terça-feira, 14 de julho de 2009

UM APERITIVO DE “A GRAÇA PRECIOSA” (DIETRICH BONHOEFFER)


É comum que toda boa refeição, quer na casa de amigos quer num restaurante, seja precedida por um bom “tira-gosto”. Melhor ainda quando esse “tira-gosto” é parte da própria refeição da qual nos serviremos, pois funciona como uma espécie de prévia. Provamos aquilo como aperitivo e somos fisgados pela coisa. Não nos contentamos até que comamos o prato inteiro!

O pessoal da literatura plagiou esse processo do mundo culinário. É pra isso que servem as “orelhas” dos livros. Na impossibilidade de ler cem ou duzentas páginas num fôlego, eles servem ali, nas “orelhas”, um aperitivo do conteúdo da obra. Provamos. Aquilo é suficiente para nos fisgar ou para nos fazer refugar. Os/as mais ávidos/as, insatisfeitos/as com o “tira-gosto” servido nas orelhas dos livros, vão ao índice, ao glossário de temas, à bibliografia, além daqueles/as ainda mais ávidos/as que precisam ler o primeiro capítulo como forma de aperitivo.

Nunca fui garçom, mas foi o que eu resolvi fazer com uma porção de Discipulado, do Dietrich Bonhoeffer. Resolvi servi-la a vocês com um “tira-gosto” desse “prato”. Prove-o. Deguste-o. Se lhe agradar, coma o prato todo depois.

Bom apetite!

BONHOEFFER, Dietrich. A graça preciosa. In: Discipulado. 7ª edição, tradução de Ilson Kayser, São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 9-19.

Discernimos nessa seção do livro os seguintes temas:

a) Distinções entre os conceitos de “graça barata” e de “graça preciosa”:

A graça barata é inimiga mortal de nossa igreja. Nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa (p. 9). A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão de pecados, é a absolvição sem a confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado. A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quanto tem (...); é o chamado de Jesus Cristo, ao ouvir do qual o discípulo larga as suas redes e o segue (idem).

b) Exposição de como a graça preciosa se manifestou nas vidas de Pedro e Martim Lutero:

A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: ‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’ são expressões da graça. Por duas vezes ouviu Pedro o chamado: ‘Segue-me!’. Foi esta a primeira e a última palavra de Jesus ao seu discípulo (Mc 1,17; Jo 21,22). (...) A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa (p. 11). (...) Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graça pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. [Mas Deus] lhe mostrou, através das Escrituras, que o discipulado de Jesus não era a meritória realização de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristãos (p. 12). (...) Lutero recebera a graça preciosa. Graça, por ser água sobre a terra sedenta, consolo na angústia, libertação no caminho auto-escolhido, perdão de todos os pecados. Graça preciosa por não isentar ninguém da obra, antes chamando com insistência ainda maior ao discipulado (p. 13).

c) A exposição de como o movimento monástico representou um restolho da graça preciosa na cristandade medieval, seguida da corrupção daquele movimento em função da pretensão de “exclusivismo” enquanto ambiente de manifestação desta graça:

Com a expansão do cristianismo e a secularização crescente da Igreja, a consciência dessa graça preciosa perdeu-se gradualmente. (...) No entanto, a Igreja Romana conservava um último resto dessa consciência. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo se não ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sábia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciência da preciosidade da graça, e de que esta encerra em si o discipulado (p. 11). [Todavia] o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianismo por se deixar transformar ele próprio na realização excepcional, voluntária, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si (p. 12).

d) Relações entre graça preciosa e discipulado, e a explicação do sentido correto da sentença de Lutero “Pecca fortiter, sed fortius fide es gaude in Christo” (“Peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e alegra-te em Cristo”):

Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possui, pode dizer que é justificado pela graça. Esse vê o próprio discipulado como sendo graça, e a graça como sendo o chamado. Engana-se, porém, a si próprio quem se julga por ela dispensado do discipulado (p. 15). Mas como entender a frase de Lutero “peca ousadamente, mas crê com ousadia ainda maior e alegra-te em Cristo”? Estaríamos diante do convite blasfemo de pecar à vontade, confiados na graça? Haverá afronta mais diabólica para a graça do que pecar confiado nessa mesma graça que Deus nos concede? (...) A verdadeira compreensão da frase de Lutero é esta: confessa corajosamente o teu pecado; não procures fugir dele, porém, ‘crê com ousadia ainda maior’. És pecador, e, portanto, continua sendo-o. Não queiras ser qualquer outra coisa senão aquilo que és; sim, sê pecador todos os dias e, não obstante, sê corajoso. Mas, a quem se poderá dizer isso senão àquele que, diariamente, renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de Jesus, e que, no entanto, permanece inconsolável por causa da sua infidelidade e pecados cotidianos? (p. 16)

e) Algumas lamentações acerca dos frutos da graça barata na Igreja Evangélica de seus dias:

Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém, às expensas do discipulado, a um preço demasiadamente barato. Triunfara a graça barata. (...) Tornaram-se baratos a mensagem e os sacramentos; batizou-se, confirmou-se, absolveu-se todo um povo sem perguntas nem condições; por humanitarismo, deram-se as coisas santas aos zombadores e incrédulos, despenderam-se rios sem fim de graça, mas o chamado ao discipulado de Cristo ouvia-se com raridade cada vez maior. (...) Quando foi o mundo mais cruelmente e mais desapiedadamente cristianizado do que aqui? Que são os três mil saxões assassinados segundo o corpo por Carlos Magno, comparados com as milhares de almas mortas na atualidade? A graça barata foi muito cruel à Igreja Evangélica (p. 17). (...) A mensagem da graça barata tem arruinado mais crentes do que qualquer outro mandamento de obras (p. 18).

f) Uma convocação à restauração das relações entre graça e discipulado para a vida cristã:

Simplesmente por não queremos negar que já não estamos no verdadeiro discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma igreja ortodoxamente crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma igreja do discipulado, há que se fazer a tentativa de compreender de novo a graça e o discipulado em sua verdadeira relação mútua. Não ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais evidente que o problema da Igreja se cifra nisso: como viver hoje uma vida cristã (p. 18).

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