Os vampirismos sócio-econômicos de ontem e de hoje em Alagoas
Sobretudo as veias do povo alagoano continuam abertas.
Alagoas talvez sirva de exemplo como micro-imagem daquilo que tem sido a macro-imagem da América Latina de cinco séculos para cá. Esta, um subcontinente em relação ao Mundo; enquanto aquela, um sub-estado em relação ao Brasil. Não entendo como tanta gente inteligente pode se referir à história e falar em Modernidade e em Pós-modernidade como se estivesse falando de fenômenos comuns a todo o globo. Geralmente é o que muita gente inteligente faz: conta a história de uma pequena aristocracia européia como se esta fosse a história dos demais recantos do planeta.
Mas pode ser que tais pessoas assumam o seguinte: que o chamam de Modernidade e Pós-modernidade em sentido amplo e oni-abrangente tenha uma face nos países periféricos que representa o reverso do progresso, da emancipação do saber, da afirmação dos valores humanos fundamentais, e etc. Ou pode ser que tais pessoas assumam inclusive que aquilo que em relação ao Velho Continente chamam de Modernidade e Pós-modernidade tenha como seu outro pólo dialético a negação de uma Modernidade e de uma Pós-modernidade aos países do Sul. Assim, teríamos aqui também uma Modernidade e uma Pós-modernidade, mas não como reflexo de conquistas, rupturas e avanços feitos lá, mas como subjugação daqui, para que as conquistas, rupturas e avanços feitos lá, fossem possíveis. Dito mais simplesmente: as conquistas, rupturas e avanços de lá só foram possíveis com a espoliação, a negação e o aviltamento que se produziu cá. Assim, os países periféricos entram no circuito tanto da Modernidade quanto da Pós-modernidade, não como protagonistas, mas como figurantes sobre quem os protagonistas devem subir às costas a fim de aparecer.
Eduardo Galeano disse todo esse meu blá-blá-blá com uma simples metáfora: a América Latina [assim como todos os países do Sul do Mundo] foi e continua a ser um continente de veias abertas.
O estado de Alagoas então...
A história desse estado merece uma atenção especial. E não digo isso como forma de curiosidade acadêmica estéril. Digo isso como expressão da vontade de discernir o presente e entender a feiúra das relações sociais desse lugar. Digo isso como forma de entender a resignação das maiorias populares e a ausência em nosso tempo de revoluções estruturais marcantes. Digo isso como forma de entender os meios ideológicos que perpassam as relações de classe nesse estado de belezas naturais incomparáveis. E digo isso como forma de discernir em que medida “o opressor está internalizado no coração do oprimido”, cerrando a este a possibilidade da ação revolucionária que produza coisas novas.
E eu sei que a respostas a essas indagações não estão todas lá, no passado da formação civilizatória de Alagoas. Há muita pista aqui mesmo, sobretudo no cotidiano da gente pobre e trabalhadora. Mas lá atrás, no passado, também há sinalizações cujas marcas são visíveis aqui, no presente, de certo que passado e presente vão se amalgamando de tal maneira que mal podemos discernir uma coisa da outra. O passado se atualiza nas condições do presente, e o presente atualiza o legado do passado.
É certo que a formação civilizatória de Alagoas faz parte dos processos de formação histórica de todo o nordeste do Brasil. Inclusive, quem quiser entender aquela não pode fazê-lo a despeito desta. Estão organicamente correlacionadas. Mas Alagoas parece possuir algumas peculiaridades que lhe dão um tom diferenciado nesse contexto maior. Como os demais estados nordestinos da faixa litorânea que vai da Bahia ao Ceará, ela está inserida no filão do “império do açúcar”. Uma de suas peculiaridades reside justamente em ter tido seu processo de construção civilizatória ligado exclusivamente aos condicionamentos e exigências dessa economia cruel e sem coração. E mais do que isso, Alagoas consiste num caso pontual e específico da incapacidade de se desprender dessas correntes, não visto nos demais estados nordestinos que também experimentaram o vampirismo dos barões da cana de açúcar.
Manoel Diegues Jr., historiador local, mesmo de uma perspectiva conservadora e um tanto elitista, conseguiu demonstrar numa obra clássica entre nós, como a monocultura da cana de açúcar foi imprimindo seus traços de influencia na vida e na cultura do povo alagoano, no seu jeito de ver e ler o mundo, na sua forma de compreender as relações interpessoais, e etc. O nome do livro dele é O bangüê das Alagoas – Traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional.
Mas é verdade que se a oligarquia agrária e açucareira de Alagoas teve lugar de destaque na formação da alma civilizacional desse estado, é bem verdade que atualmente sua influência nas dinâmicas econômicas vai declinando lentamente. Aleluia! Mas também é verdade que quando um predador vai dando mostras de cansaço e suas presas vão ficando frouxas, outros predadores, animados pelo cheiro forte de sangue no ar, enchem os pulmões a fim de continuar a espoliação iniciada pelos primeiros. Estes sabem muito bem que as veias desse povo sofrido continuam abertas. E eu falo de imagens que vejo todos os dias no próprio cotidiano de quem se relaciona com gente ligada às usinas sucroalcooleiras. Aqui mesmo na Usina Brasil Etanol, próxima a mim, os operários do campo e do chão de fábrica já não têm mais o que oferecer em termos de reservas hemáticas aos seus empregadores. Estão à espera de que seus novos patrões estrangeiros ofereçam algum vintém pela sua própria alma!
E o povo?
Além do flagelo de uma vida assim, negada e instrumentalizada a serviço do enriquecimento de meia dúzia de famílias “nobres”, que marcas atravessam esse povo na sua própria constituição subjetiva? De um ponto de vista da Psicologia Social, que marcas essa tragédia civilizacional imprime nos processos de subjetivação das massas populares?
Desde a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, ninguém mais pode infantilizar a grande banda espoliada das sociedades latino-americanas. Ninguém mais pode pintar uma imagem dócil e ingênua do pobre. Desde o esforço teórico-prático de Freire somos desafiados a discernir os conteúdos ideológicos projetados nos processos de subjetivação dessa gente toda. Freire dizia que o oprimido tende a hospedar dentro de si a imagem de seu opressor. E nos alertava a compreender a produção de uma antropologia e de uma visão de mundo propriamente burguesa, latente no coração das massas populares. Tentando repetir isso por metáfora, eu diria que a sucção do vampiro, além de fragilizar a vítima, também inocula na mesma o vírus do parasitismo e da exploração do outro. E de novo eu falo de imagens do meu cotidiano. Falo de gente procedente das classes desprivilegiadas cuja visão de mundo é tacitamente opressora, e cujas relações interpessoais do cotidiano deixam isso evidente. Gente até de igreja! Infelizmente.
Então, só posso concluir dizendo que a atividade libertadora aqui – quer religiosa, política, acadêmica ou simplesmente existencial – é maior que aquilo que a primeira vista se podia imaginar. Mas quem tem posto a mão no arado não pode mais olhar para trás, a menos que queira...
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