segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LIBERDADE, PLURALIDADE E FRATERNIDADE


Uma meditação sobre os 400 anos de história dos Batistas


Introdução

O ano de 2009 vem marcado pelo arredondamento de datas importantes da história do Ocidente.

Por exemplo, nesse ano completam-se 220 anos da Revolução Francesa de 1789 como a tentativa de construir uma sociedade alicerçada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em 1899, há 110 anos, Freud concluiria sua A Interpretação dos Sonhos, que daria impulso significativo à Psicanálise, ainda que a obra tenha sido publicada um ano depois. A crise econômica mundial deflagrada com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 completa 80 anos. Assim como o início da Segunda Guerra Mundial em 1939 e suas nefastas conseqüências completa 70 anos. Já se vão exatos 50 anos desde a Revolução Cubana que em 1959 pôs Fidel à frente daquela ilha. Também em 1959, há 50 anos, meu Bahia seria campeão brasileiro pela primeira vez, em cima do Santos de Pelé! Há 40 anos Neil Armstrong daria em solo lunar aquele que, segundo ele, teria sido “um pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade”, mesmo para a descrença de minha avó. Também já são 20 anos desde que em 1989 a queda do Muro de Berlim representou um duro golpe nas aspirações socialistas em todo mundo.

Para os cristãos batistas em todo o mundo 2009 chega também como uma data especial. Conforme nossa historiografia científica mais confiável, a primeira comunidade de cristãos batistas apareceria em 1609, há exatos 400 anos.

As três hipóteses sobre a gênese dos batistas

De fato, existem três hipóteses para explicar a gênese das comunidades batistas na história. A primeira delas mescla a fantasia com o sentimento de “assepsia espiritual” – que é aquela ingênua convicção de que nossa fé está isenta de hibridismos e sincretismos –, e identifica a gênese dos grupos batistas já no Novo Testamento. Ganhou a alcunha de “teoria JJJ” (João-Jordão-Jerusalém) e consiste numa espécie de “sucessão apostólica protestante”, já que supõe uma continuidade ininterrupta e incorrupta entre os primeiros batistas dos templos bíblicos e os batistas atuais. A segunda hipótese liga a gênese das comunidades batistas aos grupos anabatistas contemporâneos à Reforma Protestante do século XVI. Embora existam certas similaridades entre as ideologias desses dois grupos, há também fortes distinções entre ambas, muito embora não se descarte a possibilidade de que os primeiros batistas do século XVII tenham recebido influencia indireta daqueles primeiros.

A terceira hipótese, que é a que adotamos, nos parece ser mais coerente que as demais. Ela identifica a gênese dos grupos batistas no centro dos movimentos religiosos dissidentes da Igreja Anglicana no início do século XVII. Identifica também a gênese dos batistas com mais um dos elementos responsáveis pelo liberalismo inglês, que entre os batistas teve como grande contribuição a luta pela liberdade de consciência e pela liberdade religiosa. A coerência dessa hipótese se assenta num material empírico facilmente disponível a quem deseje: documentos religiosos como declarações doutrinárias, pactos inter-eclesiais, confissões de fé textuais, e etc. Esses são materiais empíricos importantes à investigação histórica, e que faltam nas duas primeiras hipóteses sobre a gênese dos batistas. Está claro que a credibilidade que dou à terceira hipótese se deve à cientificidade que lhe subjaz. Mas isso é muito pessoal.

Algumas peculiaridades Batistas em destaque

Os batistas são um grupo cristão com certas peculiaridades que cabe destacar.

Por exemplo, carecemos de um “patriarca” ou de uma “matriarca” que possam ser pontualmente discernidos na gênese histórica de nossa fé. Os luteranos o têm em Martin Lutero. Os presbiterianos em João Calvino. Os menonitas em Meno Simons. Os metodistas em John Wesley. Para a Assembléia de Deus, são os suecos Gunar Vingren e Daniel Berg. Para a Igreja Universal, Edir Macedo. Nesse sentido, os batistas são órfãos. É verdade que entre os que trabalham com a terceira hipótese acerca da gênese dos batistas, identificam-se nos ingleses John Smith e Thomas Helwys os primeiros pastores desse grupo religioso. Mas isso nunca foi suficiente para que esses dois líderes batistas fossem reconhecidos como “patriarcas históricos”. A prova cabal disso é o fato de que John Smith e Thomas Helwys permaneçam profundamente desconhecidos para a grande maioria dos cristãos batistas de hoje.

Outra interessante peculiaridade dos batistas é o pluralismo teológico presente já na sua gênese. Já as primeiras comunidades batistas na Inglaterra do século XVII surgiram ao redor de duas grandes tendências teologicamente distintas: os batistas gerais e os batistas particulares. Os primeiros – os batistas gerais – mais identificados com uma tradição arminiana, isto é, com uma concepção mais otimista acerca da natureza humana e com uma concepção mais abrangente acerca da salvação em Jesus Cristo, no qual todos os homens são eleitos e devem eles mesmos se posicionar diante disso. Os segundos – os batistas particulares – mais identificados com uma tradição calvinista, isto é, com uma antropologia mais pessimista alimentada pela idéia de “depravação total” da natureza humana, e com uma noção mais exclusivista de salvação, circunscrita somente àqueles a quem Deus elegeu em particular.

