sábado, 5 de abril de 2014

NOVAS CONVERSAS SOBRE O CORPO, A CIÊNCIA E A RELIGIÃO



Em um texto que chamei de Conversas sobre o corpo, a ciência e a religião, escrito há dois anos, eu narrava um pouco da minha trajetória acadêmica desde que cheguei a Alagoas, no ano de 2006. Quando escrevi aquele texto, eu estava às vésperas de iniciar o mestrado em Psicologia (2012-2014), e o texto pretendia mostrar meu caminho até o tema que investiguei nessa pós-graduação. Naquele texto eu havia descrito um pouco as minhas preocupações com a cultura canavieira, que dominaram minha atenção durante a graduação (2007-2011), e os motivos que me levaram a mudar totalmente o foco dessas atenções para o tema das sexualidades, que acabou resultando numa dissertação intitulada Cristianismo, política e criminalização da homofobia no Brasil, defendida com sucesso em março desse ano.

Eu justificava essa mudança tão profunda – da cultura canavieira para as sexualidades – a partir da ideia de que “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”. Foi a mudança de contexto vivencial que influenciou a mudança no meu foco de investigação acadêmica. Contudo, terminada essa etapa, novas possibilidades colocam-se à minha disposição, agora para um doutorado. E novamente o pêndulo dos meus interesses teóricos se reorienta, em função de onde meus pés pisam.
Desde que estreei como docente substituto na Universidade Federal de Alagoas, em 2013, as questões ligadas à constituição da Psicologia como uma ciência autônoma, assim como a constituição do(s) seu(s) objeto(s) foram se tornando centrais para mim, em função das disciplinas que ali assumi. Eu estava frente a frente com os debates acerca do conceito de subjetividade, caríssimo às Psicologias do século XX. Eu precisaria mergulhar nas diferentes variáveis implicadas na constituição daquele conceito na Modernidade, e na relação disto com a própria constituição da Psicologia como uma ciência apartada da tradição filosófica. Obviamente, esse debate não se faz sem que se pense, além disso, no que chamamos de novas formas de subjetivação, relacionadas de um modo muito especial às novíssimas condições de vida de nosso tempo atual.
Movido por essas novas circunstâncias, novos objetos colocam-se como possibilidades de investigação. A perspectiva a partir da qual buscaríamos compreender esses objetos permanece a mesma. Primeiro, ela está sempre pautada pela investigação acerca das implicações políticas dos saberes investigados, e do saber que nós mesmos produzimos. O saber que buscamos produzir é sempre politicamente consciente e posicionado. Trata-se da assunção da inescapável relação entre epistemologia e política, bem descrita pelo sociólogo francês Bruno Latour. Segundo, ela está interessada nas relações de poder e nas formas de governo da vida humana na atualidade. Em outras palavras, ela está identificada com o entendimento do poder em sua dimensão produtiva e positiva, como salientou Michel Foucault. E finalmente, ela se interessa em saber que modos de vida e de subjetividade são produzidos em meio a isso tudo.
Entretanto, um novo objeto surge como uma possibilidade agora. Minha inclinação se volta agora para pensar uma categoria conceitual que tem sido descrita como sujeito cerebral, relacionada aos saberes produzidos no campo da neurociência e da neuropsicologia. O pano-de-fundo dessa discussão é bastante amplo. Ele tem a ver com a tendência crescente de medicalização da vida, e porque não dizer, com uma tendência crescente de patologização de uma série de condutas cotidianas. Como bem observou Elizabeth Roudinesco, há toda uma teia de interesses econômicos alavancando essas tendências. Segundo esta autora, estaríamos diante de um quadro que nos possibilita compreender as atualizações do funcionamento do biopoder, conceito cunhado e explorado anteriormente por Foucault.
Em síntese, a categoria de sujeito cerebral tenta dar conta da redução de todos os aspectos relacionados à subjetividade aos condicionamentos de origem fisiológica e neuronal, como operada no contexto das neurociências. Em outras palavras, trata-se de um movimento de ancoragem fisiológica daqueles aspectos antes relacionados à ideia moderna de sujeito psicológico. No cérebro estariam situados todos os aspectos da subjetividade humana, tal como a própria consciência de um “eu”. Desde a década de 1990 as técnicas de imageamento cerebral buscam alargar, por meio de ressonâncias magnéticas, as conexões entre a atividade das diferentes regiões cerebrais e os diversos aspectos da conduta humana. Daí derivam novas disciplinas como a neuropsicologia, a neurocriminologia, a neuroética, a neuropsicanálise, e até uma neuroteologia.
Esses seriam alguns exemplos de como as mais variadas condutas humanas seriam capturadas por uma rede de discursos científicos, que, neste caso, corroboram com a produção de uma subjetividade reduzida à dimensão fisiológica da existência humana. A ideia moderna de sujeito psicológico estaria em profunda crise mediante esse quadro. A própria ideia de “interioridade psicológica” se vê ameaçada frente a um contexto em que a somatização das condutas é cada vez mais crescente. Consequentemente, as intervenções clássicas necessitariam ser repensadas, uma vez que a ideia de sujeito cerebral está intimamente acompanhada de intervenções tacitamente medicamentosas.
Obviamente, estamos falando de um mundo de coisas a serem discutidas. Contudo, dentre esse mundo de coisas relacionadas com a captura neurocientífica das condutas humanas, a dimensão da religiosidade salta com mais força aos nossos olhos.
Mencionamos ligeiramente acima o surgimento nos últimos anos de uma neuroteologia. Este campo estaria voltado para as reflexões que se dão a partir do imageamento das atividades cerebrais durante a realização de atividades religiosas como a oração, a louvação, a meditação sagrada, entre outras. Uma das questões centrais aí é o esclarecimento acerca dos benefícios desse tipo atividade à saúde e ao bem-estar – cientificamente postulados, obviamente. São muito conhecidas as pesquisas científicas que buscam esclarecer os vínculos entre a prática da religiosidade e a eficácia no tratamento de certas enfermidades. Desse ponto vista, seria importante mapear o funcionamento cerebral ocorrido durante certas atividades religiosas, e sua relação com outras funções somáticas.
Nos interessaria saber, em primeiro lugar, como, de um modo geral, esse movimento de ancoragem fisiológica e cerebral da subjetividade vai instituindo um modo de viver considerado “bom”, “saudável”, e “normal”. Em segundo lugar, nos interessaria saber como as questões específicas da religiosidade são capturadas por esse mesmo discurso, para os mesmos fins. Em linhas gerais, e à guisa de conclusão: nos interessaria saber como o religioso comparece numa teia de discursos científicos cuja finalidade é a maximização da vida humana em sua dimensão biológica, aos custos de um reducionismo da concepção moderna de sujeito psicológico, e da imposição de formas uniformizadas de vida e de conduta.
Espero que o futuro jogue ao meu favor!

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