quinta-feira, 10 de março de 2011

CULPA E AÇÃO PSICOPASTORAL [Parte 1]

Olá amigas e amigos! Segue abaixo um artigo que escrevi em 2004, por conta das atividades de um mestrado em Teologia. O artigo é do campo da Psicologia Pastoral. Como é um pouco extenso para um blog, publicarei em três partes. Espero que gostem!

CULPA E AÇÃO PSICOPASTORAL [Parte 1]
Buscando critérios para uma “pastoral da culpa”[1]
INTRODUÇÃO
Como nos lembra Gary R. Collins, o problema da culpa tem sido descrito como a ponte entre a religião e a psiquiatria. O presente texto se ocupará da realidade da culpa sob seus múltiplos aspectos (real, neurótica, existencial, etc.), suas causas como sugeridas pela psicanálise ortodoxa e por representantes de outras escolas psicoterapêuticas, e seus efeitos de ordem emocionais e fisiológicos, na busca por critérios que possibilitem ao cuidado pastoral uma abordagem eficaz de pessoas atormentadas por esses sentimentos. Instiga-nos o fato de que a religião pode ser, em sua tarefa de tratar das preocupações últimas do gênero humano, um instrumento fomentador de sentimentos de culpa, afinal, “apenas quem tem consciência de seu estado existencial pode ter condições reais de experimentar profundamente a sua culpa”. Contudo, o paradoxo está no fato de que, outra vez, só a religião tem condições autênticas de oferecer o elemento integrador da culpa na existência do homem, sem torná-lo um neurótico, e esse elemento é a graça de Deus. É justamente nisso que a pesquisa justifica-se a nós, visto que se convive ainda com um senso religioso de auto-expiação, onde o moralismo insuficiente toma o lugar do sentimento de “aceitação de ser aceito” (Paul Tillich), o único meio de integração da ansiedade da culpa que oprime sob diversas manifestações milhares de pessoas.

Embora o material empregado não tenha sido numericamente abundante, julgamos satisfatória a base teórica para esta empreitada, ao menos no que diz respeito ao tema a que nos propomos trabalhar. Trata-se de literatura preocupada em munir-nos com suporte teórico ao nível específico da psicologia pastoral, um breve suporte de literatura psicanalítica, extraída basicamente das Obras Completas de Sigmund Freud, além de breve suporte teológico sobre o tema tal como nos oferece Paul Tillich em sua Teologia Sistemática e em A coragem de ser.
Pudemos concluir, a partir deste trabalho, que a prática pastoral encontra no diálogo com as correntes psicoterapêuticas um vasto campo de possibilidades para o auxílio de pessoas atormentadas por sentimentos de culpa real, e de forma limitada, de culpa neurótica. Entretanto, ao se tratar da culpa existencial, fenômeno comum a todos os homens, apenas a religião (neste caso a cristã) pode oferecer o elemento que proporcione ao homem o meio de viver em paz com a sua condição.
  