Muito embora essas designações tenham caído em total desuso (batistas gerais e particulares), é possível dizer que ainda hoje os batistas são caracterizados por um pluralismo teológico dificilmente encontrado em outras denominações cristãs. É nesse sentido que é melhor falar sempre em teologias batistas, e nunca numa teologia batista. Na contramão de uma postura altamente reacionária que vê no pluralismo teológico um defeito e uma fraqueza, enxergamos aí um elemento idiossincrático positivo, próprio de nossa identidade e talvez de nossa originalidade.

Esse pluralismo teológico deve ser visto como produto daquilo que constituiu a própria luta histórica dos primeiros batistas ingleses: a luta pela liberdade. E gostaríamos de ratificar que o pluralismo não é o “filho bastardo da liberdade”, mas é seu filho mais legítimo! Isso pode ser visualizado também nas próprias formas litúrgicas das comunidades batistas de ontem e de hoje. Quando o historiador batista estadunidense Walter B. Shurden dizia que “não existem duas igrejas batistas iguais”, isso deveria ser entendido radicalmente: teológica, doutrinária e liturgicamente. E não é na bibliografia religiosa que se comprova essa tese, mas na própria vida das comunidades batistas. Basta fazer o teste de visitar algumas delas e provar se isso procede ou não.

O mesmo Walter B. Shurden sintetizou a luta histórica dos batistas pela liberdade em quatro grandes eixos didáticos, que ele chamou de:

1) Liberdade da Bíblia (liberdade pessoal para interpretar Bíblia);

2) Liberdade da Igreja (liberdade para a própria comunidade religiosa organizar a si mesma);

3) Liberdade Individual (liberdade de consciência pessoal na escolha de todo tipo de ideologia, seja secular seja religiosa); e

4) Liberdade Religiosa (liberdade e equidade nos direitos de todo tipo de confissão religiosa a despeito do poder do estado).

Shurden adjetivava essas liberdades de “frágeis”, uma vez que entre os próprios batistas observam-se duas tendências negativas em face delas:

1) Os próprios batistas se retraem ante o fluxo de tamanha liberdade, uma vez que o seu produto natural é sempre um pluralismo e uma diversidade inédita no campo religioso. Nesse sentido, muitos atos inquisitórios que são realizados em nome da tradição batista, na verdade se movem contra o que há de mais idiossincrático para essa mesma tradição, que é a liberdade pessoal e eclesial;

2) Há casos em que a liberdade religiosa, conquistada à custa de muita luta pelos primeiros batistas enquanto grupo cristão marginal, é cerceada aos grupos religiosos que hoje ocupam a marginalidade. É o uso da própria liberdade para castrar a liberdade alheia.

Os batistas e a sociedade brasileira

No Brasil, os batistas têm já uma história de 127 anos. Seus primeiros missionários chegariam ao Brasil em 1882, no epicentro do missionarismo protestante estadunidense da segunda metade do século XIX. Se, por um lado, a nossa leitura desses fatos não deve perder de vista as motivações especificamente religiosas, por outro lado, nunca deveríamos nos abstrair de levar em consideração também outras aspirações desse missionarismo. Assim nossa leitura fica mais abrangente, mais integral.

De um lado, temos nesse missionarismo a continuidade do resgate da tarefa de evangelização mundial ressuscitado na Europa por Willian Carey. Por outro lado, temos nesse missionarismo uma espécie de vetor dos valores liberais-modernizantes consagrados na Europa e nos Estados Unidos, e ainda ausentes na cultura brasileira, à época marcada pelas desgastadas relações coloniais na política e na religião. Resumindo, esse missionarismo estadunidense que contaria com os batistas como uma de suas grandes representações, conseguiu amalgamar num único projeto a transformação religiosa do Brasil com sua transformação cultural – política e social. Não é por acaso que o anticatolicismo tenha sido um dos valores mais presentes para aqueles primeiros batistas brasileiros, uma vez que o atraso civilizacional do Brasil era identificado com a influência e com a hegemonia da Igreja Católica – leitura vigente ainda em nossos dias.

Anticatolicismo na teologia e proselitismo na missiologia foram os componentes do grande crescimento numérico dos batistas brasileiros até um pouco depois da primeira metade do século XX. A segunda metade do século XX trouxe aos batistas brasileiros algumas situações novas que ainda carecem de estudos científicos consistentes, tanto pelos seus teólogos quanto pelos sociólogos ou cientistas da religião. E eu vou caminhando para o fim desse artigo pontuando ligeiramente alguns desses elementos.

