terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O AB-USO IDEOLÓGICO DO DISCURSO RELIGIOSO


Num país de desarranjos macro-sociais tão escandalosos, dizer a uma pessoa que seus dilemas econômicos pessoais são de origem demoníaca, a meu ver, é mais satânico do que a maior artimanha que qualquer demônio possa intuir.

De um ponto de vista do marxismo, diríamos que tal discurso – o atrelamento de dilemas pessoais de ordem econômica a elementos do imaginário religioso cristão – é substancialmente ideológico, posto que falseia a realidade e se presta a legitimar certas relações de poder. Esconde a realidade concreta de um fenômeno sob uma capa ilusória que mais entorpece do que convoca à ação transformadora. O discurso religioso, nesse viés, portanto, corre o risco da ideologização em cada palavra que profere. Weber já dizia, por exemplo, que a concepção de vocação em Lutero – profissões seculares enquanto vocações com a mesma legitimidade do sacerdócio religioso – tendia a petrificar determinadas relações trabalhistas, isto é, tendia a legitimar religiosamente o que a partir de Durkheim chamaríamos de divisão social do trabalho.

Entretanto, o risco da ideologização nunca foi um privilégio exclusivo da religião. Toda produção da cultura humana traz semelhantemente o risco onipresente do falseamento da realidade e da legitimação de relações assimétricas de poder: a ciência, a filosofia, a arte e o senso comum.

Nunca nos perguntamos como pode uma massa poderosa de trabalhadores se render – nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, e etc., – como um rebanho manso às vontades interesseiras de seus patrões? Nunca nos perguntamos como pode uma legião inumerável de pessoas se transformarem coletiva e silenciosamente em instrumentos para a produção de riquezas que pertencerão a pouquíssimas e estranhas mãos? Nunca nos perguntamos como as pessoas vão sendo constrangidas a assimilar e a construir sua experiência pessoal ao redor de cada nova falsa necessidade tecnológica produzida pelo mercado – celulares, ipods, iphones, notebooks? Nunca nos perguntamos como as pessoas podem celebrar a idéia insuportável de competitividade (darwinismo social) propalada exaustivamente por todos os lados, sem se dar conta (e sem se comoverem) do fato de que minha inclusão no mercado de trabalho só pode existir à custa da exclusão de outrem? Enfim, nunca nos perguntamos como multidões inteiras deixam-se convencer por discursos religiosos escancaradamente maliciosos e minimamente cristãos?

Uma vez que as respostas a essas questões acima nem sempre estão atreladas ao discurso religioso, é preciso ir a outras instâncias para encontrá-las. É a produção de sentido, aquilo que Marx deu o nome de aspectos superestruturais de dada sociedade, que responde a essas questões. Toda produção de sentido que alimenta as relações assimétricas numa dada sociedade pode ser adjetivada de ideológica. E seus instrumentos e meios hoje, para além da própria Instituição Religiosa, são muitíssimo variados. Adorno e Horkheimer, por exemplo, já combatiam os efeitos alienantes da indústria cultural desde a primeira metade do século passado. E as mídias talvez ainda compareçam hoje como os maiores veículos de produção de sentidos e de difusão de discursos ideológicos.

A partir a Psicologia Social, Pedrinho Guareschi falava em processos psicossociais da exclusão. Tais processos, por sinal, nos ajudam inclusive a responder algumas daquelas questões acima, pois eles indicam o como da difusão do discurso ideológico. Falava ele, por exemplo, da tática da culpabilização, que consiste basicamente em polarizar toda a responsabilidade pelo destino de uma pessoa sobre ela mesma, desconsiderando todos os fatores sócio-político-econômicos que a envolvem. Em outras palavras, com esse recurso o fracasso pessoal é encarado sempre como responsabilidade exclusiva do indivíduo, de sua falta de ação, de sua preguiça, e etc. Táticas como essa, por se basearem em juízos parciais e falsos sobre esses fenômenos e por servirem a determinados interesses, são profundamente ideológicas.

Mas nenhuma delas ainda se compara à demonização dos dilemas econômicos de uma pessoa. A perversidade da demonização, para além de ser um atentado grotesco à inteligência média, consiste em deixar a pessoa sem quaisquer recursos próprios de ação. É um cruzado a la Mike Tyson. A demonização é uma rasteira que ultrapassa em eficácia o molejo e a força de qualquer capoeirista de minha terra natal! O sujeito está entregue aos cuidados de quem detém a eficácia do capital simbólico da religião. Ao dar assentimento a tal discurso, o sujeito abdica de si mesmo. Numa atitude idólatra, é constrangido a operar segundo a crença de que somente por tais meios (correntes, campanhas, sacrifícios...) e somente pela mediação de tais pessoas de determinado grupo religioso (a casta sacerdotal) seu dilema pode ser superado.

Portanto, não há demonização sem o seu correlato: a idolatria. Esse termo deve ser entendido aqui numa acepção tillichiana, ou seja, como elevação de um ente relativo e condicionado ao status de absoluto e incondicionado. E não esqueçamos a dica de Nietzsche, quando nos lembrava que a idolatria apaga certas idiossincrasias inerentes ao ídolo dos olhos do idólatra. Ao dar adesão ao discurso da demonização, a pessoa tropeça inevitavelmente na advertência do profeta Jeremias: “maldito o homem que faz de seu semelhante o seu braço...” (17,5). Transliterando Jeremias: “o homem que elege seu semelhante como única e exclusiva via para a solução de seus dilemas pessoais, vai se deparar logo-logo com o engano e a desilusão”. Um pouco pessimista, concordo.

Portanto, pior do que responsabilizar unicamente a pessoa por seu fracasso pessoal, é fazer dela esse joguete esdrúxulo, essa marionete incauta, a quem eu posso ludibriar com a mesma astúcia do gênio maligno de Descartes. Parafraseando Jesus para terminar (Mt 8,11-12): “digo-vos que muitos capitalistas e neoliberais virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus; ao passo que os funcionários Universais do Reino serão lançados para fora, nas trevas, e ali haverá choro e ranger de dentes... e muita blasfêmia”.

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