sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

“OUTRO MUNDO É IMPOSSÍVEL” (PARA A REDE GLOBO)


A mídia televisiva brasileira e o Fórum Social Mundial/2009


É simplesmente uma violência à sensatez o que faz a mídia televisiva nesses dias de Fórum Social Mundial (FSM) em Belém do Pará e de Fórum Mundial Econômico em Davos. Como me frustrei frente à expectativa de ter ido a Belém, decidi estabelecer relativa vigilância especialmente quanto à cobertura da mídia televisiva em relação ao evento no norte do Brasil. Apenas agreguei frustração sobre frustração.

Noam Chomsky nos conta que a primeira investida midiática visando a introjeção de valores e a produção de consensos alienantes no povo se deu em meio ao governo Woodrow Wilson, nos Estados Unidos. Diz Chomsky que a sociedade americana, à época marcada pelo pacifismo e sem ver razões para a intromissão de seu país na Primeira Guerra mundial, teria sido forjada por meio da propaganda governamental a assumir uma postura decididamente beligerante e anti-germânica.

O caso da mídia televisiva brasileira é semelhante. A ocultação das atividades do FSM por parte dela é somente mais um artifício ideológico cujo fim é manter no povo o consenso da passividade. Assim, seguimos vivendo como se essa realidade cruel e excludente na qual vivemos fosse natural, e como se ela fosse o produto de forças que estão além de nossa ação transformadora.

A “destra” mídia televisiva no Brasil prefere oferecer maior espaço à fatídica e insossa reunião de Davos para incutir na massa o devaneio de que é possível dar continuidade a um modelo econômico culpado por vitimar dois terços da população mundial. Henrique Dussell havia dito na última edição do FSM, que estamos assistindo ao último estertor de um sistema fundado em bases mancas. É verdade. Certamente Dussell estava se referindo ao pressuposto arrogante que alimenta as ações do mercado mundial globalizado neoliberal, de que vivemos num planeta de recursos ilimitados.

Não obstante, a tevê trata a reunião de Davos com a expectativa de que é possível rearranjar o falido mercado neoliberal. Realça a falta da pompa de anos anteriores, sobretudo a ausência de grandes celebridades da cultura atual, mas não se aprofunda criticamente numa reflexão sobre os porquês disso. Menciona descarada e sarcasticamente a voracidade consumista dos chineses ali presentes, e se contenta em resenhar os fatos como quem não vê nada grave diante de si, mas somente uma enxaqueca que será curada com a engenhosidade dos sacerdotes do capital.

Sobretudo a Rede Globo.

Por outro lado, o evento em Belém permanece propositalmente negado aos milhões de telespectadores brasileiros. Os diminutos flashes da tevê sequer chegam a divulgar a divisa do FSM: Outro mundo é possível.

Sim! O que o FSM vem alardeando há oito anos nada mais é que o princípio evangélico de que não se remenda pedaço de pano novo em colcha velha, e nem se põe vinho novo em vasos velhos. Se as Igrejas Cristãs teimam em não compreender que princípios evangélicos como esses não devem ficar estritamente reféns da interpretação tipicamente religiosa, os Movimentos Sociais e as articulações da esquerda mundial tomam a voz e falam em seu lugar. Se as Igrejas Cristãs não conseguem enxergar que a grande idolatria que se pratica hoje é a dirigida ao deus-mercado, ao custo da despersonalização, da invisibilidade e da mutilação de dois terços da população mundial, esses movimentos tomam a dianteira e fazem-no em seu lugar.

O FSM se constitui, dessa forma, num grito e numa articulação coletiva de quem não quer pôr remendo em pano velho. E aqui, a despeito da vexatória vista grossa que faz a mídia televisiva do Brasil, é preciso perceber que as razões para se ter esperança são muito maiores. Porque aí, outra vez em consonância com o evangelho, se crê que a esperança é um fermento que vai levedando a massa. Edgar Morin dizia que as grandes revoluções na história, em diversos domínios (político, cultural e também religioso), tiveram início na preleção pessoal de uma única pessoa. O FSM de Belém recebe cerca de oitenta mil pessoas. É um número pequeno. Mas deve ser pensado em termos de representatividade. É uma demonstração do que vem ocorrendo em variados cantos do mundo em termos de esperança utópica e de inconformidade com o presente estado de coisas.