O primeiro deles diz respeito às respostas dos cristãos batistas em face do clima de inquietações da sociedade civil brasileira em relação aos desastres do capitalismo dependente e do “fantasma comunista” que rondava os países latino-americanos a partir da década de 1960. Permanece pouco conhecido entre os batistas brasileiros, sobretudo entre suas lideranças eclesiais, o Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil de 1963, que se constitui como excelente testemunho textual das preocupações de uma ala de pastores batistas quanto à transformação das condições sociais do nosso país. Apesar disso, faltam estudos mais precisos sobre a postura dos batistas brasileiros diante da ideologia de “segurança nacional” levada a cabo pela Ditadura Militar de 1964-1985. Há muita desconfiança de que o elemento estadunidense na matriz religiosa dos batistas brasileiros tenha levado a uma identificação com uma postura anticomunista e de adesão à política do Governo Militar. Mas faltam-nos estudos científicos que confirmem ou contradigam essas suspeitas.

Outro elemento que merece destaque aqui diz respeito aos movimentos religiosos carismáticos que campearam tanto no protestantismo histórico quanto no catolicismo a partir da década de 1960. É interessante o fato de que os carismatismos religiosos tenham encontrado lugar nesses dois ambientes concomitantemente. Para os batistas brasileiros, os movimentos carismáticos representaram uma fragmentação ainda maior em termos denominacionais, e uma relativização de uma visão tradicionalista arraigada entre essas igrejas. Em 1965, entre os batistas brasileiros aconteceria a maior cisão interna dessas igrejas, com o aparecimento da Convenção Batista Nacional (CBN) impulsionada pelos ventos carismáticos. No Brasil, a inserção da chamada Teologia da Prosperidade se daria na confluência junto às tendências carismáticas. O neopentecostalismo, por exemplo, é ao mesmo tempo um movimento carismático (no sentido técnico que estamos lhe atribuindo aqui).

Ao que tudo indica, entre os batistas brasileiros, em especial, os efeitos de todas essas alterações religiosas nunca foram bem administrados. No lugar de assumir o pluralismo como efeito normal de sua liberdade, tais igrejas o representaram como uma ameaça à sua própria identidade. Por tabela, muitas dessas comunidades, numa atitude autodefesa, refugiaram-se num tradicionalismo profundamente prejudicial ao seu próprio crescimento numérico. E a grande contradição advinda disso é a seguinte: mesmo gozando de grande credibilidade perante a sociedade brasileira como um todo, os batistas têm tido um crescimento numérico muito menor em relação àqueles grupos cuja imagem é supostamente menos credenciada perante a mesma sociedade. Em complemento a isso devemos destacar que os batistas brasileiros estão os grupos cristãos cuja atividade missionária está mais em evidência. As grandes articulações coletivas dos batistas brasileiros – em âmbito, mundial, nacional e estadual – são todas de natureza missionária. No entanto, é claro o desnível de crescimento numérico em relação aos grupos cuja ocupação missionária não é tão evidente. Não é esta uma contradição interessante e digna de uma boa investigação?

Conclusão

Uma das perguntas que nos surgem nesses 400 anos de presença batista na história mundial seria a seguinte: existe um legado especial desses grupos religiosos à história do Ocidente? Pessoalmente, eu identificaria esse legado na construção de um sujeito portador de liberdade. É bem verdade que a liberdade de consciência, enquanto um dos valores mais caros ao liberalismo moderno, tem sido identificada como um dos elementos na base do individualismo radical de nossos dias. Mas não podemos fazer uma ligação tão direta assim – entre o liberalismo moderno e individualismo atual – sem passar por uma discussão atenta sobre o neoliberalismo e as condições sócio-político-econômicas que lhe possibilitaram. Por outro lado, quem entre nós estaria disposto a abdicar de sua liberdade de consciência em nome da seguridade e do controle ideológico das igrejas e do estado?

Os batistas têm, portanto, direta participação na construção do sujeito ocidental, tido por digno em sua pessoalidade – teologicamente diríamos feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27) –, portador de direitos fundamentais, responsável por sua própria conduta, que emerge na modernidade. Repito: se essa concepção descambou hoje num individualismo indesejado, nem por isso desejamos retroceder ao nível de uma impessoalidade tutelada pelas igrejas ou pelo estado. Devem existir outras vias melhores.

A liberdade individual necessita ter como único produto uma atitude individualista? O pluralismo ideológico precisa ser sempre visto como corrupção da liberdade? E ninguém pense que essas questões estão referidas somente à vida das comunidades batistas. Elas são questões que dizem respeito ao todo de nossas sociedades, e que são fomentas por essa ocasião especial dos 400 anos de história dos batistas. Em outras palavras, essa ocasião nos fustiga a pensar não somente no futuro das comunidades de cristãos batistas. Elas nos fazem refletir nas alternativas que temos enquanto sociedade. Há alguma vivência da liberdade que não precisa desembocar no individualismo? Há algum tipo de vivência da liberdade que consiga conjugar o pluralismo ideológico e o comunitarismo fraternal? Ou já escambamos aqui para o utopismo?

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