terça-feira, 30 de junho de 2009

NO BANHEIRO DA REALIDADE


Solidariedade versus opressão no chão dos Tabuleiros Alagoanos

O bairro da Forene, onde resido, situa-se num triângulo fronteiriço entre os municípios de Maceió, Rio Largo e Satuba. Seu processo de urbanização se deu quase que completamente em função do êxodo de trabalhadores da vila de Utinga (Rio Largo), todos eles ligados à então usina sucroalcooleira Utinga Leão, cujo nome agora é Brasil Etanol.

A família Leão, historicamente à frente da usina Utinga Leão, foi por quase 120 anos uma das grandes (e poucas!) representantes da oligarquia agrária no estado de Alagoas. Desde março do ano passado, no entanto, um grupo empresarial estrangeiro, movido pela especulação dos biocombustíveis, comprou a maior parte das ações desta empresa, de tal maneira que a família Leão participa ainda desse empreendimento, mas não mais majoritariamente.

As precárias condições de trabalho no setor canavieiro de Alagoas são amplamente conhecidas. A precarização do trabalho dos cortadores de cana é matéria sazonal em noticiários do país, e em Alagoas isso não é diferente. Todavia, pouco se diz sobre as condições de trabalho daqueles que se ocupam no chão de fábrica desse setor. Poucos conhecem as nuances da dominação e da humilhação com que os usineiros tratam também aqueles encarregados do setor industrial. No mesmo instante em que escrevo essas linhas, por exemplo, muitos de entre esses trabalhadores mal sabem como darão conta do sustento de suas famílias no dia seguinte.

A verdade é que as expectativas geradas em torno da produção de biocombustíveis deflagradas em 2007 – nesse caso o etanol – nunca se tornaram realidade em nossa região. Nem mesmo a euforia de nosso presidente Lula com relação aos usineiros, taxando-os de “heróis nacionais” da preservação ambiental, serviu para injetar vitalidade na produção de cana aqui nos Tabuleiros Alagoanos. O que se vê por aqui, pelo contrário, são os usineiros tomando carona no discurso da crise econômica mundial a fim de contribuir no processo sempre ascendente de pauperização de seus operários. Em outras palavras, etanol por aqui nunca foi biocombustível, mas necrocombustível.

Na usina Utinga Leão (atual Brasil Etanol) já se vão três meses de atrasos salariais. Hoje (30/06) expirou o prazo estipulado pelo Ministério Público do Trabalho para que esses funcionários recebessem seus ordenados atrasados, fato que não se confirmou. Houve, como em outros momentos dessa crise, manifestações de trabalhadores exigindo um posicionamento mais franco por parte de seus empregadores. Porque não se bastassem os salários em atraso, tais funcionários têm que digerir “a palo seco” (João Cabral de Melo Neto) uma postura ambígua e cínica onde vigem a indefinição e a falta de clareza quanto ao andamento de todo processo por parte dos patrões.

O grande temor entre esses trabalhadores diz respeito à possibilidade de bancarrota da empresa. E esse temor precisa ser entendido à luz dos processos psicossociais e ideológicos que produzem uma relação de paternalismo e profunda dependência desses trabalhadores ao serviço de usina. Não é fácil se desligar subitamente de uma relação trabalhista que perpassa até quatro gerações familiares em alguns casos. A identidade pessoal de cada de nós, assim como nosso processo de subjetivação tem no trabalho um componente fortíssimo. Esse também é o caso do trabalho nas usinas. Portanto, o temor dos trabalhadores não diz respeito somente à falta do que comer. Também diz respeito ao chão identitário que lhes poderá ser arrancado.

Não tem sido fácil ser pastor e ser igreja cristã no olho desse furacão. O sentimento de impotência é oceânico. Mas como diria Frei Betto num artigo de 2000 à Concilium, nos tem sido possível ver aqui “Graça em meio ao lixão da desgraça”.

Decidimos como comunidade cristã – a Igreja Batista na Forene – que, conforme o modelo da comunidade cristã judaico-helênica de Jerusalém (Atos 2,45; 4,34), as necessidades dos atingidos pela crise seriam supridas mutuamente pelos não-atingidos. Além disso, num momento anterior, pudemos contar com a generosidade e a graciosidade de amigos pastores e de suas igrejas da mesma confissão para a doação de itens básicos da alimentação cotidiana. E assim o milagre da generosidade – nesses ares pós-modernos onde vigoram a competição e o individualismo – vai sendo uma constante entre nós.

Sim, nossas ações são paliativas e remediadoras. São assistencialistas. Não tocam na “estrutura” do monstro que produziu esse rebuliço. Mas como dizia Petrúcio Amorin, “barriga seca não dá sono”. E se com a barriga farta já é difícil enfrentar o monstro estrutural que obsta esse povo de viver sua humanidade intrínseca, de “barriga seca” isso é impossível.

A mim, fica a lição de Ignácio Martin-Baró, psicólogo social e um dos padres jesuítas brutalmente assassinados em El Salvador no ano de 1989 por conta de sua postura político-ideológica identificada com os processos libertários naquele país. Porque “leitura de realidade” e “análise conjuntural” a gente aprende com perspicácia nos bancos da academia. Também lá aprendemos sobre as teorias que foram forjadas no outro lado oceano e que, acrítica e puerilmente, insistimos em aplicar aos nossos contextos locais. Então, a lição de Martin-Baró se resume no fato de que em detrimento disso tudo, solidariedade só se aprende no chão da vida, no confronto com situações bem concretas de dor e de opressão a que são submetidos muitos seres humanos. Em suas palavras, solidariedade é produto de um “banho de realidade”.

Suas recomendações aos psicólogos latino-americanos por certo se estendem aos intelectuais de outras áreas, assim como a nós, que militamos frente a um cristianismo de libertação.

E com elas eu concluo:

Aos psicólogos latino-americanos nos falta um bom banho de realidade, porém dessa realidade que agonia e angustia as maiorias populares. Por isso, aos estudantes que me pedem uma bibliografia em cada momento que precisam analisar um problema, recomendo que primeiro se deixem impactar pelo problema mesmo, que se embebam na angustiosa realidade cotidiana em que vivem as maiorias salvadorenhas e somente depois se perguntem sobre os conceitos, as teorias e os instrumentos de análise

(Psicología de la liberacíon, p. 318).

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