O evento de Belém, como os demais encontros do FSM, não objetiva o fim do mercado mundial globalizado. O mercado é um dos muitos aparatos artificiais e um dos maiores construtos culturais de que se tem conhecimento. Dele decorre a sobrevivência direta de considerável parcela da humanidade. O que se objetiva, portanto, é que se relativize esse mercado, que peca, sobretudo, por produzir não em função dos interesses humanos, mas em função das demandas e necessidades exclusivas de seus próprios financiadores. Ademais, peca por manter as escandalosas relações assimétricas e neocoloniais entre países ricos e pobres, proporcionando a esses últimos a permanência crônica na condição de emergentes. Nas últimas duas décadas o grande fetiche neoliberal que vem sendo perseguido tenazmente é a construção de um sistema de relações econômicas que prescinda das intervenções estatais. Bem próxima a nós, latino-americanos, a cogitação da ALCA constitui-se exemplo eloqüente dessa hybris neoliberal.

O FSM deseja alardear também que é possível outra economia, sobretudo uma economia que seja marcada pela solidariedade. Como um exemplo, uma economia solidária não pode se resignar ante a realidade do latifúndio. A qualquer observador mais atento salta aos olhos o fato de que o latifúndio e a monocultura são sempre terríveis agressões ao homem e à natureza. O caso alagoano é dos mais conhecidos – e negligenciados – do Brasil. Uma economia solidária não pode conviver, como aqui se convive, com o fato de que apenas 24 famílias possuam 70% das terras agricultáveis do Estado.

Essa expressão – economia solidária – esconde a amplitude de sua proposta. Quer ser solidária, em primeiro lugar, com os pobres. Além disso, quer ser solidária com a natureza, sobretudo quando se trata de estabelecer relações ambientais que objetivem a produção de uma sociedade sustentável. Por fim, quer ser solidária com as futuras gerações, o que está vinculado especialmente com a questão ambiental. Deseja-se aí produzir em função das reais necessidades humanas e coletivas. Além disso, deseja-se aí romper com o sistema piramidal e concentrador da renda e dos meios de produção, criando uma atmosfera cooperativista que permeie todo o processo produtivo. As experiências que se têm feito em todo Brasil – não sem muita luta e por vezes sangue derramado – têm se mostrado muito profícuas.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi recebida entre os setores mais reacionários da política e da economia mundial (e também entre boa parte da intelectualidade) como o fim das utopias inspiradas de alguma maneira pelo marxismo. Muitos viram ali a “pá de cal” na aventura esquerdista. Boaventura de Souza Santos chega a dizer que o neoliberalismo ganharia ares de objetividade, se confundindo com a própria realidade. Mas o funeral da esperança é algo sempre inconcluso! O FSM quer ser uma grande amostra disso.

Se for para transformarmos em objetividade qualquer arranjo sócio-político-econômico humano, que façamos com aquele que melhor distribua entre mulheres e homens o produto de sua atividade laboral. Façamos com aquele que melhor dignifique as pessoas e não as deixe em estado de invisibilidade. Façamos com aquele que melhor cuide do planeta, fonte de toda riqueza que o homem frui. Façamos com aquele que dê vez e voz aos pobres, para que superem sua posição de oprimidos. O FSM só existe ainda porque se crê que tais coisas são possíveis. E porque seus pares trabalham com a melhor acepção do vocábulo utopiaum lugar que não existe de fato, mas já existe no coração.

Não fui a Belém, mas, no fundo, de alguma forma me sinto como se estivesse lá. E não tem Rede Globo que prive dessa experiência a quem se deixou encandear pela utopia!

