sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O ONIPRESENTE AROMA DA MORTE


A queimada dos canaviais alagoanos e seus efeitos sim-bólicos e dia-bólicos


As nefastas influências dos usineiros da cana na sociedade alagoana seguem ininterruptas, e sem prazo de vencimento ou data de validade. Noutra oportunidade eu chamava a atitude predatória dos mesmos de vampirismo econômico. Com essa metáfora eu fazia referência à dieta feita à base do “sangue dos trabalhadores”, como sendo o pão de cada dia da aristocracia agrária nesse estado. E quero continuar explorando a metáfora do vampirismo, mas agora para falar da relação parasitária e predatória dos usineiros frente à Natureza.

Digo todas essas coisas em função da época de moagem da safra que se prenuncia agora. Com ela, iniciam-se as queimadas dos canaviais, condenadas pela edafologia há mais de um século. Mas não se deve estranhar que uma oligarquia agrária que sonega anualmente 98,25% do montante de ICMS devido aos cofres públicos desse estado, também faça vistas grossas a um postulado científico que prevê a conservação dos solos e o bem-estar das comunidades do entorno dos canaviais.

Eu, por exemplo, resido muito próximo à zona dos canaviais. A esta época de queimadas tenho agregado às péssimas condições de saneamento básico do meu bairro, o emporcalhamento do ar pela fumaça das queimadas. E no meu caso os efeitos se agravam, uma vez que psicologicamente isso produz em mim uma sensação de onipresença maligna dos usineiros, que quando não atingem nossa cidadania de uma forma, atingem de outra. Mas talvez isso seja somente o produto inebriante da fumaça tóxica das queimadas!

Faz um ano e meio, numa discussão entre teólogos aqui em Maceió, propus uma avaliação das agressões ecológicas geradas pela atividade canavieira alagoana. Gostaria de citar outra vez um fragmentozinho do meu discurso naquela oportunidade.

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A queimada dos canaviais é um procedimento corriqueiro que antecede a moagem. Sua finalidade é reduzir os custos dos usineiros com a colheita da cana, já que o rendimento do trabalhador cortador de cana ou da colheitadeira é triplicado quando não há queimadas (isto é, quando a palha é cortada). Conforme Manoel Ferreira, “o uso do fogo na agricultura é condenado há mais de um século pelos manuais de conservação do solo e da edafologia, pelas conseqüências negativas por ele provocadas na produtividade da terra”. Vale registrar os casos de Cuba e das Filipinas, que a partir da década de 1970 mecanizaram toda colheita da cana, utilizando a palha como adubo orgânico e, por tabela, reduzindo vertiginosamente os impactos ambientais provenientes das queimadas.

As queimadas reduzem os custos e maximizam os lucros do setor sucroalcooleiro. No entanto é a sociedade que fica com os prejuízos causados por elas. Esse processo agrícola arcaico tem como ressonância a produção concomitante de múltiplas vítimas: na fauna, na flora e conseqüentemente na sociedade humana.

Manoel Ferreira nos informa que as queimadas causam a liberação para a atmosfera de ozônio, de grandes concentrações de monóxido (CO) e de dióxido de carbono (CO2), que afetam a saúde dos seres vivos, reduzindo também as atividades fotossintéticas dos vegetais, prejudicando a produtividade de diversas culturas. As queimadas liberam grandes quantidades de gases que contribuem para a destruição da camada de ozônio na atmosfera e, assim, possibilitam que raios ultravioletas atinjam em maior quantidade a Terra e causem efeitos cancerígenos e mutagênicos. Na mesma linha, o fogo não mata as sementes das gramíneas invasoras e estas, por não estarem cobertas pela palha, germinam rapidamente. Para combater essas plantas invasoras, os agricultores utilizam herbicidas em grande escala e em quantidade cada vez maior, motivo pelo qual a cultura da cana é responsável pelo uso de mais de 50% de todos os herbicidas utilizados na agricultura brasileira. O mesmo agrônomo segue dizendo que são comuns as notícias publicadas sobre a destruição dos remanescentes de vegetação nativa por incêndios, com início a partir das queimadas da palha da cana-de-açúcar, sempre com alegações dos representantes do setor sucroalcooleiro afirmando que o fogo fugiu ao controle[1]. Para ele, mesmo que as usinas paguem as multas e indenizações, não há reparação monetária que recupere a situação original de uma reserva florestal, com sua biodiversidade, seus nichos e seu equilíbrio, que foram destruídos para sempre pelo fogo.

Quanto à fauna, as queimadas eliminam os predadores naturais de algumas pragas, como as vespas, provocando o descontrole destas pragas e exigindo assim a utilização cada vez maior de agrotóxicos, provocando maior contaminação ambiental. Não existe um levantamento estatístico científico sobre a quantidade de animais e de todas as espécies que morrem, em média, por hectare de canavial queimado. Os dados existentes são escassos e representam uma fração bastante pequena da realidade, pois são referentes apenas aos animais que são resgatados com vida e levados a um atendimento emergencial. Assim, estão fora deste levantamento todos os insetos e praticamente todas as aves e pequenos roedores. Também não estão computados animais que conseguem fugir, lesionados, que acabam por morrer em outro lugar. Manoel Ferreira conclui que a queimada da palha da cana-de-açúcar, embora muitas vezes feita com autorização do poder público, é uma prática que infringe a lei, pois provoca danos na fauna, que é especialmente protegida por leis federais e estaduais.

