quarta-feira, 16 de setembro de 2009

400 ANOS DE AMBIVALÊNCIA: E DAÍ?

Virtudes e vexames históricos entre os Batistas no Brasil e no mundo

Introdução

Eu gostaria de continuar a refletir sobre a vida das comunidades cristãs Batistas, aquecido pela luz de seus 400 anos de história no Ocidente. Mas seria necessário antes prever alguns riscos que não mencionei no artigo anterior. O maior deles é o risco da generalização. Os Batistas têm uma sólida presença em todo o mundo. Portanto, todo cuidado é pouco a fim de não se rotular, como quer que seja, o todo em função da parte. Por exemplo, como batistas brasileiros (já enormemente plurais em tudo!), não podemos projetar nossas idiossincrasias para a totalidade dos batistas no mundo. Não uniformizemos conceitualmente aquilo que é múltiplo na vida!

Portanto, nas considerações a seguir procurarei levar isso em conta. Mas não excluímos a possibilidade de que nossa experiência no Brasil permita alguma generalização para outros cantos. E no fim das contas é isso mesmo que queremos: um quadro mais ou menos geral. Afinal, o aniversário de 400 anos é dos Batistas em todo o mundo.

O que eu desejo nesse artigo é ser menos descritivo que no anterior, e problematizar sobre alguns desafios que se põem diante dos cristãos e das comunidades batistas nesse quadrante histórico. Então minha argumentação se dará sob o seguinte esquema: (I) vou tentar identificar na dinâmica desses grupos, elementos que considero de natureza progressista, isto é, elementos que sejam virtudes históricas que podem servir como proposições para a própria sociedade; e (II) vou tentar identificar também na dinâmica desses grupos elementos que considero de natureza retrógrada e reacionária, isto é, elementos que sejam vexames históricos a serem relativizados junto à própria sociedade. Numa palavra, esse tipo de reflexão poderia ser definido como estudo das ambivalências inerentes a uma [e à toda] formação institucional-religiosa.

Nesse primeiro momento, (1) me focarei no tema da democracia radical como forma de organização das comunidades batistas, identificando nisso um elemento progressista e de poder propositivo para a sociedade. Depois, (2) discursarei sobre o tema da cultura patriarcal, vendo na teologia e na vivência religiosa dos batistas um dos vetores dessa cultura no ocidente, e, portanto, como elemento retrógrado a ser relativizado no diálogo com a sociedade.

A idéia de “democracia radical” como virtude histórica e proposição para a sociedade

Conforme sua proposta organizacional e tradicional, as comunidades Batistas devem ser regidas sob o princípio de uma democracia radical. Isso advém, como tentamos dizer no artigo anterior, de sua compreensão acerca do ser humano como sujeito feito à imagem de Deus, portador de uma dignidade subjetiva e de uma liberdade de consciência inalienável por quem quer que seja – instituição eclesiástica ou estado. Foi por isso que Israel Belo de Azevedo deu à sua tese de doutorado acerca da formação do pensamento dos batistas brasileiros o título de A celebração do indivíduo.

Nisso os Batistas se adiantam em muito a uma democracia representativa como modelo político-governamental consolidado em boa parte das repúblicas ocidentais. O centro do governo e do direcionamento da vida comunitária batista é cada sujeito. Essa democracia radical como forma igualitária do exercício do poder não deve ser relativizada nem mesmo pelos “oficiais do culto” – pastores, pastoras, diáconos e diaconizas. A relação que esses devem manter na dinâmica comunitária é muito mais operacional e instrumental que uma relação hierárquica e de poder sobre os demais. Dito mais claramente, a densidade do poder decisório numa comunidade batista deve ser radicalmente igualitária entre seus membros, incluindo os seus dirigentes.

[É sempre oportuno lembrar que o diferencial do pastor e da pastora batista não é o status do poder, mas o status da arte de cuidar.]