*Para assitir a programação ao vivo do Fórum Social Mundial em Belém-PA, clique: http://www.cartamaior.com.br/templates/tvMostrar.cfm?evento_tv_id=49.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

FUNCIONALIDADE E ESTÉTICA


Uma brevíssima meditação filosófica


Dualidade x Dualismo

Uma das dualidades mais explícitas com a qual nos defrontamos aqui e acolá é aquela entre a dimensão funcional e a dimensão estética da vida. Traços da dimensão funcional: a obrigação, o rendimento, a disciplina, a racionalização, o metodismo, a objetividade, a razão instrumental, o pragmatismo, e etc. Traços da dimensão estética: o prazer, a fruição, o jogo, a gratuidade, a beleza, a contemplação, a espontaneidade, a imaginação, a liberdade, e etc. Essa dualidade nos marca sem que sequer nos demos conta.

Dizemos dualidade para nos opor ao termo dualismo. Esse último é uma cisão gnosiológica que divide a realidade em paralelos antagônicos. Assim, faz o real jogar contra si mesmo. Qualitativamente traz enormes prejuízos à nossa relação com as coisas. Por exemplo, a religião é autora de uma concepção dualista do mundo, (mal)entendido como campo de oposição entre sagrado e profano. A filosofia cartesiana, por sua vez, é autora do clássico dualismo corpo e alma. Esses dois exemplos ilustram o prejuízo qualitativo dos dualismos, pois que sempre elegem um dos pólos como negação do outro: o sagrado nega o profano, a alma nega o corpo, e vice-versa. Em termos práticos, os prejuízos são enormes quando se trata de nosso ser-estar-no-mundo.

Ao dizermos dualidades, primeiro nos juntamos a uma antiqüíssima tradição filosófica oriunda em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.), para quem a realidade toda poderia ser resumida no jogo de pares complementares: dia-noite, masculino-feminino, bem-mal, frio-quente, e etc. Segundo, nos juntamos à tradição chinesa do Tao, que parece reconhecer esse jogo de forças no real, mais ou menos ao modo de Heráclito, tendo no ícone do Yin-Yang um dos exemplos mais famosos.

Quando dizemos dualidade, estamos nos referindo não a relações de antagonismo, mas a relações de complementaridade, interdependência e reciprocidade. Na dualidade os pólos dialéticos não existem nem em oposição nem a despeito de seus opostos, mas existem em função deles.

Dessa forma, entendemos a dimensão funcional e a dimensão estética da vida como uma dualidade, não como um dualismo.

Análise de dois casos exemplares

No meio de um apetitoso caruru com vatapá (um dos manjares divinos do recôncavo baiano!), meu pai quis saber as razões de eu nunca ter prestado concurso público. Antes dele, um de nossos companheiros de reflexão teológica já me indagava da mesma maneira: “não entendo como gente como você não presta um concurso público e vai ganhar bastante dinheiro”.

Um jovem adventista tentava, por todos os meios, persuadir meu irmão a que adquirisse produtos alimentares que, segundo aquele jovem, eram cem por cento naturais e não agrediam o corpo. Chegou a comparar literalmente, bem ao modo de Descartes, o corpo humano a uma máquina cujo funcionamento depende de doses corretas de certos produtos (justo os seus!). “Todo prazer tem um preço ruim”, dizia aquele jovem crente em rechaço a essas guloseimas de pouco valor nutritivo, mas de amplo valor estético. Eu e meu irmão lhe respondemos comendo um ótimo acarajé.

Dois exemplos do cotidiano de gente simples, mas que estão perpassados pela catequese cultural que opõe a dimensão funcional à dimensão estética da vida. Tal percepção das coisas tornou-se objetividade. O mundo de tais pessoas é assim. O meu não é.

No primeiro exemplo acima, há um entendimento de que certas qualidades pessoais devem se render às estruturas da sociedade, sobretudo ao mundo do trabalho. Para usar uma imagem, entende-se aí que as estruturas sociais e o mundo do trabalho sejam como um rio cuja correnteza não pode ser vencida. É preciso pular na água e dar o melhor de si para sobreviver, sabendo que o rio segue um curso que independe da vontade do nadador.

