terça-feira, 14 de abril de 2009

PEDAGOGIA DO PAGANISMO


Podem as igrejas ser chamadas de “movimentos sociais”?


Foi uma enorme surpresa encontrar as igrejas arroladas entre aquelas articulações coletivas que conhecemos como movimentos sociais. Foi com o livro Pobreza política*, do Pedro Demo, que eu tomei esse susto. Em que sentido poderíamos classificar as igrejas como movimentos sociais na acepção mais corriqueira que damos a esta expressão?

Que as igrejas sejam uma realidade sociológica é inegável. É verdade que o impacto social que esperamos das igrejas nem sempre corresponde às nossas expectativas. Mas não podemos pensar que por causa disso esse impacto não exista. Toda igreja, pelo simples fato de defender e replicar uma ideologia religiosa qualquer, promove impactos sociais silenciosos e imperceptíveis ao olhar ligeiro, mas nem por isso inexistentes. Tais impactos quase sempre fogem às intencionalidades das próprias igrejas. No entanto são fatos da realidade social.

Talvez Max Weber tenha sido o sujeito que melhor nos convenceu dessa tese. Seu livro clássico – A ética protestante e o espírito do capitalismo – mostra como certos dogmas protestantes produziram por tabela um modelo de ética que fomentou o desenvolvimento do capitalismo na Europa. Em nenhuma hipótese os calvinistas europeus intencionaram esse fim. Mas faz parte da economia da ação o fato de que não somos donos das implicações dos nossos atos. Conforme Weber, ao se esforçarem para glorificar a Deus com certas concepções religiosas, os calvinistas acabaram por servir de mola propulsora para o desenvolvimento do sistema econômico capitalista.

Nesse sentido, compete aos religiosos (ou pelo aos intelectuais orgânicos aí presentes) buscar discernir que impactos sociais derivam de suas convicções vivenciadas no seu comportamento. Compete aos tais discernir quais impactos sociais derivam da vivência prática da ideologia de cada grupo. Algumas perguntas a serem feitas aí seriam estas:

a) Até que ponto a expressão prática da vivência da minha fé (ou do meu grupo) legitima relações assimétricas de poder? Como isso se traduz nas relações de gênero? Como isso se traduz nas relações profissionais entre empregados e empregadores? A vivência prática das minhas convicções religiosas legitima relações assimétricas de poder nesses casos ou democratiza essas relações?

b) Até que ponto a expressão prática da minha fé embota a percepção das injustiças sociais? Em que medida minha cosmovisão religiosa ajuda a naturalizar essas injustiças mortificando assim toda tentativa de ação transformadora? Até que ponto a expressão prática da minha fé me distancia da responsabilidade de ruptura com o status quo e me conforma à passividade?

c) Até que ponto a expressão prática da minha experiência de fé sacraliza e legitima as estruturas de dominação de nossa sociedade? Até que ponto ela corrobora, por exemplo, ideologias como o neoliberalismo, comportamentos como o consumismo, ou atitudes como o individualismo?

São muitas as perguntas que poderíamos continuar a elaborar na mesma linha. Todas elas tematizam os impactos sociais, nem sempre intencionados, da vivência prática de nossas convicções religiosas. Dessa forma, toda igreja e toda religião é responsável por importantes reverberações sobre a sociedade. Elas podem funcionar como “forças estruturantes” (Pierre Bourdieu) ajudando a sedimentar os aspectos ideológicos (em sentido negativo) de uma sociedade, assim como podem funcionar como forças utópicas, isto é, contestadoras do status quo e parceiras na construção de uma sociedade cada vez mais humana.

Lamentavelmente, quase sempre as igrejas e religiões cumprem muito bem a função estruturante, enquanto prescindem do cumprimento da função utópica.

Então, já sabemos que não temos escolhas quando se trata de influenciarmos a dinâmica social. Do ponto de vista da alienação, não existe uma prática social que seja totalmente isenta, nem mesmo a vivência da espiritualidade. Ou funcionamos como forças estruturantes e alienantes, ou funcionamos como forças utópicas e contraproducentes do ponto de vista do status quo.

