domingo, 11 de janeiro de 2009

UMA HERMENÊUTICA DA TERCEIRA VIA


Sobre os conflitos entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza

1. Israelenses e palestinos no olhar dos cristãos

O escândalo mundial do momento é o sangrento embate na Faixa de Gaza. É um embate entre duas causas, dois projetos e dois ideais que extravasam a mera questão territorial e nacionalista. O embate envolve sentimentos profundos de pertencimentos a projetos milenares, tanto por parte dos palestinos quanto por parte dos israelenses.

Os palestinos nunca tiveram um lugar especial no discurso das igrejas cristãs. Sua existência sempre foi inócua e tem passado quase despercebida para essas igrejas, salvo quanto às intenções missionárias. Mas, até onde tenho conhecimento, nem mesmo o missionarismo cristão despertou grande interesse pelo povo palestino. Sorte desses?

Israel, por sua vez, tem uma estreita relação com toda cristandade. E não poderia ser diferente. O Cristianismo construiu seu substrato de pensamento à base da fé de Israel. Jesus de Nazaré, fundamento primeiro da fé cristã, era judeu. Junto com o Islamismo e o Judaísmo, o Cristianismo é uma das três grandes religiões mundiais fundadas na promessa feita a Abraão (cf. Gênesis 12,3).

No entanto, nada disso serviu para que o relacionamento entre as tradições judaica e cristã fosse harmonioso. Do contrário, já os documentos matriciais da Igreja Cristã – os escritos do Novo Testamento – são formulações que, entre outros propósitos, visam relativizar os conteúdos essenciais da visão de mundo judaica. Esses, por sua vez, nunca aceitaram a hermenêutica que a Igreja Cristã operou em seus documentos religiosos, mormente sobre a Torah.

2. Entre os anti-semitas e os judaizantes

Com efeito, a hermenêutica cristã-primitiva que relativizou a religião judaica em nada se compara ao anti-semitismo forjado pelas igrejas cristãs no curso de sua história. Aqui, católicos e protestantes serviram igualmente para edificar uma atitude de rejeição ao povo de Israel. Mais do que qualquer outro seguimento da cultura ocidental, essas igrejas são as principais responsáveis pela atitude anti-semita mundo afora. O fundamento teológico do anti-semitismo, diga-se de passagem, é manco e tendencioso. Pois “se as autoridades judaicas contribuíram decisivamente para a morte de Jesus de Nazaré, as autoridades romanas o fizeram na mesma medida”. Mas por que essas igrejas nunca difundiram um anti-romanismo? Católicos e protestantes, de fato, sairiam perdendo com essa idéia.

No revés da atitude anti-semita, ultimamente algumas igrejas cristãs protestantes decidiram adotar uma atitude judaizante. Em linhas gerais, trata-se de uma tentativa um tanto grosseira de se resgatar elementos da cultura e da religiosidade judaica para anexá-los ao culto cristão. O que se obtém aí? Nada mais que uma caricatura mal borrada da religiosidade judaica (rica, bela, exuberante e vibrante em si mesma), e, de quebra, outra variante insuportável do fundamentalismo.

Enquanto cristãos, de que maneira deveríamos nos posicionar para ajuizar os recentes embates na Faixa de Gaza? Como deveríamos avaliar o militarismo israelense nesse episódio? Deveríamos ajuizá-los conforme a atitude anti-semita ou judaizante? Nesse caso, minha sugestão é por uma hermenêutica da terceira via.

Admito que sobre essa terceira via hermenêutica não sei dizer quase nada. Mais ou menos ao modo da Teologia Negativa de Karl Barth – “sobre Deus só podemos dizer o que ele não é” –, sobre essa terceira via sei dizer apenas o que ela não é. E ela não é uma via explicativa que considere a questão dos conflitos na Faixa de Gaza de maneira unilateral, seja política ou teologicamente.

3. Recaída intelectual ou visão tacanha das coisas?

Eu vinha me surpreendendo seguidamente com as últimas declarações políticas do literato português José Saramago. Membro do Partido Comunista há muitos anos, figura cativa nas assembléias do Fórum Social Mundial, Saramago sempre trouxe em sua biografia o símbolo do esquerdismo ideológico.

No entanto, contrariando todo esse histórico, recentemente Saramago disse em Cuba (justo na ilha de Fidel!) que “a primeira coisa que as esquerdas deveriam fazer era apagar a palavra utopia de seu vocabulário, pois esta mesma palavra já havia causado danos suficientes ao mundo”. Compreendi aquilo como uma recaída intelectual própria de toda grande cabeça.

Saramago é ateu por convicção filosófica. Mas não penso que isso justifique outras “recaídas intelectuais” semelhantes à acima citada. Teve o disparate de perguntar “onde estava Deus?” quando da catástrofe ocorrida em Santa Catarina ano passado. E quanto aos conflitos recentes na Faixa de Gaza, responsabilizou o “rancoroso deus judaico” pelas barbáries perpetradas por Israel. Aqui, seria ingênuo pensar que se trate de mera recaída intelectual. A insistência numa hermenêutica tão superficial para interpretar fatos tão profundos é prova de uma visão tacanha e unilateral acerca dessas coisas.

Queira Deus que Saramago continue nos brindando com obras primas como O Evangelho de Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira, Memorial do convento e Intermitências da morte, e descanse quanto a outras atividades intelectuais.

4. Velhos nomes para velhas aspirações

Não resta dúvida que o monoteísmo traga em sua inscrição íntima uma possibilidade para a intolerância e para a violência em nome do sagrado. A história é testemunha disso. Por outro lado, o pluralismo é uma das marcas indeléveis da cultura nas sociedades pós-industriais. Os monoteísmos, caso queiram continuar sendo atraentes, precisam desenvolver a atitude inteligente de convivência mútua com outras manifestações religiosas diferentes. A atitude ecumênica é algo para o qual rumamos a despeito do próprio equilíbrio social. Do contrário, dar-se-á a barbárie.

Dessa forma, nenhum fenômeno monstruoso de nosso tempo – sejam os atentados terroristas de toda espécie, sejam conflitos como o da Faixa de Gaza – pode ser explicado unilateralmente a partir de elementos da religião. Não sei se poderíamos fazer tal análise nem mesmo em relação àqueles fatos monstruosos de séculos atrás, tais como as Cruzadas, que possuíam uma face explicitamente religiosa. Também ali estavam imbricados outros condicionantes ocultos, principalmente de natureza política.

“Deus” permanece como um nome de muita força. Mas o caso da Faixa de Gaza é tal que Israel pode prescindir de usá-lo. Contra um inimigo que ataca com pedras e com foguetes produzidos no fundo dos quintais (e que produzem seu devido estrago), “Deus” é uma palavra dispensável. A essa altura da caminhada do mundo, só Saramago, do alto de sua respeitosa idade, pode crer que a máquina de matar de Israel se move sob motivação religiosa. Quem move essas guerras não é Javé, mas a incurável fixação pelo poder, pela opressão e pelo prazer orgiástico de se afirmar sobre o mais fraco.

A prepotência israelense há tempos prescindiu dos nomes divinos. Funda-se agora na parceria com o imperialismo estadunidense. Quer repetir no Oriente Médio o que seu parceiro imperial fez historicamente na América Latina. Ambas não conseguem ver que todo projeto de “nação luzeiro das nações” é um tiro pela culatra: sempre resultou em militarismos, imperialismos e muito sangue de gente inocente.

“Deus”, quando usado nessas situações, é somente uma palavra velha para fomentar velhas aspirações em novos tempos. E nada mais.


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