quarta-feira, 11 de agosto de 2010

RESENHA DE "POR QUE A PSICANÁLISE?"


RESENHA DE

POR QUE A PSICANÁLISE?

de

Elisabeth Roudinesco

Elisabeth Roudinesco é francesa, historiadora e psicanalista, além de ser professora na Universidade de Paris-VII e vice-presidente da Sociedade Internacional de História da Psicanálise. É também autora de vários livros na área de história da psicanálise. Por que a psicanálise? teve sua primeira publicação na França em 1999, e foi publicado no Brasil no ano 2000 pela editora Jorge Zahar, tendo sido traduzido por Vera Ribeiro. A edição brasileira tem 168 páginas. A obra está dividida em três seções, cada qual contendo quatro capítulos, o que contabiliza o número final de doze capítulos.

Roudinesco conseguiu a difícil tarefa (nem sempre bem sucedida por inúmeros autores) de situar o grande público numa discussão de alto nível. Seu texto é fluente, simples e didático, facilitando em muito a compreensão das idéias nele desenvolvidas. Embora seu tema envolva aspectos técnicos como, por exemplo, a questão dos psicofármacos e os documentos norteadores da atuação clínica (como o DSM), sua linguagem é livre de tecnicismos, e em todo o tempo é nítida a preocupação de tornar a discussão acessível mesmo àqueles que nunca foram introduzidos na temática. A autora promove, além disso, uma franca discussão com posições antagônicas às suas, citando autores e obras que podem ser consultados a contento, evitando aquele diletantismo freqüente entre os intelectuais de afrontarem “conceitos puros”, sem discernir-lhes a fonte.

Em termos conteudísticos, a leitura das primeiras linhas deixa evidente que se trata de uma defesa da psicanálise. Seu livro pode ser resumido como uma tentativa de defesa da plausibilidade da teoria freudiana na contemporaneidade em meio ao imperialismo da indústria farmacológica e em meio a uma sociedade mais afeita aos tratamentos psíquicos de curto prazo. Nesse sentido, sua defesa da psicanálise é, por que não dizer, apaixonada. Toda sua argumentação caminha na direção da pergunta que marca o título do livro: por que a psicanálise? O esforço da autora consiste, portanto, em responder a essa questão da seguinte maneira: porque a psicanálise, a despeito das contestações que lhe vêm de diversas frentes, parte do pressuposto de que as desordens psíquicas devem ser tratadas a partir de suas causas mais profundas, sobretudo as inconscientes, não se conformando com a ação meramente paliativa de nível neuronal e farmacológico. Além desse centro em torno do qual gira esta obra, o leitor pode encontrar aí uma instigante reflexão sobre a situação da psicanálise nos dias atuais. É, portanto, um ótimo texto introdutório que contribui tanto para aqueles que já lidam profissionalmente com essa ciência, quanto para aqueles que enfrentam agora o período de formação teórica nessa área, assim como para aqueles que nunca tiveram iniciação formal com ela, mas interessam-se na questão de sua pertinência ou impertinência. Sem dúvida, é um livro obrigatório para todos os que se interessam nos dilemas mais profundos pelos quais tem de passar o ser humano.

Se Zygmunt Bauman estiver correto quanto adjetiva esse período histórico como tempos líquidos e como modernidade líquida, os desafios que se põem frente à psicanálise descritos por Roudinesco, embora sejam enormes, não deverão surpreender a ninguém. É verdade que nossos tempos são marcados pela fluidez e pela volatilidade de todos os valores, alimentados pela terrível inclinação ao imediatismo como marca de um ser inquieto e ansioso. Na sociedade de consumo, onde os desejos humanos são regulados pelas demandas do mercado, perdem sentido as experiências de profundidade, sobretudo quando se trata das questões mais íntimas da subjetividade humana. Esses tempos trazem como marca a satisfação rápida e contínua de uma torrente de desejos que não cessam de se renovar ao toque de caixa do mercado. Em outras palavras, o atual centro regulador da maioria das atividades humanas – o mercado –, coopta aos seus interesses todas as necessidades e carências da experiência pessoal, mormente nas sociedades ocidentais.

A meu ver, Roudinesco oferece uma pertinente avaliação das razões estritamente científicas de contestação da indústria farmacológica à psicanálise. No entanto, penso que as razões dessa contestação podem ser lidas também à luz dos entraves político-econômicos que marcam esse período**. É preciso afirmar, portanto, que o imperialismo dos psicofármacos é mais uma expressão de uma interessante amálgama produzida pelas imposições do capital. Essa amálgama envolve aspectos antropológicos, sobretudo quando se dirige ao homem cujo ser é definido pela capacidade de consumo e pela fluidez de toda experiência, além de envolver aspectos econômicos, quando se trata de sustentar uma indústria que vive à base daquela antropologia. Em outras palavras, a indústria medicamentosa sobrevive e se alimenta de uma imagem de homem que o mercado produz: inquieto, ansioso, consumista e imediatista. Dessa forma, elementos antropológicos e econômicos estão totalmente imbricados.

Que outros epítetos poderia ter um saber como a psicanálise nesse contexto? Como não poderia ser adjetivada de anacrônica e ultrapassada nessa sociedade líquida, marcada pelo consumo, pelo imediatismo e pela superficialidade? Como poderia insistir no seu discurso clássico de lidar com as bases mais profundas do ser humano, quando este só reconhece como pertinente as experiências voláteis que se lhe apresentam um dia após o outro? Como poderia sobreviver em paz se não corrobora essa imagem antropológica do homo consumens, e se não corrobora a manutenção de um dos braços do capital – a psicofarmacologia? Não resta dúvida de que esses são tempos decisivos para a sobrevivência desse saber profundamente identificado com o ser humano, sobretudo com suas questões mais íntimas e profundas, negadas vilmente por nossa atual conjuntura.

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ROUDINESCO, Elisabeth (2000). Por que a psicanálise? Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar


** Mas também é verdade que a autora tenha sinalizado ligeiramente este aspecto, e que essa discussão não tenha sido o foco de seu livro.

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