Como responderemos então à questão inicial sobre o status de movimento social por parte das igrejas? Elas seriam ou não movimentos sociais?

As representações que fazemos de todas as articulações coletivas conhecidas como movimentos sociais já estão impregnadas com a dimensão da contestação ao status quo, da crítica social, da luta pela justiça e pelos direitos dos desfavorecidos e humilhados da História. Dessa forma, eles não seriam estritamente um fenômeno do nosso tempo. É recorrente na história os levantes subversivos e contestadores que procuram promover relações justas entre os homens. Movimentos articulados com as questões de gênero, de etnia, da terra, de expressão sexual, de habitação, de condições de trabalho, da educação, por exemplo, são abundantes na história.

Todavia, no século 20 tivemos uma reconfiguração/burocratização desses movimentos e sua ascensão à qualidade institucional/organizacional, com legitimidade jurídico/legal, além de um alcance maior das bases da sociedade, assim como uma inserção maior de classes historicamente distantes dessas articulações. A despeito dos conhecidos problemas que sempre advém dos processos de burocratização desses movimentos, permanece a representação de que se tratam de forças contestatórias, por vezes subversivas, engajadas na construção de um modelo de sociedade mais justo e mais humano.

É óbvio que com essa representação em mente podemos dizer as igrejas podem também gozar do status de movimentos sociais. Se elas têm cumprido todas as expectativas apegadas àquelas representações constitui outra discussão. Se elas se portam como forças retrógradas da história, constitui outra discussão mais diferente ainda.

Os movimentos sociais existentes – com toda a ambigüidade que os perfazem – podem oferecer importantes pistas para a reflexão acerca do status de movimento social por parte das igrejas. A meu ver, uma possível aproximação entre as igrejas e esses movimentos deveria se guiar à base de três perguntas-guia:

a) A primeira é a pergunta sobre a natureza do grito em questão. Há legitimidade no grito e na articulação teórico-prática de tais movimentos? O conteúdo mesmo da luta que move tais articulações é justo e plausível ou é produto de interesses privados e desarticulados das tensões sociais? A causa promove a reparação e a restituição de dívidas históricas legais e direitos humanos fundamentais aos interessados?

b) A segunda tem como pressuposto uma ousada hipótese teológica. Em que medida esses movimentos são “traduções secularizadas” de certos anseios bíblicos? Até que ponto a luta pela paridade nas relações de gênero, pela democratização fundiária, pela erradicação da pobreza, pela humanização das condições de trabalho, pela paridade étnica, por exemplo, atualizadas nos movimentos sociais, são a manifestação secular possibilitada pela declinação do Cristianismo a esses quefazeres? Em que medida tais movimentos são “animados pelo Espírito da vida”?

c) A terceira só é possível a partir de uma atitude de muita humildade. Em que medida a práxis desses movimentos pode informar e aperfeiçoar a práxis eclesial cristã? Submetidos ao olhar crítico e ao discernimento evangélico, os movimentos sociais teriam algo a oferecer quando se trata de otimizar a eficácia missiológica das igrejas?

São questões contundentes que podem ser facilmente rejeitadas pela mentalidade auto-suficiente e encastelada que caracteriza certas igrejas e religiões. Todavia, enfrentadas com seriedade e humildade, poderiam trazer renovo à nossa prática pessoal e comunitária como cristãos.

Essa coisa de equiparar “os que são do reino” com “os que não são do reino” não é nada original. Essa “pedagogia do paganismo” não é produto de minhas aventuras teológicas. Antes, pertence às inclinações do próprio Jesus de Nazaré. Lembremos que ele tratou um sargento romano, uma pagã siro-fenícia e os hereges samaritanos como protótipos de cidadãos do Reino de Deus. Por que não aprenderíamos nós com aqueles que, no meio desse mundo louco e injusto, arriscam suas vidas na construção de uma sociedade melhor e mais igual para todos e todas?


* DEMO, Pedro. Pobreza política. Campinas: Autores Associados, 2006.

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