GROS, Frédéric (org). Foucault: a coragem da verdade. Trad. Marcos Marcionilio, 2ª edição, São Paulo: Parábola Editorial, 2004
***
Nas primeiras horas de aula, Foucault reconstituiu as origens históricas dos dois conceitos. Faz ver como, ao longo da historiografia filosófica, enquanto o conhecimento de si ganhou peso e privilégio, o cuidado de si foi em geral desconhecido e esquecido. Contudo, no nascimento filosófico dos dois conceitos -- momento que Foucault denomina de socrático-platônico -- a relação era, ao contrário, de primazia e precedência do cuidado de si sobre o conhecimento de si. Descreve, a partir da cuidadosa leitura de Platão, e incorporação filosófica dos dois conceitos, seus desdobramentos posteriores, os traços que caracterizam cada um. No final da primeira hora, retoma-os como que renomeando-os: faz corresponder ao privilégio do conhecimento, o que então denomina "espiritualidade". Podemos dizer que nestas denominações Foucault reconhece duas modalidades de conhecer e praticar a filosofia, duas vertentes de pensamento, presentes na historiografia filosófica. Numa visão muito geral e esquemática, destaquemos algumas caracterizações dessas duas vertentes.
Na vertente da "filosofia" enquanto pensamento exclusivamente representativo, o sujeito, e somente ele, tem acesso à verdade, em razão de sua própria estrutura ontológica, que não é outra senão a de um sujeito cognoscente. Na "espiritualidade" enquanto forma de pensamento e de prática, a verdade não é alcançada nem alcançável pelo sujeito no simples ato de conhecimento, pois, para ter acesso à verdade, o sujeito tem de olhar para si mesmo de modo a modificar-se, converter-se, alterar seu próprio ser. No primeiro caso, isto é, no da filosofia como os efeitos ou consequências do conhecimento, não há transformação do sujeito pois, afinal, sua estrutura é que precisa ser assegurada como condição de acesso à verdade. A espiritualidade, ao contrário, produz efeitos e consequências que incidem sobre o sujeito, iluminando-o e transfigurando-o.
Se, por um lado, historicamente preponderou nas filosofias o âmbito restrito do conhecimento, por outro, Foucault faz ver que os filósofos da antiguidade grega e do período helenístico e romano não dissociavam a questão da filosofia (a saber, "como ter acesso à verdade") da questão da espiritualidade (a saber, quais são "as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que permitirão o acesso à verdade"). É esta junção, por assim dizer, de filosofia e espiritualidade da verdade e sua prática, que estaria designada na noção de cuidado de si. De sorte que o cuidado de si, assim entendido, remete não somente ao plano da intelecção ou do conhecimento (...), mas também ao plano das atitudes, ao âmbito do olhar, à ordem das práticas, que consituem todo um modo de existência.
(p. 8-9)
Nenhum comentário:
Postar um comentário