Tal compreensão das coisas faz submeter a inteligência, a inventividade, a criatividade e a liberdade aos ditames do rio-capital. Inteligentes são aqueles que alquimicamente conseguem traduzir seu capital intelectual em capital financeiro. Os concursos públicos estão aí como portas que conduzem a esse fim. Sacrifica-se a própria riqueza da subjetividade no altar do capital. Deus me livre! Prefiro o vôo incerto de céus sem limites do que a ração cotidiana dessas novas Caixas de Skinner.

Mas o segundo caso exemplifica algo muito mais ardiloso. Ele é filho da concepção mecanicista do mundo que inadvertidamente tomou conta da ciência ocidental, assim como de outros ramos da cultura, entre os quais também a religião. Enquanto nega a fruição do corpo e o reduz mecanicistamente às suas dimensões funcionais, traz inconscientemente elementos do platonismo, do gnosticismo, da antropologia agostiniana e cartesiana, como já havíamos apontado.

Duas frases são denunciadoras do ardil dessa postura: todo prazer tem um preço ruim e o corpo é como uma máquina. A primeira frase nega a dimensão estética do prazer, enquanto a segunda reduz o corpo à funcionalidade biológica. São duas compreensões caducas que de certa forma devolvem o homem a um estágio anterior à hominização. A primeira verbaliza a milenar e neurótica relação entre religião e corporeidade, enquanto a segunda rebaixa o homem a uma condição inferior a dos outros animais, que também curtem a fruição do prazer, principalmente no jogo.

Um caminho do meio

Freud dizia que é justamente o princípio do prazer que marca a condição humana. Em contrapartida, acreditava que um dia a Razão (Logos) pudesse adequar o homem ao princípio da realidade. Nesse dia, sob o império do centro racional da vida psíquica, os homens saberiam como sujeitar os instintos do inconsciente aos imperativos do ego. Seria o império da funcionalidade e da técnica. Talvez, sem o saber, aquele jovem adventista emprestou sua voz a esse sonho insosso.

Eu prefiro alguma coisa que esteja entre a funcionalidade repressora e a estética alienante. Porque se uma funcionalidade repressora atenta contra nossa condição de seres humanos, o seu extremo oposto também o faz na mesma medida. Ninguém é capaz de viver só de fruição. Nesse sentido, Agostinho é autor de uma frase proverbial: Existem duas qualidades de coisas: aquelas feitas para serem usadas [funcionalidade] e aquelas feitas para serem fruídas [estética].

Disse o Diabo: Se tu és filho de Deus, transforma essas pedras em pães, isto é, reduz mais uma vez tua condição à funcionalidade pragmática da hora, nega a fruição de teus exercícios espirituais em nome do clamor do teu corpo, faz de teu estômago teu centro, troca o simbolismo “irracional” de tua abstinência pelo labor “racional” da produção de alimento, desce do vôo “imaginário” de tua cabeça até o chão da “realidade” que teu estômago te lembra.

Respondeu Jesus: Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus, isto é, os homens são maiores que seus próprios corpos e maiores que seus estômagos, e há dimensões de sua existência e clamores em seu ser que ultrapassam toda funcionalidade, pois nenhum homem será homem de verdade se fechar-se nos estreitamentos do real, negando as infinitas possibilidades que lhe vêm tanto da cabeça quanto coração. Aí, junto com os clamores do estômago, está o seu segredo e a sua peculiaridade.

Continuo com Jesus.


domingo, 11 de janeiro de 2009

UMA HERMENÊUTICA DA TERCEIRA VIA


Sobre os conflitos entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza

1. Israelenses e palestinos no olhar dos cristãos

O escândalo mundial do momento é o sangrento embate na Faixa de Gaza. É um embate entre duas causas, dois projetos e dois ideais que extravasam a mera questão territorial e nacionalista. O embate envolve sentimentos profundos de pertencimentos a projetos milenares, tanto por parte dos palestinos quanto por parte dos israelenses.

Os palestinos nunca tiveram um lugar especial no discurso das igrejas cristãs. Sua existência sempre foi inócua e tem passado quase despercebida para essas igrejas, salvo quanto às intenções missionárias. Mas, até onde tenho conhecimento, nem mesmo o missionarismo cristão despertou grande interesse pelo povo palestino. Sorte desses?