1. ORIGENS DOS SENTIMENTOS DE CULPA
Na pesquisa psicológica pode-se afirmar não haver unanimidade quanto às origens dos sentimentos de culpa. São muitas as posições dos diversos autores, assim como são diversificadas as posturas das diversas escolas e correntes da psicologia. No objetivo de conseguir algum esclarecimento acerca das causas dos sentimentos de culpa, tentaremos descrever aqui a posição da psicanálise ortodoxa, ancorada em seu criador, assim como as posições de psicólogos e psicanalistas não ortodoxos acerca da preocupação que por hora nos ocupa.
1.1          A origem dos sentimentos de culpa segundo a psicanálise ortodoxa
O problema da culpa tem sido descrito como a ponte entre a religião e a psiquiatria. Para Sigmund Freud, o sentimento de culpa é o elemento principal na gênese da própria religião. Em sua análise da religião totêmica feita em Totem e tabu (1912/13), ele chega à conclusão de que o fenômeno religioso através das eras (e atualmente) é resultado da tentativa de aplacar os sentimentos de culpa em relação ao assassinato do “grande pai primitivo”. Tal tentativa encontrara seu ponto máximo na religião cristã[2], com a doutrina da expiação, onde a morte do “Filho de Deus” (na realidade um representante divinizado dos filhos primitivos assassinos) expia a culpa pelo “pecado original” (a morte do grande pai primitivo). É o sentimento de culpa o fator desencadeador e mantenedor da religião, tratada por Freud como o “resíduo neurótico das culturas” (O futuro de uma ilusão1927). Freud, em sua primeira investida no esboço de uma hermenêutica psicológica da religião (“ele foi o primeiro a esboçar uma”), lança em 1907 um artigo intitulado Atos obsessivos e práticas religiosas, onde ele afirma que a semelhança entre religiosidade e neurose reside no fato de que ambas acarretam sentimentos de culpa inconscientes, cujo sentimento de culpa dos neurótico-obsessivos corresponderia à convicção dos crentes de serem míseros pecadores:
Podemos dizer que aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do qual, entretanto, nada sabe, de modo que podemos denominá-lo de sentimento inconsciente de culpa, apesar da aparente contradição de termos. Esse sentimento de culpa origina-se de certos eventos mentais primitivos, mas é constantemente revivido pelas repetidas tentações que resultam de cada nova provocação (apud Nascimento, 2002, p. 22).
Destarte, para a psicanálise ortodoxa a origem da culpa está ligada à formação do superegoque representa a consciência moral de todo ser humano normal, resultante do processo de internalização do sistema de valoras do nosso mundo maior, que é, predominantemente de caráter neurótico, antes que real[3]. Ela é fruto do constrangimento social implantado na alma da criança ao ser repreendida pelos pais e pelo medo de perder o seu amor. Para Freud a culpa neurótica pode manifestar-se não apenas na depressão autopunitiva e autocondenativa, mas também num tipo maníaco de agressividade. Isso é relativamente fácil de ver, segundo o prof. Merval Rosa, quando observamos a pessoa lançar sobre a outra os conteúdos do seu próprio inconsciente através do clássico mecanismo de defesa chamado de projeção (Rosa, 2001a, p.72).
O psicanalista James Knight (apud Rosa, loc. cit.) afirma que “para a psicanálise, o sentimento de culpa é, de fato, uma forma de narcisismo ou idealismo moral emotivo, normalmente internalizado dos pais e educadores, sendo em grande parte inconsciente e que torna as falhas no cumprimento desses valores ou suas exigências, algo intolerável”. Além disso, a literatura psicanalítica ainda fala do “sentimento de culpa emprestado”. Essa expressão é usada por Freud para mostrar que uma criança pode internalizar as imagens de pais ansiosos e carregados de sentimentos de culpa. Dessa forma, a pessoa se sentirá culpada por delitos que não cometeu, mas que lhes foram introjetados de outras pessoas, neste caso, de seus pais. Não poderíamos deixar de mencionar aqui o pequeno ensaio Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa, sobre a psicologia do delito, onde Freud surpreende ao afirmar que a culpa não aparece como efeito dos delitos, mas como sua causa. Para explicar essa afirmação, Freud (1969, p. 338 [vol. XIV]) diz que “este obscuro sentimento de culpa que brota do complexo de Édipo, é uma reação frente a dois grandes propósitos delituosos, o de matar o pai e o de ter relação sexual como a mãe”. Em suma, de acordo com Freud e a psicanálise ortodoxa, o ser humano é neurótico antes que delinqüente ou pecador, ou seja, a infelicidade do ser humano reside no fato dele entregar-se neuroticamente a um superegoque, com dureza, o impede de fazer coisas prazerosas.
