quarta-feira, 19 de agosto de 2009

CRISTINA É INVISÍVEL


Ser mulher pobre, desempregada e sozinha no interior de Alagoas


Cristina é o nome fictício que estou dando à mulher que bateu à minha porta ontem (18/08) à tarde. Magra, um pouco pálida, acompanhada de Cláudio, que é outro nome fictício que estou dando para seu filho de 10 anos. Cristina trazia nas mãos uma sacola plástica fustigada por meu olhar curioso. Eram produtos alimentícios que ela havia angariado nas casas anteriores por onde passou a pedir. Mas ela não veio nos pedir nada. Do contrário, veio nos oferecer.


“A esposa do pastor está? Eu gostaria de falar com ela”, foram as primeiras palavras que Cristina me disse à porta. “Sim, está. Mas do que se trata? Eu sou o pastor!”, lhe respondi. Então Cristina me disse ali mesmo que vinha do interior de Alagoas, de carona em carona, com o objetivo de oferecer sua filha para adoção, assim que a mesma nascesse. Foi quando vi que Cristina estava grávida. “Já estou com oito meses”, disse ela. Disse-me que já havia oferecido sua criança a outros casais do bairro onde moro, e que chegou à minha casa indicada por alguém que não sabia identificar. Não havia almoçado àquela hora (14:00h), ela e o filho que lhe acompanhava. Eu lhe pedi que entrassem a fim de comerem e descansarem um pouco. Isso em meio a muitas dúvidas e suspeitas.


Enquanto lhe preparávamos o que comer Cristina nos falava sobre os pormenores de sua sina. Trinta e sete anos de idade, pobre, desempregada, mal tratada e agora abandonada pelo companheiro, mãe de dois filhos, 10 e 2 anos de idade, a um mês de conceber uma menina. Dava-nos detalhes do cortiço que lhe serve de moradia. Contava-nos sobre as péssimas relações com seus irmãos de sangue e sobre suas experiências religiosas na Igreja Universal do Reino de Deus, sobretudo sobre um rancor próprio de quem se dizia explorada naquilo que tinha e que não tinha. Dizia não ver outra saída para sua situação, senão a doação da criança que trazia no ventre.


Tratei de expor com muita franqueza as razões pelas quais eu e minha esposa não poderíamos adotar sua criança. Disse-lhe, inclusive, que esse tipo de coisa não se resolve assim, num supetão. Orientei-lhe a deixar de oferecer sua criança de porta em porta. Muito embora eu acredite agora que ela não o tenha feito. Somente agora me surgiu a convicção de que Cristina veio diretamente a mim, pela indicação de gente que me conhece e sabe que não tenho filhos. Mas isso pouco importa. Encorajei-a para que buscasse o Conselho Tutelar de sua cidade a fim de que, por meio dele, ela pudesse iniciar um processo de doação-adoção conforme os trâmites legais.


Eu nem preciso me estender muito para deixar claro que Cristina é invisível para nossa sociedade do empreendimento, do entretenimento, da superinformação, da inclusão digital, da conectividade, da alta qualificação profissional e acadêmica, do poder de consumo, da idolatria do poder, e de todos os valores ditos “pós-modernos”. A invisibilidade de Cristina é tal que até mesmo uma teoria sociológica como o marxismo não pode captá-la, posto que não lhe cabe a noção de proletariado. A não ser que demos um jeitinho e a incluamos num pobretariado. Cristina é invisível às estatísticas governamentais. Não foi contemplada pelo Fome Zero, e muito menos cabe nas estimativas do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que considera pobre no Brasil quem vive com menos de o equivalente a um dólar por dia.


Cristina é invisível para nossa sacrossanta Teologia. Não poderia ser dizimista e ofertante fiel. Não poderia colaborar nem em nossas campanhas missionárias nem em quaisquer outras: fogueiras santas, gideões, 318 e variantes. Sem condições de “sacrificar no altar de Deus”, a benção da prosperidade econômica lhe estaria vedada. Dificilmente acompanharia nossos exercícios de hermenêutica e de exegese, e talvez com alguma paciência chegasse ao fim do nosso sermão de três pontos e de temas abstratos e desencarnados. Cristina mal poderia ter acesso ao circuito de consumo de nosso universo gospel. CDs e DVDs, mesmo os piratas, lhe seriam de difícil acesso. Não poderia assistir sequer aos shows de nossas melhores bandas, cantoras e cantores evangélicos.


Mas Cristina também é invisível para nossa Psicologia. Como pagaria o valor médio de nossas seções psicoterápicas? E ainda que nossa compaixão lhe abrisse as portas da clínica por nenhum preço financeiro (coisa que o Código de Ética da classe não permite), permaneceria invisível e não-captável por nossa rede conceitual, pouquíssima interessada em dialogar com o cotidiano desse tipo de gente, e pouco propensa a aceitar com seriedade a contextualidade sócio-histórica dos processos de subjetivação.


“Na minha cidade não tem trabalho não, só tem corte de cana, que não dá pra mim”, ela me dizia. Cristina tem no trabalho um de seus valores, obviamente aquecido pela necessidade. Mas ela não sabe que também é invisível aos usineiros. É franzina, está grávida, não pode alcançar as metas diárias estipuladas pelos usineiros para os cortadores de cana. Como poderia cortar entre cinco a dez toneladas diárias? É improdutiva! Invisível, portanto.


Ela me pediu somente um exemplar da Bíblia e uma oração. Cristina tem fé. “Ainda não sou de igreja, não chegou meu tempo ainda”, dizia ela. “Meu filho me pede para ler a Bíblia para ele, e me chama para a igreja”, ela continuava. “Quando leio a Bíblia não entendo muita coisa, mas me vem um conforto ao coração”, ela completou. Na sua invisibilidade Cristina crê em Deus, seu companheiro na invisibilidade. Cristina, que não é vista, vê num Deus invisível um alento, um “conforto que vem ao coração”. E eu já não tenho certeza de que isso seja exatamente ópio, alienação ou quietismo. Porque na certa Cristina se sente vista por alguém, ainda que esse alguém não seja visto por ninguém. E esse é um lugar existencial acerca do qual dificilmente os visíveis podem falar com precisão: justamente porque não vêem.

Um comentário:

Jeyson Rodrigues disse...

Histórias assim como a de Cristina, Paulo, nos fazem pensar o presente com indignação, e a nossa própria prática com mais modéstia. Quantas Cristinas, pobres, desamparadas e prenhas esperam um pouco de atenção, uma oração, uma bíblia e um pouco de conforto ao coração? Parabéns, Paulo. Muito bom o texto.