quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

FUNCIONALIDADE E ESTÉTICA


Uma brevíssima meditação filosófica


Dualidade x Dualismo

Uma das dualidades mais explícitas com a qual nos defrontamos aqui e acolá é aquela entre a dimensão funcional e a dimensão estética da vida. Traços da dimensão funcional: a obrigação, o rendimento, a disciplina, a racionalização, o metodismo, a objetividade, a razão instrumental, o pragmatismo, e etc. Traços da dimensão estética: o prazer, a fruição, o jogo, a gratuidade, a beleza, a contemplação, a espontaneidade, a imaginação, a liberdade, e etc. Essa dualidade nos marca sem que sequer nos demos conta.

Dizemos dualidade para nos opor ao termo dualismo. Esse último é uma cisão gnosiológica que divide a realidade em paralelos antagônicos. Assim, faz o real jogar contra si mesmo. Qualitativamente traz enormes prejuízos à nossa relação com as coisas. Por exemplo, a religião é autora de uma concepção dualista do mundo, (mal)entendido como campo de oposição entre sagrado e profano. A filosofia cartesiana, por sua vez, é autora do clássico dualismo corpo e alma. Esses dois exemplos ilustram o prejuízo qualitativo dos dualismos, pois que sempre elegem um dos pólos como negação do outro: o sagrado nega o profano, a alma nega o corpo, e vice-versa. Em termos práticos, os prejuízos são enormes quando se trata de nosso ser-estar-no-mundo.

Ao dizermos dualidades, primeiro nos juntamos a uma antiqüíssima tradição filosófica oriunda em Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.), para quem a realidade toda poderia ser resumida no jogo de pares complementares: dia-noite, masculino-feminino, bem-mal, frio-quente, e etc. Segundo, nos juntamos à tradição chinesa do Tao, que parece reconhecer esse jogo de forças no real, mais ou menos ao modo de Heráclito, tendo no ícone do Yin-Yang um dos exemplos mais famosos.

Quando dizemos dualidade, estamos nos referindo não a relações de antagonismo, mas a relações de complementaridade, interdependência e reciprocidade. Na dualidade os pólos dialéticos não existem nem em oposição nem a despeito de seus opostos, mas existem em função deles.

Dessa forma, entendemos a dimensão funcional e a dimensão estética da vida como uma dualidade, não como um dualismo.

Análise de dois casos exemplares

No meio de um apetitoso caruru com vatapá (um dos manjares divinos do recôncavo baiano!), meu pai quis saber as razões de eu nunca ter prestado concurso público. Antes dele, um de nossos companheiros de reflexão teológica já me indagava da mesma maneira: “não entendo como gente como você não presta um concurso público e vai ganhar bastante dinheiro”.

Um jovem adventista tentava, por todos os meios, persuadir meu irmão a que adquirisse produtos alimentares que, segundo aquele jovem, eram cem por cento naturais e não agrediam o corpo. Chegou a comparar literalmente, bem ao modo de Descartes, o corpo humano a uma máquina cujo funcionamento depende de doses corretas de certos produtos (justo os seus!). “Todo prazer tem um preço ruim”, dizia aquele jovem crente em rechaço a essas guloseimas de pouco valor nutritivo, mas de amplo valor estético. Eu e meu irmão lhe respondemos comendo um ótimo acarajé.

Dois exemplos do cotidiano de gente simples, mas que estão perpassados pela catequese cultural que opõe a dimensão funcional à dimensão estética da vida. Tal percepção das coisas tornou-se objetividade. O mundo de tais pessoas é assim. O meu não é.

No primeiro exemplo acima, há um entendimento de que certas qualidades pessoais devem se render às estruturas da sociedade, sobretudo ao mundo do trabalho. Para usar uma imagem, entende-se aí que as estruturas sociais e o mundo do trabalho sejam como um rio cuja correnteza não pode ser vencida. É preciso pular na água e dar o melhor de si para sobreviver, sabendo que o rio segue um curso que independe da vontade do nadador.

Tal compreensão das coisas faz submeter a inteligência, a inventividade, a criatividade e a liberdade aos ditames do rio-capital. Inteligentes são aqueles que alquimicamente conseguem traduzir seu capital intelectual em capital financeiro. Os concursos públicos estão aí como portas que conduzem a esse fim. Sacrifica-se a própria riqueza da subjetividade no altar do capital. Deus me livre! Prefiro o vôo incerto de céus sem limites do que a ração cotidiana dessas novas Caixas de Skinner.

Mas o segundo caso exemplifica algo muito mais ardiloso. Ele é filho da concepção mecanicista do mundo que inadvertidamente tomou conta da ciência ocidental, assim como de outros ramos da cultura, entre os quais também a religião. Enquanto nega a fruição do corpo e o reduz mecanicistamente às suas dimensões funcionais, traz inconscientemente elementos do platonismo, do gnosticismo, da antropologia agostiniana e cartesiana, como já havíamos apontado.

Duas frases são denunciadoras do ardil dessa postura: todo prazer tem um preço ruim e o corpo é como uma máquina. A primeira frase nega a dimensão estética do prazer, enquanto a segunda reduz o corpo à funcionalidade biológica. São duas compreensões caducas que de certa forma devolvem o homem a um estágio anterior à hominização. A primeira verbaliza a milenar e neurótica relação entre religião e corporeidade, enquanto a segunda rebaixa o homem a uma condição inferior a dos outros animais, que também curtem a fruição do prazer, principalmente no jogo.

Um caminho do meio

Freud dizia que é justamente o princípio do prazer que marca a condição humana. Em contrapartida, acreditava que um dia a Razão (Logos) pudesse adequar o homem ao princípio da realidade. Nesse dia, sob o império do centro racional da vida psíquica, os homens saberiam como sujeitar os instintos do inconsciente aos imperativos do ego. Seria o império da funcionalidade e da técnica. Talvez, sem o saber, aquele jovem adventista emprestou sua voz a esse sonho insosso.

Eu prefiro alguma coisa que esteja entre a funcionalidade repressora e a estética alienante. Porque se uma funcionalidade repressora atenta contra nossa condição de seres humanos, o seu extremo oposto também o faz na mesma medida. Ninguém é capaz de viver só de fruição. Nesse sentido, Agostinho é autor de uma frase proverbial: Existem duas qualidades de coisas: aquelas feitas para serem usadas [funcionalidade] e aquelas feitas para serem fruídas [estética].

Disse o Diabo: Se tu és filho de Deus, transforma essas pedras em pães, isto é, reduz mais uma vez tua condição à funcionalidade pragmática da hora, nega a fruição de teus exercícios espirituais em nome do clamor do teu corpo, faz de teu estômago teu centro, troca o simbolismo “irracional” de tua abstinência pelo labor “racional” da produção de alimento, desce do vôo “imaginário” de tua cabeça até o chão da “realidade” que teu estômago te lembra.

Respondeu Jesus: Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus, isto é, os homens são maiores que seus próprios corpos e maiores que seus estômagos, e há dimensões de sua existência e clamores em seu ser que ultrapassam toda funcionalidade, pois nenhum homem será homem de verdade se fechar-se nos estreitamentos do real, negando as infinitas possibilidades que lhe vêm tanto da cabeça quanto coração. Aí, junto com os clamores do estômago, está o seu segredo e a sua peculiaridade.

Continuo com Jesus.


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