sábado, 12 de março de 2016

BREVE EXERCÍCIO DE EXEGESE SOBRE OS "EFEMINADOS" DO NOVO TESTAMENTO (1Co 6,9-10)

O grande teólogo suíço Karl Barth (1886-1968) dizia que "uma comunidade de fé verdadeiramente interessada na verdade do Evangelho deve ser uma comunidade interessada em Teologia". Eu estou entre os que acreditam nisso. Pensar a fé teologicamente não tem nada a ver com pedantismo. Antes, é um ato mais que necessário, especialmente em nossos dias, marcados por um pluralismo religioso cada vez mais irrefreável.
Escrevo essas notas tendo em mente as turbulências causadas pela decisão da minha comunidade de fé -- a Igreja Batista do Pinheiro --, relativa ao recebimento de pessoas LGBTs em seu rol de membros. Como explicou o Pr. Wellington Santos em texto amplamente divulgado, a decisão da comunidade foi a culminação de dez anos de debates, estudos, pesquisa séria, e muita oração. Graças a Deus prevaleceu o entendimento de que o amor, mais que a doutrina sem coração, é o maior dos imperativos cristãos!
Como sei que o povo evangélico, em especial, tem um apego grande ao texto bíblico, eu gostaria de escrever umas poucas e simples linhas acerca de um dos textos no Novo Testamento utilizado nessas polêmicas sobre a homossexualidade. Vou usar algumas ferramentas da exegese bíblica, especialmente as vinculadas com questões de linguagem, a partir do texto grego no qual o Novo Testamento foi escrito. Repito: não há nenhum pedantismo nesses exercícios. E vou tentar simplificar ao máximo.
O texto de São Paulo, de 1Co 6,9-10, diz o seguinte:
"Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas com costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus" (Tradução da Bíblia de Jerusalém).
A primeira coisa que faremos é destacar duas palavras, ambas no versículo 9: malakoi e arsenokoitai. Na tradução que citei, essas palavras gregas foram traduzidas por "devassos" e "pessoas com costumes infames" respectivamente. Outras traduções optam por "imorais" e "efeminados". A Nova Versão Internacional (NVI) fez opção por traduzir essas palavras gregas por "homossexuais passivos e ativos".
Note um primeiro grupo de questões a serem ponderadas:
- Quais critérios são utilizados na tradução de um texto como a Bíblia?
- Por que há tantas traduções diferentes dos mesmos textos?
- O que leva um tradutor a fazer opção por um termo, e não por outro?
- Os termos usados pela língua receptora (a atual) conseguem dar conta do significado literal dos termos originais?
Precisamos pensar um pouco nisso!
Mas agora vamos pensar um pouco sobre as palavras malakoi e arsenokoitai, presentes no texto grego original do NT. Em primeiro lugar, elas não podem ser traduzidas por "homossexuais ativos e passivos", por uma razão muito simples: o mundo antigo e o contexto do Novo Testamento não conheciam essa palavra, que só veio a ser cunhada no século 19, por Richard von Krafft-Ebing, no contexto do saber psiquiátrico. A tradução da NVI, portanto, é um ato muito mais teológico que filológico (linguístico), porque escolhe deliberadamente os termos em questão. Toda tradução, nesse caso, é uma forma de teologização!
Muitas traduções, especialmente as mais utilizadas entre os evangélicos, têm optado por traduzir malakoi por "efeminados", o que remeteria a uma condenação da homossexualidade. Malakoi, contudo, em termos muito literais, era uma palavra cujo significado queria dizer "mole", "macio", "suave". Algumas correntes filológicas sugerem que se tratasse de uma referência à moleza nas relações afetivas, própria dos "mulherengos", que não se firmavam em laços afetivos sólidos. Os malakoi seria uma referência ao homem dedicado a muitas mulheres de uma vez.
O caso de arsenokoitai é mais difícil, pois se trata de uma palavra quase nunca utilizada no Novo Testamento. Tudo aponta para o fato de que temos aqui um neologismo cunhado por Paulo, oriundo de duas outras palavras gregas: arsen (homem) e koiten (cama). Nesse difícil campo de decisão acerca de qual palavra utilizar como um equivalente próximo do termo original, uma corrente de tradução tem optado pela expressão "prostituição cultual", em função do contexto religioso que dá origem a estes escritos. A prostituição sagrada foi uma prática muito comum no contexto tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, e não há contradição em relacionar a condenação paulina a essas práticas cultuais, muito presentes em Corinto.
Traduzir é colocar em movimento uma Teologia. Essas notas aqui escritas em função do texto de 1Co 6,9-10 valem para todos os textos bíblicos. Toda tradução bíblica é feita em função da tradição onde o tradutor se situa. Ela é quase sempre um instrumento teológico para fortalecer o ponto de vista da respectiva tradição. O texto de 1Co 6,9-10 é um dos que tem sido traduzidos para discriminar e fechar a porta a uma comunidade enorme de pessoas, diferentes em sua orientação sexual, mas igualmente valiosas em sua humanidade. Entretanto, tudo indica que não há qualquer referência à homossexualidade no texto que estamos destacando.
Mas, e agora: devem todas as pessoas que fazem parte das comunidades religiosas atuais aprenderem grego, e aprenderem exegese ??? Obviamente que não! Mas isso não reforçaria um tipo de intelectualismo, que põe aqueles que tiveram acesso a essas ferramentas numa posição de poder privilegiada ??? Também não!
Isso simplesmente nos chama a sentar, juntos, em comunidade, e tentarmos pensar nossa fé teologicamente. Cada pessoa pode trazer a contribuição do seu olhar. O povo tem sua sabedoria, e ela também vale nessa história de "pensar a fé teologicamente". Quem estudou e possui as ferramentas da exegese, dá a sua contribuição. Será apenas mais uma, nessa importante tarefa de compreender melhor aquilo que cremos.
Não estou falando de uma tarefa fácil. Mas complicado mesmo é continuar usando a Bíblia para justificar os preconceitos que já existem em nós. Esse é um caminho mais cômodo e mais fácil. Mas além de burro, nos afasta da maturidade que se espera dos cristãos.

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