Historicamente, parece ser uma tendência entre os batistas atribuir suas crises internas à fraqueza dessa democracia radical. Centra-se a atenção, nesses momentos de crise, nos abusos que podem advir de tamanha igualdade no exercício do poder. E eles existem mesmo! Esse texto se tornaria extenuante se nos puséssemos a enumerar todas as possibilidades e abusos que advém da partilha radical do poder numa comunidade, qualquer que seja sua natureza. Dessa maneira, há entre nós muito lamento em torno dessa democracia radical. E há inclusive quem a identifique como a raiz fundamental de toda crise entre os batistas brasileiros. Mas eu teria duas objeções ligeiras a essa postura.

Primeiro, eu diria que é sempre bom suspeitar de toda investida que vise a centralização do poder, em qualquer atividade humana. Em conseqüência disso, acho salutar a resistência a todo projeto explícito de concentração do poder, já que suas marcas são inevitavelmente a estratificação das pessoas e a subjugação de uns aos interesses de outros. No nosso caso batista, voltar às formas de regulação comunitária assentadas na centralização de poder é um retrocesso escandaloso e inaceitável. Segundo, as democracias republicanas ocidentais, marcadas por uma interessante variação da democracia que é a representativa, vêm paulatina e eloquentemente nos convencendo de que em toda variação do exercício democrático do poder existem riscos a assumir. E o mais popular deles – tão freqüente no Brasil – é o risco da representatividade tornar-se uma falácia e uma ilusão (em caso de dúvidas, vide nosso Senado!).

Com efeito, vou tentar justificar sucintamente porque adjetivei a democracia radical dos batistas de progressista, e em que ela é uma proposição para a sociedade.

Antes, uma rapidíssima palavra sobre o próprio sentido de progressista aplicado aqui.

Idéias e práticas devem ser consideradas progressistas quando elas propuserem elementos que se mostrem à frente dos estreitamentos de sua época. Quando elas se prestem a aperfeiçoar sempre e mais as formas de convívio humano, e se contraponham àquelas que oprimem e servem aos interesses de uns poucos. Nisso, consideramos a idéia de democracia radical da organização das comunidades batistas (talvez não a prática histórica da mesma) profundamente propositiva para a organização política de nossas sociedades ocidentais.

Como eu já afirmei, essa democracia radical é progressista porque se assenta numa concepção do ser humano profundamente positiva. O que lhe subjaz é uma afirmação das potencialidades que todas as pessoas têm de, vivendo em comunidade, organizarem-se de uma maneira que seja ética para todos. Essa noção do ser humano é profundamente progressista se comparada aos modelos de organização política, jurídica e religiosa, por exemplo, comuns em nossas sociedades. A maioria dessas últimas está fundada numa noção estratificada das pessoas. Há aqueles com credenciais para dirigir e aqueles com credenciais para serem dirigidos. Há aqueles para quem certas leis têm uma validade relativa (políticos, magistrados, portadores de curso superior, por exemplo) e aqueles para quem essas mesmas leis têm validade radical (o cidadão “comum”). Pensem, por exemplo, em todas as inimputabilidades e privilégios políticos e legais de que gozam por lei nossos governantes e magistrados. Elas não se baseiam numa concepção estratificada e meritocrática do ser humano?

A organização democrática radical dos cristãos batistas, por sua vez, funda-se unicamente na convicção de igual status humano de que as pessoas gozam como filhos e filhas de Deus. Não há elementos meritocráticos para estratificar o exercício do poder. É na simples pertença à condição de filhos e filhas de Deus que os batistas ancoram sua organização democrática radical.

Tal democracia radical deve ser adjetivada como progressista também pelo fato de assistirmos hoje (com muita felicidade, por sinal!) a uma reprodução da mesma na esfera pública, ainda que a passos muito lentos. Vocês não conseguem enxergar isso no movimento que a sociedade civil vem fazendo, no sentido de caminhar para formas mais participativas da administração pública? Pois é assim que interpreto, por exemplo, os Conselhos Municipais de Saúde e Educação, os conselhos responsáveis pelo Orçamento Participativo, isto é, todos os Conselhos Gestores que são mecanismos de participação popular nas decisões administrativas dos governos nacionais, estaduais e municipais. Oxalá o transcurso da história reserve para nós a possibilidade de vermos surgir mecanismos cada vez mais comprometidos com a participação popular na administração da vida pública. E oxalá nos eduquemos cada vez mais para essa democracia radical.

