quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O TESTE DE RILKE


Somente agora ficou mais tangível para mim o que Rainer Maria Rilke (1875-1926) quis dizer numa carta destinada a Franz Xaver Kappus. Este, um jovem com pretensões de enveredar na senda da poesia, escreve ao já consagrado Rilke buscando orientações que lhe pudessem auxiliar na arte de escrever. Dentre tantas outras palavras, recebe de Rilke as seguintes, que, como eu disse, só agora ficaram mais vívidas para mim:

"O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia seus versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se inquieta quando um ou outro redator recusa suas tentativas de publicação. Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir disso tudo. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples “Preciso”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso".

A iluminação dessa passagem de Rilke me foi possível agora graças a Sociedade dos Poetas Mortos, filme estrelado por Robim Willians. O filme, você sabe, não é novo. Mas também somente agora pude vê-lo. Trata-se de uma verdadeira pérola!

Não conheço teste vocacional no mundo que possa nos ajudar a discernir as pulsões mais profundas de nosso ser, às quais estão ligadas a plenitude de nossa realização existencial. O que os testes vocacionais podem fazer, no máximo, é tornar mais claras “cientificamente” certas inclinações que a pressão dos pais e a preocupação com o vestibular deixam embotadas nas mentes dos jovens. Quanto àquilo pelo qual eu e você morreríamos se privados fôssemos, os testes são totalmente inócuos. Duvido que o nosso Kappus, esse que foi a Rilke como a um conselheiro, pudesse descobrir por meio dos testes sua vocação poética.

Nesse caso o teste, parafraseando Rilke, só pode ser feito nas profundezas do coração. É no silêncio da madrugada e em comunhão somente consigo mesmo que se pode discernir se uma pulsão reflete o que há de mais legítimo dentro de nós mesmos. É pulsão existencial do íntimo por que é irresistível e inexplicável. E é irresistível e inexplicável porque é pulsão existencial do íntimo. Quando nos certificamos disso, o melhor a fazer é esquecer os “porquês” e obedecer à orientação de Rilke: construir nossa vida em função dessa necessidade [ou dessa pulsão do íntimo]...

Sociedade dos Poetas Mortos, entre outras coisas, conta a estória de Neil. Quem é Neil? Ah, simples: Neil sou eu e você! Pessoas nas quais os pais depositaram alguma esperança, projetaram algum sonho, e investiram muito para que isso acontecesse.

Neil foi uma dessas vítimas das expectativas dos outros. Mas no meio desse projeto o professor Keating sopra sobre a fogueira interior de alguns jovens, entre os quais Neil, e uma labareda se lhes ascende. Neil não quer mais ser doutor formado em Harvard, mas quer atuar na dramaturgia. Neil não quer construir sua vida a partir dos testes e dos afunilamentos da vida acadêmica e profissional. Descobre que a vida é alguma coisa grande demais para restringi-la somente a esses enquadramentos. No seu caso, venceram as razões do coração.

Não me resta dúvida de que foi essa a experiência que tiveram algumas pessoas da Bíblia. Não me resta dúvida de que, por exemplo, foi esse encontro com as dimensões mais profundas de sua subjetividade que tiveram Abraão, Moisés, todos os profetas e também Jesus de Nazaré. Esse último não foi poeta no sentido convencional. Mas como diria Marcos Monteiro, “foi poesia perambulante pelas ruas da Galiléia”. As narrativas todas acerca da vocação dessas personagens, estou ciente disso, estão todas apinhadas de elementos que remetem à relação vertical sujeito/objeto, como se todos tivessem ouvidos vozes procedentes de algum lugar exterior a eles mesmos. E não é mentira! Como produto da mentalidade vigente não poderia ser narrado doutra forma!

Todos ouviram a Deus – mas em si mesmos.

Faça o teste você mesmo e veja, melhor, e ouça. Escutar Deus é auscultar Deus – em nós. E não duvide: fica de fora todo esquema sujeito/objeto. Volto a mim mesmo e ausculto. Discirno se devotaria minha frágil e efêmera vida às pulsões que de mim procedem. Se respondo a mim mesmo: “Não”, posso até obedecê-la. Nesse caso, poderei até ser um bom advogado, arquiteto, religioso, mas no fim do dia direi a mim mesmo: “falta algo...” Mas se respondo a mim: “Sim, eu morreria se não pudesse seguir a essa pulsão, ela me preenche oceanicamente”, tenha certeza de que você acabou de ter uma experiência mística. E não duvide: o produto disso será Vida, tanto para você como para os demais.

Faça o teste!

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