1.2          Demais teorias acerca das origens da culpa
Um dos críticos mais francos das teorias freudianas foi o neobehaviorista americano Hobart Mowrer, que já em 1927 atacava a “teoria freudiana do impulso” da ansiedade, que tendia a racionalizar as noções de pecado, culpa e responsabilidade humana. A idéia psicanalítica de que somos neuróticos antes que pecadores, é invertida por Mowrer pela “teoria da culpa”, onde os atos que praticamos é que causam nossa culpa e ansiedade. Segundo Mowrer, a origem da culpa não deveria ser relegada às relações com o superego, mas para ele, “somos infelizes porque cedemos pecaminosamente a nossas naturezas inferiores, ao tempo que fingimos não ouvir a voz da consciência” (apud Hurding, 1995, p.264). A crítica de Mowrer fundamenta-se em sua convicção de que na psicopatologia a culpa é sempre real, não confessada e não expiada. Em fim, conforme a teoria de Mowrer, todo distúrbio emocional resulta do conflito entre o sistema de valores internalizado e o comportamento do indivíduo.
Nas palavras do prof. Merval Rosa (op.cit. p.74), “a culpa é gerada toda vez que um limite imposto pela consciência é tocado e transgredido”. Odier fala da “culpa funcional”, que surge do medo dos tabus, ou de perder o amor de alguém, além da “culpa valor”, que é a violação consciente de um valor introjetado pelo indivíduo. Alfred Adler (que demorou pouco tempo no círculo dos discípulos ortodoxos de Freud) vê a origem dos sentimentos de culpa na auto-recusa dos indivíduos em aceitar a inferioridade, enquanto Carl G. Jung vê a origem da culpa na recusa do indivíduo em aceitar a si próprio, na sua totalidade, ou seja, na recusa de integrar na sua consciência o que é inegável a si mesmo (“as suas sombras”). Na opinião de Ebel V. D. Schoot (1985, p.156) “a maior culpa humana reside no fato de os homens não se deixarem amar por Deus, razão pela qual os homens falham quando se trata de amar o seu semelhante e ao próprio Deus”. Gary R. Collins, em sua análise sobre a origem dos sentimentos de culpa, levanta os seguintes motivos:
(1) aprendizado passado e expectativas pessoais pouco realistas: são causados pelos autos padrões a que as crianças são submetidas na infância, impossíveis de serem alcançados. Como resultado surge a auto-acusação, autocrítica, sentimentos de culpa e inferioridade persistente, como de castigar e estimular ao melhor;
(2) inferioridade e pressão social: são as opiniões e críticas alheias que surgem ao nosso redor pela sugestão social;
(3) desenvolvimento falho da consciência: sua origem provém especificamente do ambiente do lar. Quando os pais não dão bom exemplo, e/ou o treinamento moral é punitivo, crítico, ameaçador ou exigente demais, a criança torna-se então irada, crítica e sobrecarregada por sentimento constante de culpa;
(4) influências sobrenaturais: sentimentos de culpa teriam sua origem na instigação do Espírito Santo com o intuito de purificar e fazer crescer o homem; também podem ser instigados por Satanás, a fim de levar o homem a sentir-se culpado e não perdoado, mesmo que não tenha cometido nenhuma transgressão. 
Gostaríamos, finalmente, de registrar o que diz Paul Tillich sobre a origem da culpa. Para ele, a culpa pessoal, assim como aquilo que ele chama de “tragédia universal” resultam da transição do estado de “essência” para o estado de “existência” do homem[4], ou seja, do estado de alienação do fundamento do seu ser, dos outros seres e de si mesmo a que o homem se submeteu.
Continua...


[1] Artigo escrito no primeiro semestre de 2004, como exigência da disciplina Psicologia Pastoral ministrada pela profª Drª Maria Betânia, no Mestrado em Teologia do Seminário Teológico Batista do Nordeste – Feira de Santana-Ba.
[2] A descrição de como o cristianismo assimilou os sentimentos de culpa em relação ao assassinato primitivo pode ser encontrada em FREUD, Sigmund.Obras Completas – Moisés o e monoteísmo. p. 106-112 (volume XXIII).
[3] Sobre a culpa de caráter real, ver p. 8-9
[4] Trata-se aqui da interpretação da filosofia existencialista para explicar o mito da queda do homem. A esse respeito, cf. TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002, p. 266-278.

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