Não seria esse também o remédio ideal para a crise institucional dos batistas? Em lugar de retroceder até formas aristocráticas do (ab)uso do poder, não seria o caso de voltarmos a nos educar para a democracia radical em matéria de religião?

A “cultura patriarcal” como vexame histórico e ser relativizado junto à sociedade

No meio dos meus interesses sobre o estudo da ideologia, uma preocupação que me ocupa é a seguinte: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas são instrumentos ideológicos para engendrar nas pessoas uma falsa consciência sobre a vida? Penso que essa é uma pergunta capital para pastores, pastoras, teólogos e teólogas, e não somente para os psicólogos sociais e sociólogos críticos.

Em relação ao nosso tema de agora, a pergunta ganha a seguinte versão: Quanto os nossos discursos e as nossas práticas religiosas criam e consolidam noções opressoras nas relações de gênero?

Embora eu veja a discussão sobre a ordenação de mulheres ao ministério pastoral como um tópico central desse debate, não me circunscrevo a esse tema quando falo das opressões nas relações de gênero. Nos últimos anos, a ordenação feminina entrou na pauta como tema candente desse tópico maior. Somente há 10 anos ordenamos, sob muita tensão e resistência, a nossa primeira pastora batista. Mas existem outros tantos problemas advindos dos discursos e das práticas de gênero entre os batistas que permanecem na obscuridade, e que dificilmente ganharão visibilidade já que estão naturalizados entre nós pela via de uma teologia e de uma catequese tradicionalista e perene. Não obstante a isso, vou me aferrar somente ao tema da ordenação de mulheres ao pastorado, pois ele é suficiente enquanto exemplo de toda uma cultura religiosa ainda atrelada a uma cosmovisão patriarcal.

Uma advertência prévia, todavia, se faz necessária: a luta geral pela “libertação das mulheres” e a luta específica pela inserção das mesmas no ministério pastoral batista não se faz como uma espécie de reprodução das tendências da sociedade pós-moderna. Nos acalorados debates sobre a temática essa é uma acusação muito recorrente. Aí, o “liberalismo inclusivista” em relação à inserção das mulheres no pastorado é interpretado como concessão e como adequação à cultura vigente, como se dependêssemos disso para a credibilidade das pessoas. Para sobreviver e ter espaço na cultura atual, dizem os acusadores, tais “liberais” querem fazer concessões a esta. E como a inclusividade das mulheres no mundo trabalho é um dos valores dessa cultura, sua versão religiosa seria a inserção dessas no ministério pastoral. Eu desejo relativizar tal visão das coisas.

A inserção das mulheres no ministério pastoral entre os batistas, em lugar de ser uma concessão à cultura atual, deve ser vista como produto de uma releitura do próprio Evangelho, sobretudo na maximização existencial deste como temos em Jesus de Nazaré. Deve ser vista como fidelidade ao próprio Evangelho, que em si mesmo é o melhor contraponto à cultura patriarcal de que temos notícia desde o fim da Antiguidade Clássica.