Israel, por sua vez, tem uma estreita relação com toda cristandade. E não poderia ser diferente. O Cristianismo construiu seu substrato de pensamento à base da fé de Israel. Jesus de Nazaré, fundamento primeiro da fé cristã, era judeu. Junto com o Islamismo e o Judaísmo, o Cristianismo é uma das três grandes religiões mundiais fundadas na promessa feita a Abraão (cf. Gênesis 12,3).

No entanto, nada disso serviu para que o relacionamento entre as tradições judaica e cristã fosse harmonioso. Do contrário, já os documentos matriciais da Igreja Cristã – os escritos do Novo Testamento – são formulações que, entre outros propósitos, visam relativizar os conteúdos essenciais da visão de mundo judaica. Esses, por sua vez, nunca aceitaram a hermenêutica que a Igreja Cristã operou em seus documentos religiosos, mormente sobre a Torah.

2. Entre os anti-semitas e os judaizantes

Com efeito, a hermenêutica cristã-primitiva que relativizou a religião judaica em nada se compara ao anti-semitismo forjado pelas igrejas cristãs no curso de sua história. Aqui, católicos e protestantes serviram igualmente para edificar uma atitude de rejeição ao povo de Israel. Mais do que qualquer outro seguimento da cultura ocidental, essas igrejas são as principais responsáveis pela atitude anti-semita mundo afora. O fundamento teológico do anti-semitismo, diga-se de passagem, é manco e tendencioso. Pois “se as autoridades judaicas contribuíram decisivamente para a morte de Jesus de Nazaré, as autoridades romanas o fizeram na mesma medida”. Mas por que essas igrejas nunca difundiram um anti-romanismo? Católicos e protestantes, de fato, sairiam perdendo com essa idéia.

No revés da atitude anti-semita, ultimamente algumas igrejas cristãs protestantes decidiram adotar uma atitude judaizante. Em linhas gerais, trata-se de uma tentativa um tanto grosseira de se resgatar elementos da cultura e da religiosidade judaica para anexá-los ao culto cristão. O que se obtém aí? Nada mais que uma caricatura mal borrada da religiosidade judaica (rica, bela, exuberante e vibrante em si mesma), e, de quebra, outra variante insuportável do fundamentalismo.

Enquanto cristãos, de que maneira deveríamos nos posicionar para ajuizar os recentes embates na Faixa de Gaza? Como deveríamos avaliar o militarismo israelense nesse episódio? Deveríamos ajuizá-los conforme a atitude anti-semita ou judaizante? Nesse caso, minha sugestão é por uma hermenêutica da terceira via.

Admito que sobre essa terceira via hermenêutica não sei dizer quase nada. Mais ou menos ao modo da Teologia Negativa de Karl Barth – “sobre Deus só podemos dizer o que ele não é” –, sobre essa terceira via sei dizer apenas o que ela não é. E ela não é uma via explicativa que considere a questão dos conflitos na Faixa de Gaza de maneira unilateral, seja política ou teologicamente.

3. Recaída intelectual ou visão tacanha das coisas?

Eu vinha me surpreendendo seguidamente com as últimas declarações políticas do literato português José Saramago. Membro do Partido Comunista há muitos anos, figura cativa nas assembléias do Fórum Social Mundial, Saramago sempre trouxe em sua biografia o símbolo do esquerdismo ideológico.

No entanto, contrariando todo esse histórico, recentemente Saramago disse em Cuba (justo na ilha de Fidel!) que “a primeira coisa que as esquerdas deveriam fazer era apagar a palavra utopia de seu vocabulário, pois esta mesma palavra já havia causado danos suficientes ao mundo”. Compreendi aquilo como uma recaída intelectual própria de toda grande cabeça.

