sábado, 15 de novembro de 2008

A CRISE ECONÔMICA E A FOBIA DOS PROFETAS


Não posso esconder que a idéia de “sociedade secularizada” me provoca um certo contentamento. O “mundo emancipado e adulto”, tematizado por Bonhoeffer, mundo que alcançou a maioridade e deixou pra trás a dependência das cangas da religião organizada, esse mundo é para mim uma tentação, um flerte, em quem encontro um prazer recatado. Mas em nome da religião organizada e de sua pertinência ancestral, temos que viver de recalque em recalque a esse sonho secularista. Isso é uma confissão. E não vou negar que é isso que sinto verdadeiramente.

Mas também não posso negar que boa parte desse processo secularizador deu-se sobre bases religiosas. Por exemplo, interpreto (criticamente) os movimentos sociais de agora como formas secularizadas das esperanças evangélicas que tombaram no percurso histórico do Cristianismo. Para mim, a “voracidade de poder” das igrejas cristãs custou a morte dessas esperanças, que hoje pululam aqui e acolá nos movimentos sociais.

Mas meu flerte com o mundo “adulto e emancipado” não se faz acriticamente. Também este vai dando mostras suficientes de que ainda não é bem a síntese que desejamos.

Aponto somente uma razão que me faz pensar assim. E nisso, penso, o mundo secularizado repete tacitamente a atitude do mundo sob a égide religiosa. Refiro-me à fobia dos profetas. Tal como o mundo balizado pelas religiões organizadas, o mundo secularizado, adulto e emancipado tem medo dos profetas.

Quero iluminar a questão com um exemplo prático e atual.

O mundo todo anda estupefato com as oscilações em Wall Street. Mesmo nós, que pouco sabemos sobre conjuntura econômica, começamos a organizar nossas vidas em sintonia com os atuais dilemas do mercado mundial globalizado. Aqui e ali encontro pessoas que já refizeram planos e adiaram sonhos de consumo. Temerosas acerca dos próximos desdobramentos do chacoalhar da economia mundial, essas pessoas desistiram da compra de carros, casas, viagens parceladas e outros compromissos que demandassem financiamentos longos. Se há fundamento verdadeiro por trás dessas ações, não sei. Mas fenomenologicamente elas são uma demonstração explícita do poder dessa teia global na qual estamos todos integrados.

Mas o fato que eu gostaria de mencionar, é que muito antes de todo esse alarde em torno dos atuais desarranjos econômicos, muitos Teólogos/as (sim, T-E-Ó-L-O-G-O/A-S!!!) anteciparam-se com discursos proféticos que alertavam as sociedades contra um modelo de economia que era insustentável a médio e longo prazo. Não falavam na condição de economistas, mas na condição de profetas evangélicos. Mas com as categorias analíticas próprias das Ciências Humanas, diziam ao mundo que o pior pecado desse sistema de relações econômicas estava no seu “DNA antievangélico”, excludente (para dois terços dos seres humanos), opressor (concreta e simbolicamente) e imperialista (identificado com centros geográficos bem definidos).

Recomendo, a despeito de dúvidas a esse respeito, uma investigação em torno desses nomes: Hugo Assmann, Jung Mo Sung, Franz Hinkelammert, Ulrich Duchrow, Ignacio Ellacuria, Jon Sobrino, José Comblin, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff e Elza Tamez. Esses são somente alguns nomes acerca dos quais consigo lembrar sem consulta.

Em certa medida, observando as especificidades de cada um desses articuladores, todos apontaram para o que Assmann se referia como sendo uma idolotria do mercado. Aplicar a idolatria como chave interpretativa em relação ao mercado mundial globalizado significa dizer que este assumiu as características da “idéia de Deus”. Mas essa identificação da idolatria do mercado não se faz por simples analogia. Antes, faz-se a partir do reconhecimento da auto-divinização mesma do mercado ao impor-se como um absoluto para as pessoas, como objeto de esperança ditando as “leis do sucesso”, o perfil do homem e da mulher bem-sucedidos (nesse caso, os consumidores), e, por tabela, identificado os interesses dos grupos dominantes com os interesses de todos e com os da natureza.

Confira você mesmo, num exemplo, se a tipologia dos ídolos modernos elaborada por Jon Sobrino não explica muito da bifurcação econômica pela qual atravessa o mundo agora:

(1) os ídolos [nesse caso, o mercado] apresentam características de divindades: ultimacidade (não se pode ir além deles), autojustificação (não necessitam justificar-se a si mesmos diante dos seres humanos), intocabilidade (não podem ser questionados e quem o fizer será destruído);

(2) agregam a si instituições sociais como instrumentais de ação: poder militar, político, patriarcal, cultural, étnico, judicial, intelectual e também com freqüência o poder religioso;

(3) exigem culto: as práticas cruéis do capitalismo;

(4) exigem uma ortodoxia: exigem uma ideologia acompanhante [neoliberalismo?] e prometem salvação a seus adoradores, isto é, torná-los semelhantes aos ricos e poderosos do primeiro mundo.

Li em Nietzsche (O Anticristo) que “o proprium de toda grande idolatria reside no fato de que ela apaga no ser idolatrado idiossincrasias e feições originais, feições com freqüência penosamente estranhas; ela mesma sequer as enxerga”. E ouvi de Jorge Nery, numa aula de Mentoreamento em 2001, que “todo ídolo, quando se quebra, é odiado pelo idólatra”. Nietzsche tem razão quanto a relação entre os homens que “movem o mundo” das relações econômicas hoje e seu ídolo (o mercado). Queira Deus que agora Jorge também tenha razão em seu aforismo.

Sim, os profetas precisam ser ouvidos. Eu já sabia que eles não eram da ordem da religião organizada. Agora vejo que também não são da ordem do mundo “emancipado e adulto”. Eles devem pertencer a essa síntese que buscamos e que ainda não sabemos o nome. Melhor, sabemos o nome, mas esquecemos o significado profundo: Evangelho.

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