As ressonâncias negativas da queimada da palha cana sobre o homem podem ser abordadas em dois momentos: um primeiro e mais restrito, na perspectiva dos trabalhadores cortadores de cana; e um segundo e mais amplo, em seus impactos na qualidade de vida da sociedade em geral. Seguindo as contribuições de Manoel Ferreira, pode-se dizer que as condições ambientais de trabalho do cortador na cana queimada são muito piores que na cana crua, pois a temperatura no canavial queimado, pela cor escura que apresenta, eleva a temperatura ambiente que chega a mais de 45º C. Além disso a fuligem da cana penetra pela pele e pela respiração circulando na corrente sanguínea do trabalhador. Substâncias cancerígenas presentes na fuligem já foram identificadas na urina desses trabalhadores. Mesmo a substância particulada inalada pelos trabalhadores pode estar associada aos casos de mortes por problemas cardíacos. No geral, as comunidades no entorno dos canaviais sofrem também os danos diretos dessa ação. As pessoas ficam doentes, pois respiram as partículas finas e ultrafinas provenientes das queimadas, que penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Esses poluentes passam para a corrente sanguínea, causando complicações em diversos órgãos. Aumentam as despesas públicas com atendimento, para o tratamento dessas moléstias, e a população normalmente tem que arcar com o custo dos medicamentos e outros procedimentos médicos.

Resumidamente, esses são alguns dos demonstrativos antiecológicos perpetrados pela voragem do capital sucroalcooleiro em Alagoas. Cada um deles torna veraz a afirmação de Boff quando diz que “hoje não apenas os pobres gritam. Gritam também a terra, as águas, os ares submetidos a formas de utilização depredadora e destrutiva (...)”. Hoje, sem perder de vista a dimensão da libertação dos pobres e das minorias oprimidas, é quase um imperativo para a teologia articulada a partir do tema da libertação reconhecer a Terra como outro sujeito em situação de cativeiro. Em Alagoas isso começa justamente na relativização dos ídolos que não somente concentram a posse da terra, mas ainda a espoliam sem qualquer sinal de sensibilidade, senso de preocupação com as gerações vindouras, ou com a construção de uma “sociedade sustentável”. Ademais, sua relação predatória com a natureza e sua relação opressora com a sociedade alagoana confirmam o quadro elaborado por Jon Sobrino quanto à definição teológica dos ídolos: o que fazem, fazem-no sem necessidade de justificarem-se a si mesmos diante dos demais seres humanos.

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Tinha razão Frei Betto quando adjetivava os pretensos biocombustíveis – no nosso caso, o etanol – de “necrocombustíveis”. Está mais do que justificado esse pesado neologismo! Tanto aqui em Alagoas quanto nos outros parques industriais canavieiros do Brasil (como poucas e felizes exceções), a proporção entre aqueles que são beneficiados pela produção de biocombustíveis como o etanol é muitíssima inferior em relação àqueles que são prejudicados pela mesma produção. Entre esses últimos estão os bóias-frias cortadores de cana, trabalhadores do chão de fábrica de usinas canavieiras, moradores de vilas de operários desse ramo, e cidadãos que vivem nas proximidades dos canaviais, seja na cidade ou no campo.

O genocídio da cana, entre os tais, se faz de muitas maneiras. A uns, ela extirpa a vida muito rapidamente. [Saibam vocês que a produtividade média de um trabalhador do corte de cana é de apenas quinze anos.] São incontáveis os casos de homens e mulheres que, submetidos a jornadas extenuantes e a metas que prevêem o corte de dez a quinze toneladas diárias, tombaram em função de colapsos cardíacos súbitos e fulminantes. Mas a outros a cana vai sorvendo a vitalidade num gota à gota. Gente como eu, que, se não bastasse a presença simbólica e psicológica dos usineiros refletidas nas imagens diárias das injustiças sociais de Alagoas, ainda têm que trazer a ação assassina da cana dentro dos pulmões, via fumaça das queimadas dos canaviais.

Oxalá esses fantasmas sejam somente produto químico da fumaça das queimadas. E que o vento leve rapidamente consigo não somente o odor incômodo da fumaça da cana, mas também o aroma da morte e da onipresença dos vampiros que insistem em sobreviver à custa do sangue desse povo.


[1] Para obter exemplos dessa natureza com relação ao caso alagoano cf. FLORES, Alder. Meio Ambiente – Uma contribuição para Alagoas. Maceió: Imagem Gráfica Rápida, 1999, p. 188-189.

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