Saramago é ateu por convicção filosófica. Mas não penso que isso justifique outras “recaídas intelectuais” semelhantes à acima citada. Teve o disparate de perguntar “onde estava Deus?” quando da catástrofe ocorrida em Santa Catarina ano passado. E quanto aos conflitos recentes na Faixa de Gaza, responsabilizou o “rancoroso deus judaico” pelas barbáries perpetradas por Israel. Aqui, seria ingênuo pensar que se trate de mera recaída intelectual. A insistência numa hermenêutica tão superficial para interpretar fatos tão profundos é prova de uma visão tacanha e unilateral acerca dessas coisas.

Queira Deus que Saramago continue nos brindando com obras primas como O Evangelho de Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira, Memorial do convento e Intermitências da morte, e descanse quanto a outras atividades intelectuais.

4. Velhos nomes para velhas aspirações

Não resta dúvida que o monoteísmo traga em sua inscrição íntima uma possibilidade para a intolerância e para a violência em nome do sagrado. A história é testemunha disso. Por outro lado, o pluralismo é uma das marcas indeléveis da cultura nas sociedades pós-industriais. Os monoteísmos, caso queiram continuar sendo atraentes, precisam desenvolver a atitude inteligente de convivência mútua com outras manifestações religiosas diferentes. A atitude ecumênica é algo para o qual rumamos a despeito do próprio equilíbrio social. Do contrário, dar-se-á a barbárie.

Dessa forma, nenhum fenômeno monstruoso de nosso tempo – sejam os atentados terroristas de toda espécie, sejam conflitos como o da Faixa de Gaza – pode ser explicado unilateralmente a partir de elementos da religião. Não sei se poderíamos fazer tal análise nem mesmo em relação àqueles fatos monstruosos de séculos atrás, tais como as Cruzadas, que possuíam uma face explicitamente religiosa. Também ali estavam imbricados outros condicionantes ocultos, principalmente de natureza política.

“Deus” permanece como um nome de muita força. Mas o caso da Faixa de Gaza é tal que Israel pode prescindir de usá-lo. Contra um inimigo que ataca com pedras e com foguetes produzidos no fundo dos quintais (e que produzem seu devido estrago), “Deus” é uma palavra dispensável. A essa altura da caminhada do mundo, só Saramago, do alto de sua respeitosa idade, pode crer que a máquina de matar de Israel se move sob motivação religiosa. Quem move essas guerras não é Javé, mas a incurável fixação pelo poder, pela opressão e pelo prazer orgiástico de se afirmar sobre o mais fraco.

A prepotência israelense há tempos prescindiu dos nomes divinos. Funda-se agora na parceria com o imperialismo estadunidense. Quer repetir no Oriente Médio o que seu parceiro imperial fez historicamente na América Latina. Ambas não conseguem ver que todo projeto de “nação luzeiro das nações” é um tiro pela culatra: sempre resultou em militarismos, imperialismos e muito sangue de gente inocente.

“Deus”, quando usado nessas situações, é somente uma palavra velha para fomentar velhas aspirações em novos tempos. E nada mais.


sábado, 10 de janeiro de 2009

VIDA E MORTE DAS UTOPIAS (?)

Talvez eu ainda seja muito jovem para entender como se dão certas metamorfoses na cabeça de algumas pessoas. Gente que um dia militou nesses movimentos que adjetivamos como “de esquerda”, de repente adota um estilo de vida e um discurso mais afinados com o que também chamamos de “direitismo”.

Não entendemos, por exemplo, como gente que apanhou da polícia, possa hoje fazer apologia da repressão violenta às liberdades individuais. Nem entendemos como gente que antes proferiu discursos inflamados em defesa de grandes utopias, possa hoje se render a uma atitude realista e fatalista perante a realidade. Não entendemos como gente que compreendeu os estratagemas da opressão que caracterizam a relação entre as nações ricas e as pobres, possa hoje nos pedir que “esqueçamos tudo aquilo que foi escrito a esse respeito”. Não entendemos como gente dessa estirpe possa hoje assumir o papel de porta-vozes dos ideais neoliberais.