A inserção das mulheres no ministério pastoral batista nos põe diante da interessante questão: Que é ser cristocêntrico? O enfrentamento honesto dessa questão, pelo menos entre os batistas brasileiros, deveria nos conduzir à outra questão: É possível ser cristocêntrico na pregação e não sê-lo nas relações todas que construímos na vida? E mais essa: Estamos de fato sendo cristocêntricos quando não reproduzimos em nossas relações de gênero a atitude de Jesus de Nazaré? Ou: Estamos sendo cristocêntricos quando excluímos as mulheres do exercício do ministério pastoral? Se o fundamento antropológico da democracia radical é o status comum que temos como filhos e filhas de Deus, que fundamento antropológico está por trás da segregação das mulheres ao pastorado? Não é contraditório assumir o status comum de ser humano numa situação (política comunitária) e negligenciá-lo em outra similar (ordenação feminina)? O status comum que gozamos como filhos e filhas de Deus não deveria ser oni-abrangente? O Evangelho responde a essa última questão com um alegre e novo Sim! Na sua linguagem ele afirma: “O Espírito foi derramado igualmente sobre homens e mulheres!” (At 2,18).

Notem que em todo meu esforço para fundamentar uma atitude inclusiva das mulheres no pastorado não me remeti à cultura moderna, nem mesmo ao movimento feminista! E nem o farei! Isto porque não estou bem certo de que temos aí uma libertação das mulheres em sentido radical. Talvez essa libertação esteja circunscrita ao Capital e suas necessidades. Tenho suspeitas de que os novos espaços ocupados pelas mulheres em nossa cultura não sejam somente produtos de uma conquista articulada das mesmas, mas possam ser também fruto das imposições do Capital que impõe novas configurações no mundo trabalho a cada década. Desconfio de que certas pontencialidades próprias do universo feminino – culturais ou geneticamente herdadas, não sei – sejam propícias à certas necessidades do Capital nesse quadrante histórico, e que tamanha inserção das mulheres no mundo trabalho possam estar relacionadas também a isso. Mas são somente desconfianças, e não certezas.

De todo jeito, quer essas mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres sejam fomentados pelas necessidades do Capital, quer pela luta articulada das próprias mulheres, em termos práticos o que temos é uma paridade de funções que deve ser o prelúdio de uma generalização para todas as relações sociais. Homens e mulheres permanecem idiossincraticamente diferentes, mas idênticos nos direitos e nas relações mútuas que estabelecem entre si, sobretudo idênticos quando se trata de gerenciar a vida. Dessa maneira, ainda que a inserção das mesmas seja de fato uma artimanha do Capital, ela serve como sinalização para aquilo que o Evangelho já havia postulado: o status comum que homens e mulheres devem ter na administração do mundo. Então, não pegamos carona na cultura moderna com nossa inclusividade das mulheres. O que fazemos é, por meio de sua sinalização, voltarmos ao Evangelho que com outras motivações já dizia que homens e mulheres são igualmente dignos de acolher o dom da vida. Por isso, não existem dissimetrias de qualquer espécie entre eles. Ninguém é cabeça de ninguém!

Conclusão

Na verdade, ainda não está na hora de concluir. Seguindo o mesmo esquema desse artigo, eu desejaria ainda dizer alguma coisa sobre outro par formado por um elemento progressista e um retrógrado entre os batistas brasileiros. Mas aí esse texto ficaria mais longo do que eu gostaria. Portanto, desejo prosseguir essa reflexão pensando ainda na (3) liberdade e na pluralidade como resistência ao controle institucional e ideológico presente entre os batistas brasileiros como outro elemento progressista de sua mentalidade e de sua prática. Depois, desejo pensar sobre a (4) pretensa neutralidade política como mais um elemento retrógrado de suas convicções ideológicas.

Não obstante, acredito que esse brevíssimo exercício reflexivo deva ter servido para nos provar que a ambivalência é algo próprio das instituições religiosas, e que a melhor atitude entre nós é assumi-la com honestidade, e pensar com a mesma honestidade nos melhores meios de minimizá-la. De outra forma, eu também desejava rechaçar a um certo maniqueísmo comum até a gente bem instruída, para quem as instituições religiosas compõem as “forças malignas da história” na luta contra as “forças benévolas” – entre as quais a própria Ciência desses instruídos. Fazendo assim – isto é, discernindo e trabalhando nossa ambivalência –, ganha a sociedade como um todo, e nós como grupo religioso em específico.

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