domingo, 30 de novembro de 2008

MARCOS 10,46-52: UM EXERCÍCIO DEVOCIONAL


Introdução


Todo mundo já ouviu as expressões “alienação” e “povo alienado”. O que queremos dizer com essas expressões? Elas têm muitos sentidos diferentes. Mas, geralmente, o sentido mais usual de “alienação” talvez seja aquele quando dizemos que uma pessoa ou um povo não sabem direito das coisas. É uma pessoa ou um povo por fora das questões políticas, dos jogos da economia, do discurso ciência, enfim... Pessoas assim, dizemos, são pessoas alienadas. Não conhecem nem seus próprios direitos de cidadão. Do contrário, as pessoas que entendem disso tudo são as pessoas “esclarecidas”, “informadas” e “politizadas”.


É verdade que é muito bom quando as pessoas buscam informação sobre tudo. Quando fazemos isso, só temos a ganhar. Ser alguém informado é vantajoso para que não se seja “massa de manobra”, “maria vai com as outras”, ou para que se tenha opinião própria e não se deixe enganar por ninguém. Mas há uma coisa importantíssima: parece que de nada vale sermos tão informados se nos faltam dimensões da vida como a fé, a esperança, e em linguagem bíblica, “a visão do Reino de Deus”, que é espiritual, e por isso mesmo demasiadamente humano. Bartimeu é um exemplo disso!


1. Bartimeu - Cego, mendigo, e à beira do caminho: um sujeito alienado?


Diferentemente de outras narrativas evangélicas (cf. João 9, por exemplo), não sabemos as origens da cegueira de Bartimeu (v.46). Não sabemos se ela era de nascença ou se fora posteriormente adquirida (diabetes, glaucoma, catarata, etc.). É muito provável que sua doença viesse recebendo a significação corriqueira na época, que estava agregada à presença de espíritos malignos. Se isso for correto, esse seria mais elemento oculto no texto que traz à tona mais uma força de opressão sobre aquele homem. Por outro lado, é quase certo que o “ser mendigo à beira do caminho” indique que ele não fosse uma pessoa muito informada das coisas no sentido expresso acima.


Naquele tempo, o acesso à informação era escassíssimo. Sobejava a multidão iletrada (embora eu reconheça que ser iletrado e ser desinformado não sejam a mesma coisa). O acesso ao letramento era quase uma exclusividade da casta sacerdotal e de certos grupos religiosos tradicionais, como os escribas e fariseus, saduceus e essênios, por exemplo. Não que a condição de cegueira e mendicância fosse um determinante em si mesmo da condição iletrada. Mas era um condicionante de muita força. Era com base nisso que, segundo informa o Evangelho de João, as elites religiosas de Israel alimentavam uma abusiva relação opressora em relação às massas (veja João 7,49).


2. Todavia, o clamor de Bartimeu demonstra que ele não era de todo alienado


“Filho de David”, a maneira como Bartimeu se refere a Jesus de Nazaré (v. 47), era uma das formas como as pessoas se referiam ao esperado Messias. Era o que nós, teólogos acadêmicos de hoje, chamamos de “título cristológico”. Era tempo de cativeiro romano. É bem verdade que era um modelo de cativeiro diferente dos anteriormente enfrentados por Israel. Mas era cativeiro, e cativeiro é sempre cativeiro. Qualquer que seja a forma, o conteúdo é sempre o peso da espoliação, da negação de valores nacionais, da opressão econômica, cultural, e etc. Essas coisas todas certamente faziam parte das conversas entre as pessoas “conscientizadas” e “politizadas” daqueles dias em Israel.


Bartimeu, todavia, poderia ser uma pessoa pouco informada sobre essas coisas de fato “importantes”. Mas à sua maneira, Bartimeu estava bem antenado. Mesmo cego, seus “olhos espirituais” estavam o tempo todo bem abertos. Gritar “Filho de David”, para além de ser um clamor pessoal, indica que ele mantinha profunda sintonia com as esperanças messiânicas de sua nação. De dentro da escuridão biofísica, Bartimeu fazia notar a lucidez (relativa à “luz”) de quem está bem informado pelo imaginário espiritual de seus pares judeus. Isto é, Bartimeu na verdade via muito, porque via com os olhos esperançosos de seu povo!


