terça-feira, 6 de março de 2012

SAÚDE MENTAL, DEPENDÊNCIA QUÍMICA E IGREJA


Ampliando a rede de alternativas ao dilema da dependência química

Nos últimos dias, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) vem se articulando no sentido de convidar toda a sociedade brasileira para discutir as formas de enfrentamento do problema do uso abusivo de álcool e drogas ilegais por uma grande parcela de pessoas no Brasil. Parte-se da convicção de que os danos causados pelo consumo abusivo de álcool e de drogas ilegais têm raízes na situação de desigualdade social imperante em nosso país, e que apenas articulações em rede envolvendo diversos atores e instituições sociais variadas podem ser eficazes no enfrentamento da questão. Também se parte do pressuposto de que não faz sentido expressões como “luta contra as drogas”, muito menos depositar toda energia nas estratégias de repressão ao tráfico, como supõe muitas vezes o senso comum. Para o CFP, os danos causados pelo consumo abusivo de álcool e pelas drogas ilegais é parte de uma tessitura social injusta, e da falta de investimentos em políticas públicas que minem as desigualdades sociais. 
Recentemente, o CFP iniciou uma série de discussões acerca da temática, utilizando-se das redes sociais como um campo de difusão ideológica e de convite ao debate. Foram publicados três vídeos educativos, disponíveis no site YouTube, onde o CFP apresenta a rede de políticas públicas ligadas ao campo da saúde, assim como a rede de serviços disponíveis aos dependentes de álcool e drogas[1].
No bojo das concepções ideológicas e das práticas do Movimento Antimanicomial, um dos pontos altos da discussão proposta pelo CFP é a interrupção das atuais internações compulsórias dos usuários de álcool/drogas nas chamadas “comunidades terapêuticas”. A maior parte destas comunidades está ligada à iniciativa privada no campo da saúde, além de serem fomentadas pelo Governo Federal e por parte da mídia. O Movimento Antimanicomial tem se caracterizado historicamente, desde a década de 1980, pela relativização das práticas tradicionais do tratamento psiquiátrico que se dão a partir da exclusão dos pacientes do convívio social e familiar, e de sua captura e reclusão nos manicômios e hospitais psiquiátricos[2]. Além desses componentes, relatórios e vistorias técnicas denunciando práticas de maus tratos a pacientes com transtornos mentais são freqüentemente utilizados como argumentos para uma maior humanização desse tipo de tratamento clínico[3].
Neste sentido, o CFP defende a idéia de que, assim como o tratamento de pacientes marcados por transtornos mentais vem sendo cada vez mais humanizado pelo trabalho realizado pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), tal deve ocorrer com o público dependente de álcool e drogas. Na verdade, os centros de referência em tratamento especializado para este público já funcionam (CAPS-AD) há dez anos. O que se questiona, como dito acima, é que a preferência pelas comunidades terapêuticas privadas tenham agora a predileção por parte do Governo Federal, uma vez que as internações compulsórias estão previstas no Plano Nacional de combate ao crack, do Governo Dilma, e têm sido amplamente estimuladas pelo mesmo.
Os CAPS trabalham no contexto de uma rede de atenção à saúde, sob a tutela do SUS, tais como as Equipes de Redução de Danos, as Casas de Acolhimento Temporário e os Consultórios de Rua. Trabalham ainda sob pressupostos científicos, antropológicos e sociológicos que buscam resguardar a liberdade e o senso de autonomia dos seus usuários, e a partir de uma compreensão não-reducionista da etiologia dos transtornos mentais. Tradicionalmente, o campo psiquiátrico tem sido marcado por epistemologias biologizantes e mecanicistas, que impedem de situar a compreensão dos transtornos mentais e da dependência química em um transfundo mais amplo, que contemple os condicionantes sócio-culturais. Reduzidos à sua causalidade biológica, perde-se a possibilidade de uma compreensão que contemple os aspectos biopsicossociais subjacentes à manifestação e à vivência desses transtornos e dessas dependências.
Nos CAPS parte-se, portanto, de uma perspectiva biopsicossocial dos transtornos mentais e da dependência química, o que redunda na construção de toda uma rede de profissionais implicados no acompanhamento do tratamento clínico: médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, pedagogos etc. Neste modelo de saúde mental, presume-se ainda que a liberdade, a criatividade e a convivência social e familiar sejam dispositivos potencializadores de uma experiência subjetiva mais humanizante e mais eficaz no trato com esse público. Segundo o CFP, enquanto o tratamento aberto, antes visto como dificultador do processo, passa a ser parte da solução, “a internação compulsória quebra os laços sociais e dificulta a recuperação desses usuários”. A denúncia de práticas abusivas, de afronta aos direitos humanos, presentes no cotidiano das comunidades terapêuticas, também tem sido argumento recorrente na boca daqueles que desafiam esse modelo de tratamento em saúde mental.
