segunda-feira, 7 de setembro de 2009

MUITA FORÇA CRISTINA!


Um modelo da opção preferencial dos pobres

Na mesma semana em que Cristina me visitou a fim de oferecer-me sua criança – a quem não pude adotar em função de um conjunto enorme de fatores –, um facho de esperança parecia iluminar timidamente essa história. Um dia após a visita de Cristina eu receberia um telefonema de alguém que havia lido e repassado via lista de emails o texto Cristina é invisível. De fato, nenhum outro dos meus textos proporcionou tanto retorno quanto este. Porém, o melhor desses retornos foi aquele em que um casal, até então desconhecido, se dizia desejoso de adotar a criança de Cristina.

Pela mediação daquela primeira pessoa que havia lido e repassado o Cristina é invisível, eu pude conhecer esse casal. Nós conversamos muito. Ouvi atentamente a história deles e a fundamentação emocional que embasava o desejo de adoção de uma menina. Tratava-se de “razões do coração” que não competem um detalhamento aqui. Mas posso lhes afirmar que a mais remota possibilidade de adoção de uma menina era suficiente para fazer brilhar os rostos daquele homem e daquela mulher.

Marcamos uma visita à Cristina, que em sua ida à minha casa havia deixado o seu endereço comigo. No percurso entre Maceió e a cidade de Cristina eu ia escutando de Marco Antonio – que é o pseudônimo que estou dando ao pretendente à adoção da criança de Cristina – mais detalhamentos de sua história junto a sua esposa. A fala dele estava aquecida por uma ansiedade parecida com aquela que as crianças mostram antes de receber os presentes no Natal. Já na cidade de Cristina, Marco Antonio chegou a cogitar a possibilidade de que ela tivesse voltado atrás em sua decisão de doar a filha. Afinal, já se havia passado vinte dias desde que Cristina me visitara. E de fato, esse é um lapso de tempo suficiente para mudanças significativas quando se trata de dilemas dessa natureza.

Antes mesmo que eu chegasse ao seu endereço, avistei Cristina no meio da rua. Fui ao seu encontro enquanto Marco Antonio preferiu não se dar a conhecer por ela, o que é sensato em todos os processos de adoção. A preservação da identidade dos casais que adotam em relação às famílias que doam é imprescindível, a fim de evitar futuros transtornos oriundos de arrependimentos e etc.

Cristina, ainda gestante, havia mesmo voltado atrás em sua decisão de doar sua menina. “Não quero mais dar a minha filha pastor, pois isso é um pecado de morte”, Cristina me dizia ali, no meio da rua mesmo. Num primeiro momento, a assertiva “pois isso é um pecado de morte” soou para mim como uma simples força de expressão. Aquilo havia me passado como todos esses ditos religiosos que internalizamos e dizemos com muita espontaneidade, como “ave maria”, “pelo amor de deus” e tantos outros... No povo pobre esses ditos são ainda mais freqüentes e variados. Portanto, não me causou nenhuma suspeita.

Mas o “pois isso é um pecado de morte” de Cristina, na verdade, era um fragmento confessional do que lhe havia ocorrido naquele interregno de vinte dias entre sua visita à minha casa e o meu encontro com ela em sua cidade. O “pois isso é um pecado de morte” de Cristina confirmava tristemente as suspeitas de Marco Antonio. De fato, naquele interregno algo havia ocorrido.

Na contramão do meu conselho de vinte dias atrás, Cristina não havia procurado o Conselho Tutelar de sua cidade. Ela procurara uma igreja evangélica pentecostal. Ali, diante dela no meio da rua, e num espaço mínimo de tempo, eu me dava conta do tamanho de minha ingenuidade. Entre a burocracia fria e vagarosa de nossas instituições públicas e as promessas quentes e imediatistas do discurso pentecostal, como alguém na situação de Cristina faria opção pelas primeiras? E ela me dizia que na igreja pentecostal havia sido convencida de que doar sua criança seria um pecado mortal. “O pessoal da igreja está me ajudando; estou conseguindo um trabalho numa casa de família e voltei para o meu companheiro”, ela me relatava. “Minha filha nasce ainda esse mês, e eu não posso dar não, pois isso é um pecado de morte”, ela completava.

Sem dúvida alguma, essa bifurcação – a frieza e vagarosidade burocrática de nossas instituições públicas e o fervor imediatista do discurso pentecostal e neopentecostal – não pode nos escapar se quisermos compreender menos unilateralmente o sucesso desses últimos grupos religiosos. Aqui também está o “calcanhar de Aquiles” dos movimentos religiosos ditos progressistas, entre eles a própria Teologia da Libertação. Entre esses movimentos, quer católicos ou protestantes, uma das diretrizes fundamentais é a de que os pobres e oprimidos devem se tornar “sujeitos de sua própria história” e “autores de sua própria libertação”. Mas o que fazemos com as opções de libertação que os próprios pobres e oprimidos estão fazendo sem a nossa assessoria? Ou os tais só serão “sujeitos e autores de sua própria libertação” se adotarem o nosso projeto libertário previamente formulado?

“Mas Cristina, qual é o pecado mais mortal: doar sua criança para a adoção ou criá-la sem as mínimas condições como você mesma havia me dito há vinte dias?”, eu lhe retrucava. Cristina, por seu turno, insistia em sua decisão, que obviamente deveria ser respeitada. E foi. Primeiro por mim mesmo ali, e posteriormente por Marco Antonio. Ela insistia no suporte comunitário que começara a receber do seu novo grupo religioso como condição factível de conceber e criar sua filha.

E eu desejo encerrar essas narrativas e reflexões sobre a saga de Cristina com uma citação de Durkheim. Isso para continuar sendo fiel a uma tradição protestante de racionalização das coisas, e de um certo flerte indecente com o discurso e a mentalidade moderna. Se Cristina foi fiel à postura do povo pobre em optar pelas promessas e o imediatismo do discurso pentecostal – e nisso ela está acompanhada de milhões de outros brasileiros e brasileiras –, por que eu não deveria continuar fiel à minha tradição protestante no modo racionalizante com que vê o mundo? Portanto, com a palavra Durkheim. A interpretação dele compete a cada um (o que é outro dogma protestante!):

“Os crentes, isto é, os homens [e mulheres] que vivendo a vida religiosa têm a sensação direta do que a constitui [...] sentem que a verdadeira função da religião não é fazer pensar, enriquecendo o nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência, representações de outra origem e de outro caráter, mas nos fazer agir, nos ajudar a viver. O fiel que comungou com o seu deus não é apenas um homem [e uma mulher] que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é um homem [e uma mulher] que pode mais. Ele [e ela] sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las. Está como que elevado [e elevada] acima das misérias humanas, porque está elevado [e elevada] acima da sua condição de homem [e de mulher]; acredita-se salvo do mal, aliás, sob qualquer forma que se conceba o mal” (DURKHEIM, Émille. Formas elementares de vida religiosa).

Muita força Cristina!

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