quinta-feira, 10 de março de 2011

CULPA E AÇÃO PSICOPASTORAL [Parte 2]

Olá amigas e amigos! Segue abaixo a segunda parte de nosso artigo sobre Psicologia Pastoral. Continuem lendo. Mais uma vez, espero que gostem!

CULPA E AÇÃO PSICOPASTORAL [Parte 2]
Buscando critérios para uma “pastoral da culpa”

2. CLASSIFICAÇÃO DOS SENTIMENTOS DE CULPA

Se afirmamos acima que não há unanimidade na pesquisa quanto às origens dos sentimentos de culpa, podemos dizer que tão pouco há unanimidade quanto à sua classificação. A classificação faz-se necessário à psicologia, assim como à prática pastoral, para que a abordagem do tratamento com pessoas afligidas por sentimentos de culpa seja feita de acordo com a adequada situação que elas experimentam. Assim, começaremos fazendo algumas distinções importantes relativas à culpa, para prosseguirmos na classificação mais comum dentro da pesquisa psicológica, e ainda conferir outra possibilidade de classificação e abordagem do problema da culpa.

2.1 Distinções importantes
Para fazer distinção entre os diferentes sentimentos de culpa há vasta terminologia empregada. Contudo, alguns autores nos ajudam a fazer importantes distinções. Fala-se, por exemplo, da sutil diferença entre culpa e sentimento de culpa, tal como da culpa teológica e culpa psicológica, sendo que a primeira estaria ligada à idéia de pecado, e a segunda ligada à noção do comportamento neurótico. O prof. Merval Rosa nos ajuda ainda a distinguir entre culpa e vergonha. Para ele (2001a, p.74), como já citado antes, “a culpa é gerada toda vez que um limite imposto pela consciência é tocado ou transgredido”, ao passo que “vergonha ocorre quando um alvo ou objetivo não é alcançado. Assim sendo, a vergonha indica uma falha real e é relacionada com o fracasso, enquanto que a culpa acompanha uma transgressão”.
Nas distinções com as quais temos nos ocupado por hora, Schoot (1985, p.157) nos dá valiosa contribuição ao abordar a culpa do ponto de vista psicológico e teológico, concluindo que “quanto mais clara e detalhadamente conseguirmos situar um problema psicologicamente, tanto maior esclarecimento teológico será obtido”. Segundo este autor, do ponto de vista psicológico há que se fazer as seguintes distinções:
(1) consciência de culpa e sentimento de culpa: por consciência de culpa compreender-se-ia o conhecimento de se ter cometido algo errado, enquanto que por sentimento de culpa designar-se-ia o sofrimento proporcionado por esses sentimentos;
(2) sentimentos de culpa autênticos e não-autênticos: falar-se-ia de sentimentos de culpa autênticos quando representassem adequadamente a culpa real, enquanto que os sentimentos de culpa não-autênticos caracterizar-se-iam quando uma pessoa demonstra ter sentimentos de culpa e possivelmente só quer tê-los, mas na verdade na tem condições de experimentar adequadamente a sua culpa pessoal;
(3) sentimento de culpa infantil e maduro: os sentimentos de culpa infantis não agiriam a partir da realidade, ou a partir de valores morais ou religiosos, mas teriam sua origem, segundo H. C. Rümke, na carência de amor recebido, enquanto que os sentimentos de culpa maduros seriam,segundo o mesmo autor, a conseqüência da falta de amor dado (op. cit.p.154)
2.2 Culpa real, neurótica e existencial
A despeito dessas diferenciações necessárias e da vasta terminologia com que a pesquisa tem classificado a culpa, vale dizer que nos meios profissionais e acadêmicos fala-se basicamente de três tipos de culpa: a real (ou apropriada), a neurótica (ou patológica) e a existencial (ou de finitude).
2.2.1 Culpa real
A culpa real é algo normal a todo ser humano, e até certo ponto é algo desejável. De acordo com o pediatra inglês Donald Winnicot, sentir-se culpado é um atributo necessário de uma pessoa saudável, é parte do preço que se paga pelo privilégio da normalidade do ser humano, e sua ausência pode caracterizar o comportamento sociopata. Para Merval Rosa (2001b, p.53), “o sentimento de culpa real pode ser uma evidência da saúde moral e espiritual de uma pessoa e é bom que ele exista nas relações do homem com Deus e com o seu próximo”.
Devemos realçar o fato de que a culpa real não consiste apenas numa percepção subjetiva de haver cometido um erro, mas na realidade de que a realidade circundante e a sociedade toda compartilham a mesma convicção, visto que se trata de algo considerado pela comunidade maior como delito ou transgressão. A culpa real estaria associada ao dano causado às pessoas, resultante do abuso da liberdade interior que, em qualquer que seja o grau, possui-se nessa situação. Ela é conseqüência da violação intencional dos valores que o lado maduro de nossa consciência considera autênticos e significativos.
2.2.2 Culpa neurótica
A culpa neurótica teria suas raízes no inconsciente individual. Ela resultaria do processo de internalização, onde o indivíduo introjeta o sistema de valores de seu mundo maior, que durante toda sua vida, funciona como uma espécie de censor. Em linguagem psicanalítica, a culpa neurótica estaria associada à formação de um superego (como já descrito) muito exigente. Este tipo de superego estaria associado a normas educacionais extremamente rígidas ou a um perfeccionismo exagerado. Na culpa neurótica