É a partir desses pressupostos e das práticas a eles ligados, já presentes nas atuações dos CAPS e dos CAPS-AD, que o CFP reitera a necessidade de que a sociedade dialogue acerca da melhor maneira de lidar com as pessoas implicadas com uso abusivo de álcool e de drogas ilícitas. Conforme o CFP, as comunidades terapêuticas podem ser instrumentos políticos de beneficiamento de certas organizações privadas ligadas à saúde. Privilegiar essa estratégia em detrimento das políticas públicas onde se insere o trabalho dos CAPS seria antitético à democracia. Para o CFP, “em vez de fortalecer os cidadãos e o sistema público de saúde, o investimento governamental nas comunidades terapêuticas privadas destina dinheiro público para estruturas que privam o cidadão dos seus direitos sem discutir as principais causas dos desequilíbrios na nossa sociedade, como a desigualdade social e concentração de renda”.
Além disso, a internação compulsória partiria de um pressuposto científico e metodológico arcaico, identificado com o antigo paradigma em saúde mental praticado nos velhos manicômios, pejorativamente chamados por Foucault de “instituições de seqüestro”. Este modelo radica-se no pressuposto da possessão arbitrária dos indivíduos pelo Estado, competindo a este caçar compulsoriamente a sua liberdade, sob os auspícios do tratamento clínico. Sociologicamente, tais procedimentos podem ser compreendidos como a injunção de um biopoder, que necessita docilizar os corpos que pretende curar e reciclar para o convívio social. Tal paradigma, conforme o CFP, seria completamente anacrônico em face das recentes discussões epistemológicas da área, e das novas práticas em saúde coletiva que visam resguardar direitos fundamentais próprios dos indivíduos em estados democráticos de direito como o Brasil.
Para o CFP “é de justiça social, e não de novos manicômios que o Brasil precisa”. Estes “novos manicômios” seriam as comunidades terapêuticas privadas, que por meio das internações compulsórias recebem, cada vez mais, um contingente populacional em franco crescimento. Reivindica-se, portanto, que a sociedade, beneficiária primeira de todo este debate, discuta e se mobilize em torno da questão do fortalecimento dos instrumentos presentes nas políticas públicas de saúde coletiva, neste caso, os CAPS e os CAPS-AD.
O que as igrejas evangélicas teriam a ver com isso tudo, e que contribuição as mesmas poderiam dar a esta demanda? Em minha opinião, estas igrejas seriam as instituições sociais mais propícias ao tipo de parceria buscado pelo Conselho Federal de Psicologia junto à sociedade civil organizada. Seu poder persuasivo junto a seus membros, e seu senso de “missão”, deveriam ser elementos a favor de parcerias como a que está em questão. No entanto, a prática histórica de tais igrejas cristãs, falando de um modo um tanto generalizado, tem sido marcada pela distância dessas iniciativas. A contribuição “social” de boa parte das igrejas evangélicas no Brasil ainda se limita a ações assistencialistas, sem maiores impactos transformadores no tecido social. 
O paradigma dominante na atuação das igrejas evangélicas em relação aos usuários abusivos de álcool e drogas tem sido historicamente uma reprodução do modelo das comunidades terapêuticas. No Brasil, são muito difundidos os trabalhos dos “centros de recuperação evangélicos” para dependentes químicos. Muitos desses locais funcionam sem as mínimas condições técnicas necessárias. Há carência de profissionais especializados do campo psi e de outras especialidades que contemplem os aspectos biopsicossociais da dependência química. Há precariedade nas instalações sanitárias, somadas às constantes denúncias de abusos físicos e emocionais sob a máscara de tratamento psicológico e espiritual.
Estas comunidades religiosas e seus líderes necessitariam repensar seu conceito de “missão no mundo”, de “salvação” e de “vida em plenitude”, incorporando as demandas político-sociais em sua prédica e em sua agenda eclesial. Haveria ampla fundamentação bíblico-teológica, sobretudo nos profetas de Israel e nos Evangelhos, para tal revisão, sem que o compromisso de fé fosse corrompido. Neste caso, os púlpitos contribuiriam com a produção de multiplicadores destas políticas de saúde, e o discurso das comunidades passaria a ser um dos mediadores simbólicos entre o povo e as políticas de saúde no cuidado dos que sofrem com o uso indiscriminado de álcool e drogas. Em resumo, as igrejas poderiam contribuir na formação (teo)ideológica de multiplicadores da estratégia em questão, além de serem mediadoras diretas, como seu poder de persuasão, entre os potenciais usuários e os programas governamentais de cuidado daqueles que sofrem as mazelas da dependência química, seja pelo álcool seja pela drogas.
Fomentar a multiplicação da informação e de agentes multiplicadores entre seus membros, e oferecer-se como mediador simbólico entre os dependentes químicos e as políticas públicas de saúde mental, corresponderia a ampliar a rede de possibilidades quanto ao enfrentamento de um dos dilemas atuais mais caros à sociedade brasileira.  

