os moradores de rua, vítimas dos presentes crimes na nossa capital, são filhos e filhas de Deus e nossos irmãos e irmãs. Todavia, tal vergonha e consternação com os últimos fatos decorridos não anulam nossa esperança numa mudança estrutural. A sede de justiça é uma marca do Povo de Deus (Mateus 5,6). Fomentados por ela é que concluímos este manifesto e esta petição, rogando mais uma vez a esta entidade para que, junto com as demais entidades competentes, contribuam para que “a justiça corra livre como um rio perene” em nossa querida Alagoas (Amós 5,24).

Solidariamente,

Fraternidade Teológica Latino Americana (FTL) – Núcleo Alagoas
Convenção Batista Alagoana
Ordem de Pastores Batistas do Brasil - Seção Alagoas
Aliança de Batistas do Brasil
Igreja Batista na Forene (Maceió)
Igreja Batista do Pinheiro (Maceió)
Igreja Batista em Penedo-AL
Igreja Batista Alvorada (Campo Alegre-AL)
Seminário Teológico Batista de Alagoas (SETBAL)
Evangélicos Pela Justiça (EPJ)
Madrugada do Carinho com Deus em Belo Horizonte
Ministério Vida (Guaratinguetá-SP)
Congregação Batista em Chã Preta-AL
Aliança Bíblica Universitária - Maceió

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!


Sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião
“Quem vê um pântano à luz da lua pode enganar-se: aquela lhe parecerá uma visão de paz. Mas, por baixo, não passa de podridão e lama em fermentação. Nós não queremos a paz dos pântanos, a paz enganadora que esconde injustiças e podridão”
(Dom Helder Câmara)
Marcos Monteiro havia dito em Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades, que Maceió nos permite visualizar o que está acontecendo em nosso planeta. Nessa cidade – segue Marcos – encontramos todos os problemas do nosso século, da prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência institucional. Se não me engano, Marcos Monteiro morou aqui na década de 1990. No entanto, sua intuição segue bastante atual. Maceió continua sendo uma vitrine interessante para se ver o mundo. Mais ainda para se ver o Terceiro Mundo! Ao modo de um ponto do holograma, Maceió hospeda em si toda a complexidade das lutas que se travam em muitas partes do mundo hoje.
Na manhã de hoje (03/11) as mulheres dos presidiários do Baldomero Cavalcante (o “Cadeião”), próximo à UFAL, voltaram a interditar a BR-104, com piquetes de pneus queimados, impedindo o trânsito nos dois sentidos. Eu saía da UFAL para casa. Para não ficar preso no congestionamento, tomei um desses transportes alternativos e perambulei por duas horas pelas ruas e vielas não pavimentadas do bairro Santos Dummont. O motivo da manifestação, segundo o noticiário, havia sido a suspensão da entrada de objetos suspeitos no presídio e a restrição das visitas.
A manifestação das mulheres dos presidiários do Cadeião pode ser vista por muitos ângulos diferentes. Para o cidadão ordinário que já anda meio ressentido com protestos desse tipo, e só deseja voltar para casa depois do trabalho, da escola ou da universidade, a manifestação das mulheres quase sempre é vista como um vandalismo disfarçado de reivindicação, que penaliza quem não nada tem a ver com o problema. Para a polícia (epifania do poder repressor do Estado!), obviamente, ali está uma possibilidade de perigo à ordem pública a ser reprimido até que a ordem se refaça. Para a imprensa, o piquete das mulheres dos presidiários é somente mais um fato corriqueiro a merecer poucas linhas num editorial da seção “cotidiano” e poucos minutos no jornal das seis.
Pois de minha parte penso que a “desordem” dessas mulheres é tão legítima quanto necessária. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que aquilo que chamamos de “ordem” é caos, e aquilo que chamamos de “caos” é útero de uma ordem nova, diferente, justa e mais humana. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que nossa paz é uma “paz de pântanos” (Dom Helder), que esconde injustiças e podridão.
Essas mulheres são todas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. O encarceramento de seus companheiros agrega a isso um fardo que nenhum “sexo frágil” suportaria carregar. Já pude conversar com algumas delas, e descobri como seu cotidiano é transformado pela prisão de seus companheiros. São elas que se encarregam da administração da casa, duplicando a jornada de trabalho. Sobre elas duplica o cuidado dos filhos, e a elas compete a batalha no campo judicial para fazerem valer os direitos que seus companheiros têm perante a lei. Não podendo pagar os serviços dos melhores advogados, recorrem à Defensoria Pública, que, como todo órgão do Estado, convive com a morosidade e com uma maneira peculiar de tratar as pessoas mais pobres de nossa cidade, marcada sempre por um semi-descaso. Nos dias de visita, dormem nas filas, sempre ao relento. O piquete, portanto, é para elas a única forma de fazerem-se ouvir perante a sociedade. Como mulheres que se sabem sujeitos de certos direitos, não podem fazer como as feministas mais sofisticadas, que atuam no campo da ciência e da ideologia. De que outra forma essas mulheres invisíveis poderiam fazer ouvir a sua voz?
O que é caos? O que é ordem? O que é paz? O que é desordem? São as questões suscitadas pelo piquete de pneus das mulheres dos presidiários do Cadeião. Caos e ordem são apenas uma questão de perspectiva? Se for, assumo a perspectiva dessas mulheres baderneiras, incontidas, desordeiras, rebeldes, quase sempre negras e sempre pobres. Algumas delas foram presas, acusadas de apedrejar os ônibus que tentaram atravessar seu piquete. Duvido que tal atitude da polícia, que mais do que uma ação contra indivíduos é uma tentativa de intimidação do movimento, sirva para anular a força dessas mulheres.
Assim, já sei que destino dar aos pneus velhos no fundo do meu quintal. Vamos impedir a proliferação do mosquito da Dengue!