sábado, 11 de dezembro de 2010

RELIGIÃO E SEXUALIDADE


Para mim, o maior legado de Sigmund Freud, mais do que a amplitude do sistema psicanalítico, é fazer-nos tomar a sexualidade a sério, sem os atavios hipócritas com que ela é tratada, sobretudo em certos ambientes cristãos. Por conta dessa contribuição, a psicanálise nem precisaria ter razão no que diz.
Eu não tenho certeza, mas suspeito que a psicanálise tenha sido o primeiro discurso sobre a sexualidade humana que ganhou status paradigmático, depois dos discursos sobre a sexualidade construídos pela Igreja Cristã. Há entre esses dois discursos infindáveis divergências. Nem de perto nos compete listá-las aqui.
Também considero que Michel Foucault tenha dado enorme contribuição quando se trata de pensar no sexo. Porque comumente nossa atenção volta-se para os problemas da repressão. Até mesmo a psicanálise dedica boa parte de sua atenção ao problema da repressão sexual, e das conseqüências que dela advém. Foucault trabalha com uma teoria do poder onde a “hipótese repressiva”, como ele a chama, não é o centro do problema. Para ele, o problema é justamente o oposto. A Igreja Cristã – ou o “poder pastoral”, em sua expressão –, generalizando a prática da confissão para o povo leigo, promoveu uma “incitação aos discursos” sobre a sexualidade, discursos esses ausentes na cultura ocidental. No lugar da repressão, Foucault centra sua atenção na torrente de discursos sobre o sexo incitados pelo dispositivo da confissão, levado a cabo pelo poder pastoral. Portanto, em vez de nos perguntar “por que reprimimos a sexualidade?”, deveríamos perguntar “que tipo de discursos nós produzimos sobre a sexualidade?”.
É com esse espírito que eu desejaria contar um caso pitoresco, desses que ilustram como os discursos sobre a sexualidade permanecem sendo um fantasma com que nós, cristãos, vamos ter que conviver por muito tempo. Meu desejo nesse texto, portanto, é muito mais cômico/polêmico que informativo.
Naqueles dias, a moda evangélica eram as vigílias feitas nos montes. Os sujeitos aqui implicados eram todos ligados a uma igreja muito tradicional, onde as práticas pentecostais eram tacitamente confrontadas. No entanto, movidos pela subversão e pela curiosidade em relação às experiências místicas, lá estavam eles, todos os dias a subir o monte de oração. O grupo era grande. Devia ter entre vinte e vinte e cinco jovens, todos muito ávidos pelas experiências carismáticas acerca das quais se ouvia falar serem abundantes entre os pentecostais. O falar em línguas estranhas, as revelações, as curas de enfermidades, as manifestações no corpo, e todas essas manifestações visíveis eram uma espécie de atestado da presença de Deus.
Aquele grupo vivia num ambiente onde a reflexão, a doutrina, a pregação, o ensino, a pedagogia, eram privilegiadas. Mas eles queriam mais! Queriam ver, ouvir, tocar, sentir, beber diretamente na fonte do sagrado, sem as mediações sacramentais clássicas do protestantismo histórico, cuja ênfase está na palavra. Estavam cansados de palavras. Por contraditório que pareça quando formulado conceitualmente, o que eles desejavam era a materialização da palavra pelas vias do espiritual.
Para comprovar a tese de que as relações de poder estão capilarizadas por todos os agrupamentos humanos, aquele grupo também tinha seus líderes. Os líderes eram auto-promovidos. Deviam ser reconhecidos pelos demais com base na qualidade da “vida espiritual”. Em termos concretos, os líderes eram reconhecidos entre aqueles que cultivavam a leitura e a meditação cotidiana das Escrituras, a oração constante, a manifestação de dons carismáticos, a capacidade de bem influenciar, o cuidado com a moralidade (que sempre foi sinônimo de cuidado com a sexualidade).
Em meio aos devaneios carismáticos, o grupo havia inventado algo chamado “ritual da confissão”. Era o momento em que cada membro do grupo deveria confessar os erros cometidos na semana, a fim de que os líderes pudessem orar e pedir purificação sobre os culpados. Acontecia assim: eles se arrumavam num grande círculo com todos em pé; os líderes iam nomeando os erros por gradação de gravidade, daqueles que eram considerados “menos graves” até os “mais graves”; os que iam se reconhecendo naqueles erros, iam dando um passo à frente e se ajoelhando no centro círculo, a fim de que pudessem receber a oração purificadora dos líderes.
