sábado, 10 de janeiro de 2009

VIDA E MORTE DAS UTOPIAS (?)

Talvez eu ainda seja muito jovem para entender como se dão certas metamorfoses na cabeça de algumas pessoas. Gente que um dia militou nesses movimentos que adjetivamos como “de esquerda”, de repente adota um estilo de vida e um discurso mais afinados com o que também chamamos de “direitismo”.

Não entendemos, por exemplo, como gente que apanhou da polícia, possa hoje fazer apologia da repressão violenta às liberdades individuais. Nem entendemos como gente que antes proferiu discursos inflamados em defesa de grandes utopias, possa hoje se render a uma atitude realista e fatalista perante a realidade. Não entendemos como gente que compreendeu os estratagemas da opressão que caracterizam a relação entre as nações ricas e as pobres, possa hoje nos pedir que “esqueçamos tudo aquilo que foi escrito a esse respeito”. Não entendemos como gente dessa estirpe possa hoje assumir o papel de porta-vozes dos ideais neoliberais.

Já não é de agora que as aspirações revolucionárias de uma sociedade são associadas a um período específico da vida pessoal. “Coisa de jovens”, é o que dizem. Essa linha de raciocínio prefere crer que o impulso revolucionário é próprio de uma fase da vida cuja maturação ainda não permitiu uma visão supostamente real dos esquemas que montam a vida social. Somente os anos – pensa-se aí – podem “fazer ver” que a história é autônoma, e que todas as utopias estão fadadas ao fracasso.

Contudo, essa metamorfose não é estritamente um fenômeno da militância política. Também a vida religiosa e intelectual são testemunhas de tal fato.

É muito comum que a entrada na vida profissional e a ordenação formal aos encargos da atividade sacerdotal da religião acabem extinguindo antigas inclinações subversivas. É comum que a profissão e o sacerdócio acabem por deixar para trás tentativas de ruptura com a tradição, e proporcionem uma entrega mansa e resignada ao conforto proporcionado pela nova situação. Nessa metamorfose, as posições revolucionárias da universidade ou do seminário voltam a ser taxadas como perigosas. O herege se reencontra e se reconcilia com o inquisidor, o revolucionário se reencontra e se reconcilia com o reacionário, e o progressista se reencontra e se reconcilia com o conservador. Tudo isso na mesma pessoa.

Nesse caso, nem se faz necessária a ação do tempo. Basta o conforto da nova situação, mesmo que venha rápido.

Existem algumas construções utópicas que representam nosso protesto perante o vaticínio crespo da realidade. São construções com as quais dizemos que o mundo que desejamos não é este que aí está. Com tais construções fazemos coro com a divisa do Fórum Social Mundial: “Outro mundo é possível”. Dois exemplos dessas construções utópicas de protesto contra uma visão fatalista e resignada da realidade são justamente a política e a religião. Ambas têm na sua constituição íntima uma negação do que aí está. Dessa forma, são anti-leibnizeanas, pois rejeitam o vaticínio de que este seja o melhor dos mundos possíveis.

Não obstante, eu estou certo de que as afirmações acima parecem descabidas. Política e religião talvez sejam hoje, para o senso comum, os dois domínios mais reacionários das sociedades pós-industriais. Em certa medida, o são mesmo. No lugar de serem fomentos para a construção de uma postura de sujeição da história, vêm se tornando cada vez mais fomentos de uma sujeição à história. E quando uns homens prescindem da construção de um futuro pautado nos grandes anseios humanos, outros tomam a dianteira para perpetuar uma concepção da vida que sujeita grandes contingentes humanos ao cárcere da insignificância e da invisibilidade.

O profeta nada mais é do que aquele ou aquela que nos recorda o papel utópico e subversivo da política e da religião, em oposição à perversão de sua cumplicidade para com o status quo. Ele nada mais é do que aquele ou aquela que opera aí sem as dicotomias artificiais que a cultura foi construindo entre esses dois domínios. A gênese da atitude profética é uma desconstrução de nível epistêmico. Não há atitude profética sem a morte de determinadas visões de mundo. E o mais importante é que o profeta é aquele ou aquela cuja vida inteira – seja longa, breve ou brevíssima – é marcada pela insistência incompreensível na visão de um mundo que não existe.

Por isso, definir a política e religião daquela forma – isto é, como manifestações da pulsão revolucionária dos homens –, já requer certa paixão pela utopia. Minha paixão pessoal pela utopia vem me fazendo entender que uma práxis espiritual e religiosa necessita forçosamente desdobrar-se em implicações políticas. Por sua vez, tenho entendido que a melhor práxis política é aquela alimentada por uma espiritualidade profunda, porque apaixonada pelo humano e por tudo que lhe concerne.

A despeito do que se propala por aí, quem fenece não são as utopias. Quem morre são os utópicos em quem se opera uma estranha metamorfose cuja química é feita de tempo e conforto. As utopias permanecem vivas!

Quanto a mim, resta saber se os anos conservarão essa visão das coisas. A despeito do conforto e do efeito do tempo, a questão essencial com a qual devemos nos defrontar sempre é: estamos dispostos a plantar árvores sob as quais, com alguma probabilidade, somente nossos netos se assentarão? Oxalá que seja assim!

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