a intenção, mesmo inconsciente, é equiparada com o feito ou com o ato de fazer, e a pessoa reage à intenção inconsciente como se já tivesse cometido o erro. Geralmente a pessoa neurótica do tipo obsessivo-compulsivo inconscientemente considera errado aqui,.o que deseja fazer (Rosa, 2001a, p.67).
Em suma, sentimentos de culpa neurótica resultam principalmente da violação de proibições parentais internalizadas. Freqüentemente, a culpa neurótica concentra-se em questões éticas secundárias ou insignificantes, ou em sentimentos de raiva, impulsos agressivos, fantasias e impulsos sexuais. Jorge Leon nos leva a considerar a culpa neurótica como sendo eminentemente subjetiva (em detrimento da culpa real), pois é concebida por um sujeito que sofre, mas não é considerada como tal pela sociedade que o cerca. Em sua opinião, a reativação de culpas infantis inconscientes é a forma mais comum de desencadeamento de culpas neuróticas. Descrevendo este estado de culpa, Leon (2001, p.124) diz que
o neurótico não se perdoa por não poder ter sido anão, ou seja, não leva em conta que era uma criança quando fez o que fez e, como tal, não podia pensar e agir como um adulto. Sabemos que as crianças não são anões, são somente crianças. O neurótico não pensa assim, por isso continua se sentindo culpado. Sua tragédia procede da interpretação da realidade de hoje com a mente da criança que foi ontem. Mas a criança que foi ontem, em muitíssimos casos, ao fazer o que fez, não tinha formada ainda a sua consciência moral, ou seja, o superego não estava consolidado.
Em muitas pessoas, inclusive, durante o aconselhamento pastoral, sentimentos de culpa rela e neurótica podem estar entrelaçados. Neste caso, Howard J. Clinebell (2000, p.137) ajuda-nos a identificar os elementos neuróticos a partir das seguintes características: a) eles não reagem positivamente ao processo de confissão-perdão[1], mas são mantidos obsessivamente; b) concentram-se, como já dito, em questões éticas relativamente insignificantes ou em fantasias e sentimentos; c) raramente motivam reparação construtiva ou mudanças em longo prazo no comportamento produtor da culpa; e d) podem produzir satisfações masoquistas.
2.2.3 Culpa existencial
A definição mais prática para a culpa existencial é que ela representa a discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”, ou seja, entre o que o homem é e aquilo que ele gostaria de ser. Poderíamos relaciona-la, junto com o prof. Merval Rosa, ao drama do poeta Ovídio quando diz: “Vejo o melhor e aprovo, e sigo o pior”, ou ainda com o desabafo do apóstolo Paulo: “com efeito, o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem ... pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço”. A culpa existencial não resulta das proibições culturais ou da introjeção dos valores do nosso mundo maior como a neurótica, mas tem suas raízes na autoconsciência do indivíduo. Ela está ligada à capacidade que o homem tem de olhar para si mesmo e refletir sobre si mesmo.
A culpa existencial reprimida ou negada, pode nutrir a culpa neurótica. Para os existencialistas, inclusive, a culpa neurótica resulta da não confrontação existencial.
2.3 Outras possibilidades de classificação da culpa
Em sua abordagem sobre os tipos de sentimentos de culpa, Gary R. Collins nos apresenta ainda outra possibilidade de classificação. Na sua compreensão, a culpa pode ser tratada sob duas categorias maiores, como culpa objetiva culpa subjetiva. A culpa objetiva existiria em separado dos nossos sentidos. Ele ocorreria quando uma norma fosse violada e o transgressor fosse culpado, embora ele não se sentisse culpado. Esse primeiro tipo de culpa poderia ser dividido em quatro sub-tipos: (1) culpa legal – referente à violação das leis sociais; (2) culpa social – esta surge quando quebramos uma norma não-escrita, mas socialmente esperada, ou seja, quando o culpado não corresponder às expectativas sociais dos outros componentes da sociedade; (3) culpa pessoal – ocorre quando o indivíduo viola os seus próprios padrões sociais ou resiste aos apelos da consciência, entretanto, como os padrões sociais geralmente são comparáveis aos dos nossos vizinhos, a culpa pessoal e social freqüentemente são semelhantes; e (4) culpa teológica – envolve a violação dos padrões divinos para o comportamento humano, e quando se transgride essas normas mediante pensamentos ou obras, torna-se culpado diante de Deus, quer sintamos remorso ou não.
culpa subjetiva estaria associada aos sentimentos íntimos de remorso e autocondenação resultantes dos nossos atos. Seria aquele sentimento pouco confortável de pesar, remorso, vergonha e autocondenação que surge com freqüência quando fazemos ou pensamos algo que sentimos estar errado, ou deixamos de fazer algo que deveria ter sido feito. Segundo Clyde Narramore (apud Collins, 1995, p.101) “esses sentimentos subjetivos de culpa classificam-se em três categorias: medo do castigo, perda da auto-estima e um sentimento de solidão, rejeição ou isolamento”. Esses sentimentos de culpa nem sempre seriam maus, visto que lês poderiam nos estimular na mudança de comportamento e buscar o perdão de Deus e dos outros.
Continua...


[1] Quanto à descrição desses processos de expiação da culpa, ver p. 16

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