Num desses dias, ocorreu o seguinte:
A seção começou com a nomeação dos pecados menos graves.
— Quem não fez a leitura das Escrituras essa semana, por favor, dê um passo à frente e ajoelhe-se!
Dois sujeitos o fizeram.
Descendo até os pecados mais graves, um dos líderes continuou:
— Quem agrediu verbalmente outra pessoa e ainda não lhe pediu perdão essa semana?
Mais dois sujeitos deram um passo à frente e se ajoelharam para receber a oração purificadora.  
O processo continuou, de tal maneira que culminou na derradeira pergunta, considerada no dia como sendo o pecado mais grave. Por acaso, era no campo da sexualidade:
— Quem se masturbou essa semana e ainda não se redimiu?
Fez-se um silêncio grave...
Depois de alguns minutos, todos no grupo, até os líderes, ajoelharam-se a fim de receberem a oração. Juntaram-se todos no centro do círculo, e ajoelhados oraram uns pelos outros, de forma que naquele dia não houve quem não confessasse a necessidade de remissão. Nem mesmo os líderes. Pelo menos é louvável o fato de que todos tenham sido honestos!
Obviamente, este é um caso pitoresco. Ao mesmo tempo em que representa a comicidade de uma situação inusitada, também pode ser encarado como um conto emblemático que sinaliza para um problema a ser pensado com cuidado. Sinaliza para a maneira insistente com que as igrejas cristãs lidam com as questões da sexualidade humana. E não estamos pensando na idéia da repressão, mas, em sintonia com Foucault, nos discursos que se produzem sobre a sexualidade nesses ambientes.
Correndo o risco de estar exagerando, eu diria que em certos ambientes eclesiais o discurso sobre a sexualidade é único que deve ser levado a sério. Dificilmente se pode levar a sério os imperativos morais para “não roubar”, “não mentir”, “amar o próximo”, “controlar a língua” etc. Todos esses são imperativos morais, recorrentemente presentes no discurso cristão, mas que não devem ser levados a sério pois os próprios proponentes não os levam. Tratam com parcimônia os que roubam (quando não são eles mesmos os ladrões); não se importam com a mentira (quando não são eles mesmos a mentir e a acobertar mentiras); tratam com parcimônia os que explicitamente desobedecem o mandamento do amor ao próximo (quando não são eles mesmos que odeiam); tratam com parcimônia o mau uso da língua (quando não são eles mesmos a fazê-lo). Dificilmente os processos disciplinares das igrejas punem essas transgressões. Dificilmente esses pecados têm força para comprometer toda a vida de uma pessoa cristã.
Mas não é assim com o sexo!
Rubem Alves dizia que as igrejas não toleram os pecados do pensamento, isto é, as heresias. Acredito que isso já saiu de moda, posto que a única coisa imperdoável aí são as transgressões no campo da sexualidade. São elas as campeãs nos processos disciplinares. São elas as únicas com o poder de macular a reputação de toda uma vida.
A sexualidade – em suas formas naturalmente pré-concebidas – é um campo tão inegociável para certos ambientes cristãos, que ela (junto com o tema do aborto) foi capaz de contestar um dos grandes fenômenos da Modernidade: o confinamento da importância da religiosidade à esfera privada da vida. Foi em defesa dos tabus e dogmas envolvendo a diversidade da experiência sexual que uma grande parcela das igrejas cristãs no Brasil invadiu a esfera pública, e quase determinou a pauta do último processo eleitoral/presidencial. Somente o sexo poderia reconduzir a militância cristã às ambiências públicas como vimos na última eleição presidencial. Somente o sexo poderia mobilizar a militância de tradições marcadas historicamente pela ausência na esfera pública e pelo desinteresse no debate político no Brasil. Só o sexo deve ser levado a sério no discurso dessas respectivas tradições. Não pela verdade/mentira desses discursos. Mas pelo potencial de ação que eles ajudam a suscitar.
Que volte a moda das vigílias nos montes. E que o ritual da confissão se dissemine entre nossos melhores líderes. Com a honestidade dos sujeitos acima descritos, obviamente.
Textos mencionados
ALVES, Rubem (2003). Religião e repressão. São Paulo: Teológica
FOUCAULT, Michel (1988). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, vol. 1
FREUD, Sigmund (1996). Três ensaios sobre sexualidade. In: Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VII

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