quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A SAUDADE COMO JOGO E MAGIA


Com a licença de tod@s, eu hoje não desejo falar nem de teologias nem de teólogos. Eu desejo falar é de saudade! Essa coisa estranha que, conforme dizem, só possui um equivalente verbal em nossa língua portuguesa.

Segundo a estória infantil A menina e o pássaro encantado do Rubem Alves, o amor se alimenta da saudade. A menina, apaixonada pelo pássaro encantado, diz: “vou prendê-lo numa gaiola e ele será só meu, por todo tempo”. Preso, o encanto do pássaro fenece. Triste, este diz à menina: “meu encanto reside justamente na graça de voar livremente”. Porque cada vez que o pássaro regressava de seus vôos, trazia em suas penas o colorido dos lugares onde estivera. Engaiolado, restou-lhe somente um cinza enfadonho. Então, liberto outra vez, regressou-lhe o colorido mágico que a distância e a saudade produziam em suas penas.

Estória bonita. Serve para ajudar os relacionamentos amorosos a se alimentarem da saudade. Serve para ajudar pais e filhos da mesma forma. Serve pra conscientizar a própria religião (não vou falar disso hoje!) de que deuses engaiolados por Dogmas são deuses sem cor, sem graça e sem Graça. Mas essa estória remete a saudades temporárias. Saudades leves, com data marcada para acabar.

Há outras saudades que são incuráveis mesmo. A saudade de quem se foi para sempre, de quem morreu, por exemplo. Como o próprio Rubem gosta de dizer, “saudade é a presença de uma ausência”. “É arrumar o quarto do filho que já morreu”, continua citando o Chico Buarque de Holanda. Não há encanto que a cure. Bonhoeffer dizia numa de suas cartas da prisão que não é correto dizer que Deus preenche a lacuna. Ao contrário, Bonhoeffer escreve, Deus justamente a mantém aberta e, dessa maneira, ajuda-nos a preservar nossa ligação com tal pessoa.

Minha esposa sempre me criticou porque rompi os laços com minha terra natal de forma muito abrupta. Sempre manifestei pouca saudade em relação ao lugar e às pessoas dali. Como um psicanalista à cata do seu insight, ela sempre desconfiou desse meu comportamento. Vez por outra arrisca um psico-diagnóstico leigo. E ela tem razão! Na média, embora muitas pessoas do interior cultivem a máxima de que a cidade grande representa uma expansão nos seus horizontes existenciais, quase todas deixam para trás relações que instigam a saudade, ainda que em doses mínimas. E eu de fato, nesse âmbito, sempre demonstrei uma frieza de causar desconfiança mesmo.

Deixei na Bahia uma família com meu pai e meu irmão mais novo. Tenho também duas irmãs, frutos de um segundo casamento de meu pai, e que vivem com sua mãe, a mulher que me deu criação. Meu pai e meu irmão não os vejo há um ano. Pouca coisa. Mas minhas irmãs e minha mãedrasta não as vejo há muito tempo. Tanto tempo que já não tenho mais idéia de quanto seja.

Muito subitamente me invadiu uma saudade enorme desse povo todo. Saudade produzida por geração espontânea, ex nihilo, como diziam os antigos teólogos (eles insistem em se insinuar a mim!). Fui ao Orkut. Encontrei lá muitas fotos de meus irmãos. Foi pior! Outra coisa inusitada irrompeu de minha penumbra interior: esbocei uma lágrima. Tivesse ela chegado a rolar no meu rosto e estaria aí um desses acontecimentos da história que merecem documentação. Coisa esquisita o que me ocorreu. E essas esquisitices todas denunciam a necessidade perene de nos tornarmos todos, caso ainda não sejamos, parceiros epistêmicos de Sócrates, obedecendo-lhe a convocação: conhece-te a ti mesmo.

Meus irmãos já não são aquelas crianças que deixei anos atrás. Cada um está fazendo o seu caminho. Estão todos bem, saudáveis, bonitos (coisa hereditária!), e submersos em diferentes atividades entre trabalho, cultura e estudos. Como o salmista dizia acertadamente, se transformaram em flechas nas mãos do arqueiro (Salmo 127,4). A imagem deles ali no monitor desabrochou a química mental que me remeteu a outras tantas imagens da infância boa no recôncavo baiano. E de repente redescobri que os amo. Redescobri que família é muito mais que genes, carne e sangue compartilhados. Tudo graças a essa coisa mágica chamada saudade.

Eu e meus irmãos, filhotes no ninho ontem, hoje somos pássaros em pleno vôo. Estamos desengaiolados. Talvez quando a vida nos proporcionar um reencontro, ainda que momentâneo, vejamos o colorido nas penas uns dos outros. Espero que possamos ver as marcas de alegria que a vida está impingindo na trajetória de cada um. E que possamos ver aí o produto colorido do encanto que a saudade fez nascer em nós. Afinal, esse colorido só pode ser visto de perto, bem de perto. Depois, resta retomar o vôo e deixar que a saudade continue seu jogo.

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