quarta-feira, 3 de novembro de 2010

SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!


Sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião
“Quem vê um pântano à luz da lua pode enganar-se: aquela lhe parecerá uma visão de paz. Mas, por baixo, não passa de podridão e lama em fermentação. Nós não queremos a paz dos pântanos, a paz enganadora que esconde injustiças e podridão”
(Dom Helder Câmara)
Marcos Monteiro havia dito em Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades, que Maceió nos permite visualizar o que está acontecendo em nosso planeta. Nessa cidade – segue Marcos – encontramos todos os problemas do nosso século, da prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência institucional. Se não me engano, Marcos Monteiro morou aqui na década de 1990. No entanto, sua intuição segue bastante atual. Maceió continua sendo uma vitrine interessante para se ver o mundo. Mais ainda para se ver o Terceiro Mundo! Ao modo de um ponto do holograma, Maceió hospeda em si toda a complexidade das lutas que se travam em muitas partes do mundo hoje.
Na manhã de hoje (03/11) as mulheres dos presidiários do Baldomero Cavalcante (o “Cadeião”), próximo à UFAL, voltaram a interditar a BR-104, com piquetes de pneus queimados, impedindo o trânsito nos dois sentidos. Eu saía da UFAL para casa. Para não ficar preso no congestionamento, tomei um desses transportes alternativos e perambulei por duas horas pelas ruas e vielas não pavimentadas do bairro Santos Dummont. O motivo da manifestação, segundo o noticiário, havia sido a suspensão da entrada de objetos suspeitos no presídio e a restrição das visitas.
A manifestação das mulheres dos presidiários do Cadeião pode ser vista por muitos ângulos diferentes. Para o cidadão ordinário que já anda meio ressentido com protestos desse tipo, e só deseja voltar para casa depois do trabalho, da escola ou da universidade, a manifestação das mulheres quase sempre é vista como um vandalismo disfarçado de reivindicação, que penaliza quem não nada tem a ver com o problema. Para a polícia (epifania do poder repressor do Estado!), obviamente, ali está uma possibilidade de perigo à ordem pública a ser reprimido até que a ordem se refaça. Para a imprensa, o piquete das mulheres dos presidiários é somente mais um fato corriqueiro a merecer poucas linhas num editorial da seção “cotidiano” e poucos minutos no jornal das seis.
Pois de minha parte penso que a “desordem” dessas mulheres é tão legítima quanto necessária. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que aquilo que chamamos de “ordem” é caos, e aquilo que chamamos de “caos” é útero de uma ordem nova, diferente, justa e mais humana. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que nossa paz é uma “paz de pântanos” (Dom Helder), que esconde injustiças e podridão.
Essas mulheres são todas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. O encarceramento de seus companheiros agrega a isso um fardo que nenhum “sexo frágil” suportaria carregar. Já pude conversar com algumas delas, e descobri como seu cotidiano é transformado pela prisão de seus companheiros. São elas que se encarregam da administração da casa, duplicando a jornada de trabalho. Sobre elas duplica o cuidado dos filhos, e a elas compete a batalha no campo judicial para fazerem valer os direitos que seus companheiros têm perante a lei. Não podendo pagar os serviços dos melhores advogados, recorrem à Defensoria Pública, que, como todo órgão do Estado, convive com a morosidade e com uma maneira peculiar de tratar as pessoas mais pobres de nossa cidade, marcada sempre por um semi-descaso. Nos dias de visita, dormem nas filas, sempre ao relento. O piquete, portanto, é para elas a única forma de fazerem-se ouvir perante a sociedade. Como mulheres que se sabem sujeitos de certos direitos, não podem fazer como as feministas mais sofisticadas, que atuam no campo da ciência e da ideologia. De que outra forma essas mulheres invisíveis poderiam fazer ouvir a sua voz?
O que é caos? O que é ordem? O que é paz? O que é desordem? São as questões suscitadas pelo piquete de pneus das mulheres dos presidiários do Cadeião. Caos e ordem são apenas uma questão de perspectiva? Se for, assumo a perspectiva dessas mulheres baderneiras, incontidas, desordeiras, rebeldes, quase sempre negras e sempre pobres. Algumas delas foram presas, acusadas de apedrejar os ônibus que tentaram atravessar seu piquete. Duvido que tal atitude da polícia, que mais do que uma ação contra indivíduos é uma tentativa de intimidação do movimento, sirva para anular a força dessas mulheres.
Assim, já sei que destino dar aos pneus velhos no fundo do meu quintal. Vamos impedir a proliferação do mosquito da Dengue!

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