Já não é de agora que as aspirações revolucionárias de uma sociedade são associadas a um período específico da vida pessoal. “Coisa de jovens”, é o que dizem. Essa linha de raciocínio prefere crer que o impulso revolucionário é próprio de uma fase da vida cuja maturação ainda não permitiu uma visão supostamente real dos esquemas que montam a vida social. Somente os anos – pensa-se aí – podem “fazer ver” que a história é autônoma, e que todas as utopias estão fadadas ao fracasso.

Contudo, essa metamorfose não é estritamente um fenômeno da militância política. Também a vida religiosa e intelectual são testemunhas de tal fato.

É muito comum que a entrada na vida profissional e a ordenação formal aos encargos da atividade sacerdotal da religião acabem extinguindo antigas inclinações subversivas. É comum que a profissão e o sacerdócio acabem por deixar para trás tentativas de ruptura com a tradição, e proporcionem uma entrega mansa e resignada ao conforto proporcionado pela nova situação. Nessa metamorfose, as posições revolucionárias da universidade ou do seminário voltam a ser taxadas como perigosas. O herege se reencontra e se reconcilia com o inquisidor, o revolucionário se reencontra e se reconcilia com o reacionário, e o progressista se reencontra e se reconcilia com o conservador. Tudo isso na mesma pessoa.

Nesse caso, nem se faz necessária a ação do tempo. Basta o conforto da nova situação, mesmo que venha rápido.

Existem algumas construções utópicas que representam nosso protesto perante o vaticínio crespo da realidade. São construções com as quais dizemos que o mundo que desejamos não é este que aí está. Com tais construções fazemos coro com a divisa do Fórum Social Mundial: “Outro mundo é possível”. Dois exemplos dessas construções utópicas de protesto contra uma visão fatalista e resignada da realidade são justamente a política e a religião. Ambas têm na sua constituição íntima uma negação do que aí está. Dessa forma, são anti-leibnizeanas, pois rejeitam o vaticínio de que este seja o melhor dos mundos possíveis.

Não obstante, eu estou certo de que as afirmações acima parecem descabidas. Política e religião talvez sejam hoje, para o senso comum, os dois domínios mais reacionários das sociedades pós-industriais. Em certa medida, o são mesmo. No lugar de serem fomentos para a construção de uma postura de sujeição da história, vêm se tornando cada vez mais fomentos de uma sujeição à história. E quando uns homens prescindem da construção de um futuro pautado nos grandes anseios humanos, outros tomam a dianteira para perpetuar uma concepção da vida que sujeita grandes contingentes humanos ao cárcere da insignificância e da invisibilidade.

O profeta nada mais é do que aquele ou aquela que nos recorda o papel utópico e subversivo da política e da religião, em oposição à perversão de sua cumplicidade para com o status quo. Ele nada mais é do que aquele ou aquela que opera aí sem as dicotomias artificiais que a cultura foi construindo entre esses dois domínios. A gênese da atitude profética é uma desconstrução de nível epistêmico. Não há atitude profética sem a morte de determinadas visões de mundo. E o mais importante é que o profeta é aquele ou aquela cuja vida inteira – seja longa, breve ou brevíssima – é marcada pela insistência incompreensível na visão de um mundo que não existe.

Por isso, definir a política e religião daquela forma – isto é, como manifestações da pulsão revolucionária dos homens –, já requer certa paixão pela utopia. Minha paixão pessoal pela utopia vem me fazendo entender que uma práxis espiritual e religiosa necessita forçosamente desdobrar-se em implicações políticas. Por sua vez, tenho entendido que a melhor práxis política é aquela alimentada por uma espiritualidade profunda, porque apaixonada pelo humano e por tudo que lhe concerne.

A despeito do que se propala por aí, quem fenece não são as utopias. Quem morre são os utópicos em quem se opera uma estranha metamorfose cuja química é feita de tempo e conforto. As utopias permanecem vivas!

Quanto a mim, resta saber se os anos conservarão essa visão das coisas. A despeito do conforto e do efeito do tempo, a questão essencial com a qual devemos nos defrontar sempre é: estamos dispostos a plantar árvores sob as quais, com alguma probabilidade, somente nossos netos se assentarão? Oxalá que seja assim!