segunda-feira, 6 de abril de 2009

A BÍBLIA E A CRISE NOS TABULEIROS ALAGOANOS


Tensão econômica e solidariedade à luz da tradição profética

Nós aqui na micro-região dos Tabuleiros Alagoanos estamos atravessando uma profunda crise relacionada substancialmente a fatores de ordem econômica. Como todos sabem, a Zona da Mata em Alagoas ainda vive sob a hegemonia do imperialismo econômico da cana de açúcar. É verdade que em nível nacional, desde 2007 esse setor econômico recebeu notável impulso devido à carência mundial por matrizes energéticas limpas. No entanto, aqui entre nós os efeitos da atual crise econômica mundial têm sido mais predadores que a expectativa criada ao redor da produção de biocombustíveis – no caso, o etanol.

Muito próximo mim se desenrola um drama coletivo relacionado à iminente bancarrota da Usina Brasil Etanol (antiga Usina Utinga Leão S/A). Todos os dias chegam a nós notícias sobre o desespero de trabalhadores que, em função dos atrasos salariais que já ultrapassam um mês, não conseguem sustentar suas famílias. Agregada a essa situação que vai beirando o caos está a fatídica falta de articulação desse mesmo quadro de trabalhadores do complexo industrial da referida empresa. Acossados por uma tradicional atitude de intimidação por parte dos empregadores, permeada por ameaças de demissões, os trabalhadores ligados ao complexo industrial são forçados a continuar suas atividades, a despeito da situação na qual se encontram suas famílias.

Por sua vez, a referida empresa tem cumprido pontualmente seus compromissos salariais junto ao quadro de trabalhadores do campo. Informados pelos movimentos sociais articulados com a luta pela democratização fundiária (sobretudo pelo MST), esses trabalhadores do campo – cortadores, tratoristas, e etc. – resistem às imposições e ao trato unilateral imposto pelos latifundiários da cana. Cada tentativa de acossamento por parte desse empresariado é respondida com a ameaça de greves e de manifestações populares.

A nossa comunidade religiosa – a Igreja Batista na Forene – se encontra ligada a todos esses acontecimentos. Temos famílias sofrendo os efeitos da desestruturação econômica desta usina, isto é, famílias cuja subsistência está ligada a esse complexo industrial e, portanto, apreensivas quanto ao presente e ao futuro, e temos famílias ligadas ao quadro campestre que, graças ao contato com os referidos movimentos sociais, se encontram numa situação mais tranqüila em termos de sua subsistência.

No último domingo (05/04) achei por bem refletir sobre essas questões com a Igreja Batista aqui na Forene. Lembrava-lhes da situação de crise enfrentada por Israel na ocasião da invasão babilônica, e de como as falsas consolações e as curas superficiais foram uma tentação presente naqueles dias. Sobretudo Jeremias tematizou a tentação das falsas consolações e das curas superficiais. Tanto uma quanto a outra são tentações porque se dirigem sempre ao ser fragilizado, aberto ao primeiro sufrágio que lhe apareça. Ademais, são tentações porque depositam a responsabilidade de transposição da crise sempre nas mãos de outrem: Deus, políticos, profetas...

A narrativa particular do embate entre os profetas Hananias e Jeremias (Jr 28,1-17) nos conduz à conclusão de que crises não podem ser transpostas à base de ilusões. Mas eu dizia ao meu pessoal que somente hoje nos é possível chegar tão tranquilamente a essa conclusão teórica.

[Se possível, leia a narrativa de Jr 28,1-17 antes de terminar a leitura desse artigo.]

Imaginemo-nos naquela situação. Imaginemo-nos submersos numa tragédia oni-abrangente. Imaginemo-nos como um povo saqueado, com nosso centro cultural-econômico-político-religioso sitiado, nossas tradições religiosas mais profundas ultrajadas por uma potência estrangeira imperialista, nossos dirigentes e referenciais políticos seqüestrados. Enfim, imaginemo-nos numa situação onde todos os grandes pilares de sustentação do sentido de nossas vidas estão sendo aniquilados. Não podemos fazer esse exercício mental sem lembrar da mais profunda representação que Israel fazia de si, como “nação eleita”, “povo exclusivamente escolhido entre os povos”, e como “povo único de Deus”. Numa situação como essa, o discurso de Hananias seria acolhido por qualquer um de nós como genuína “palavra de Deus”.

Todavia, embora essas expressões não apareçam textualmente ali, a narrativa segue com a denúncia de que a palavra de Hananias estava entre aquelas que poderiam ser classificas como falsas consolações, curas superficiais e ilusões. Como dissemos, a tentação desse tipo de discurso consiste na transferência de responsabilidades na transposição da crise. Além disso, esse discurso cega o sujeito para toda criatividade e para a possibilidade de refletir sobre seu próprio papel no advento da crise. É verdade que esse último aspecto só se aplica à crise de Israel. A teologia desses textos advoga a idéia de que o desterro na Babilônia veio como produto da infidelidade do povo frente à aliança com Javé. Por outro lado, não se pode dizer que os trabalhadores da usina tenham responsabilidade quanto ao advento da crise que os abate (ainda que tenham responsabilidade sobre a forma de enfrentá-la).

Então, reiteramos a idéia a que a narrativa nos conduz: crises não podem ser transpostas à base de ilusões, de falsas consolações ou de curas superficiais. Ao mesmo tempo chamamos a atenção para a difícil tarefa de discernir entre os discursos que pretendem ser Palavra de Deus e os discursos ilusórios, alienantes e superficiais. É muito tênue o fio que os separa.

Dia desses, por exemplo, ouvi perplexo um desses pastores midiáticos afirmar que “com o povo de Deus não tem crise” e que “a crise pode ter lugar no mundo, mas não tem lugar na igreja”. Fatidicamente, declarações como essas resumem minimante toda uma ideologia. Primeiro, revela uma forma de cristianismo atravessado pelo “arquétipo da Arca de Nóe”, onde a igreja flutua cinicamente sobre as águas do caos enquanto o resto da humanidade segue rumo à morte. Segundo, revela seu pertencimento à tradição cujo símbolo poderia ser o profeta Hananias, onde vigora a alienação que deriva das falsas consolações e das curas superficiais.

Nós aqui, como comunidade cristã, temos optado por “pular para o lado de fora da arca”. Mais precisamente, temos optado por “chorar com os que choram”. É sentindo de perto a possibilidade da morte com todos os homens que a igreja se aproxima mais da qualidade do Evangelho. Sentir as dores e as agruras da crise junto com todos os implicados aqui tem nos parecido mais próximo do caminho de Jesus Cristo. Sem falsas consolações, curas superficiais ou ilusões, os próprios implicados (pelo menos entre aqueles que pertencem à nossa comunidade) compreenderam que sem articulação coletiva e engajamento da classe operária dificilmente essa crise se resolverá priorizando seus direitos fundamentais.

E quanto ao flagelo da fome, contra esse não há teorização nem meditação bíblica que aplaque. Somente a mão aberta e o repartir misericordioso do pão podem ajudar. Porque é verdade que “nem só de pão vive o homem...” Mas também é verdade que na falta do pão, dificilmente o homem tem interesse por “...toda palavra que sai da boca de Deus”.

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