Referências
AMARANTE, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, Fiocruz
FOUCAULT, M. (2008). História da loucura na Idade Clássica. Perspectiva, São Paulo.  



[1] Os vídeos mencionados podem ser encontrados nos seguintes links: Episódio 1 - http://www.youtube.com/watch?v=usLDzJbhdgo&feature=related; Episódio 2 - http://www.youtube.com/watch?v=5aPIDEHN-zo&feature=related; e Episódio 3 - http://www.youtube.com/watch?v=nDyWk7BPK2k&feature=related
[2] Para uma história do Movimento Antimanicomial no Brasil, cf. AMARANTE, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, Fiocruz. A tese de doutorado de Michel Foucault também é considerada por muito especialistas como um dos textos paradigmáticos para o aprofundamento teórico do debate proposto pela reforma psiquiátrica em muitos países. Cf. FOUCAULT, M. (2008). História da loucura na Idade Clássica. Perspectiva, São Paulo.  
[3] Um relatório do Conselho Federal de Psicologia relativo às irregularidades encontradas em comunidades terapêuticas no Brasil pode ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: http://drogasecidadania.cfp.org.br Também o Observatório de Saúde Mental traz informações a esse respeito: http://osm.org.br

4 comentários:

POR UM MUNDO SEM PRISÕES disse...

Paulo,
Que texto lúcido e de grande valor social...
É certo que o passado de manicômios não pode voltar, nem mesmo os agora travestidos de "internação compulsória para tratamentos contra drogas".
Como você disse: o SUS precisa ser fortalecido e assumir seu papel nessa temática.

Paulo Nascimento disse...

Beleza, meu caro.
Grande abraço fraterno !!!

Anônimo disse...

Caríssimo Paulo,
Texto irretocável. Belíssima contribuição para o debate. Serviu-me de alerta no curso "fé na prevenção" baseado na predileção governamental. Também ligou uma luz amarela diante da prática das "cristolândias" da JMN, da qual nossa igreja é parceira. Agradecido,
Petronio.

Paulo Nascimento disse...

Querido Petrônio!
Obrigado pelas palavras. De fato, não sei muita coisa sobre a "cristolândia". Se não me engano, a turma faz um trabalho "in loco", não? Esse trabalho não seria algo distinto do trabalho feito nos centros de recuperação?