3. Quando nossa “sede oceânica” é atiçada, nada mais nos impede de “ver a Deus”


A resistência e a insistência de Bartimeu em receber o milagre (v. 48) são demonstrações de que nada e ninguém mais podem ser barreiras entre um homem e uma mulher cujo desejo é “ver a Deus”. Quando essa necessidade existencial se nos abre, todo nosso desejo se volta para Deus, e não importa o que os outros digam ou pensem. A “sede oceânica” que nos invade é capaz de enfrentar toda oposição. Acaba o temor, e entra em cena uma “santa insistência” em ser de Deus e em “ver a Deus”.


Quando a “sede oceânica” nos invade, muitas das antigas barreiras e restrições ficam minúsculas em face da nova experiência espiritual. Pedro, Tiago e João nem sequer lembraram da necessidade do ofício que lhes garantia o pão diário. Aquilo ficou minúsculo em face da “sede oceânica” que lhes invadiu. Largaram tudo (Lucas 5,1-11)! Zaqueu, homem de status e importante figura estratégica do sistema tributário romano, “paga o mico” e esquece o constrangimento de, trepado numa árvore, ver a Jesus passar (Lucas 19,1-10). Bartimeu, cego e mendigo – por tabela alguém cuja fragilidade física e a auto-estima estão inferiorizadas em relação à média –, encontra força tal para resistir à oposição daqueles que o repreendiam (v. 48).


Essa tal “sede oceânica”, essa resistência espiritual ao flagelo da vida expressa nas formas religiosas do povo oprimido, é algo a ser considerado, mesmo que sejamos ateus, e muito mais se desejamos ser “teólogos da libertação”.


4. Quando o/a homem/mulher expressa pública ou intimamente o seu desejo, cresce sua confiança em Deus e inicia-se o seu processo libertador


Parece uma pergunta sem sentido a que Jesus fez a Bartimeu (v. 51). Hoje diríamos tratar-se de uma “pergunta retórica”. Mas a pergunta retórica é interessantíssima. Parece ingênua, mas não é. Até Carl Rogers se apercebeu disso em seu método terapêutico. A pergunta retórica faz o sujeito se voltar para a sua própria questão. Faz o sujeito se debruçar sobre o seu próprio objeto de desejo. Perguntando “o que você quer que eu faça Bartimeu?” Jesus devolve ao sujeito a responsabilidade de pensar no objeto de seu próprio desejo. “Quero voltar a ver”, naquele caso, era a expressão de um desejo genuíno. E nossos desejos genuínos só podem ser discernidos por nós mesmos com tal precisão a ponto de dizermos no meio da praça: “quero ver!”.


Ademais, não só Jesus sabia, mas todos ali sabiam que ele era cego. Jesus sabia disso muito mais que todos. Penso que o que Jesus intenta é que, ao expressar seu desejo, Bartimeu coopere no seu processo de cura e de libertação. É assim mesmo que acontece na oração. Ao exteriorizarmos nossas petições, a “cura” e a libertação já se iniciam. Afinal, conforme Jesus, “o vosso Pai conhece todas as vossas necessidades antes que vocês as expressem” (Mateus 6,8).


Conclusão


As pessoas informadas e “conscientizadas” de nossa sociedade, isto é, as “não-alienadas”, deveriam se dar conta da força espiritual e existencial de gente como Bartimeu. Quando não se dão conta disso, passam a engrossar a fileira daqueles que adjetivam de alienados. E, diga-se de passagem, Bartimeu continua muito vivo na biografia de milhões de pessoas vitimadas pelas atuais circunstâncias estruturais e também pessoais.


Nós, de postura auto-intitulada progressista e libertária, deveríamos levar mais em consideração os projetos de libertação escolhidos pelo próprio povo “oprimido”. Afinal, alardeamos na nossa teoria que “o pobre deve ser o próprio sujeito de sua libertação”. Mas ao mesmo tempo, insistimos em que essa libertação se dê conforme o projeto pronto que nós escrevemos e idealizamos. Talvez seja ideal mesclar criticamente os clamores e gritos dos bartimeus de hoje com esses nossos projetos libertários, que também são escritos com muito boa vontade. Mas ainda assim, se não se abrem para a experiência libertadora e para a “sede oceânica” do povo, ficam tão cegos quanto o próprio Bartimeu antes de seu encontro com Jesus.

Nenhum comentário: