segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CONFISSÕES DE UM PREGADOR


“Se anuncio o Evangelho, não tenho de que me gloriar, pois pesa sobre mim essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16)

Eu sou um pregador do Evangelho do Jesus Cristo.
Das coisas que venho fazendo na vida, esta talvez seja a que me dê maior prazer. Hoje, penso em pregar esse Evangelho até o fim de minha vida. Não tenho certeza se terminarei meus dias vivendo do Evangelho. Mas quero terminá-los pregando-o. Já mudei de idéia, na fé, incontáveis vezes. Sempre quis ter a cabeça aberta às mudanças. Mas nunca mudei minha autopercepção como um pregador. Já preguei em todo tipo de congregação: nas pentecostais e nas tradicionais; nas ricas e nas pobres; na cidade e na zona rural; nas capitais e nas cidades do interior; em templos e em casas; em praças e em cima de trios elétricos; em todo tipo de lugar e para todo tipo de público.
Contudo, se nossa percepção da fé, do mundo, das pessoas, da vida, de nós mesmos, vai mudando – amadurecendo, penso eu –, o conteúdo de nossa pregação também vai. Já disse muita coisa nos púlpitos por onde passei que não diria hoje. Já privilegiei temas que não privilegiaria agora. Já interpretei passagens da Bíblia de uma forma que não repetiria atualmente. Quando eu era menino, pensava como menino, sentia como menino e pregava como menino. Não posso me arrepender de nada do que disse, porque quando reconhecemos que o que dissemos foi produto de uma época pregressa de menos amadurecimento, então o que dissemos não pode ser visto como equívoco. Talvez mais à frente eu questione essas palavras que agora escrevo, considerando-as como fruto deste tempo em que vivo e da minha compreensão atual do que é a fé.
Por isso, escrevo esse texto para possíveis pessoas que, porventura, pensem em me convidar hoje como pregador do Evangelho. É bem verdade que nunca deveríamos convidar um pregador baseado em nossas próprias expectativas. Mas a idéia é a de evitar constrangimentos e desapontamentos desnecessários.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em primeiro lugar, que gosto de pregar mais sobre a fé deJesus do que sobre a fé em Jesus. Talvez você não veja tanta diferença entre as simples preposições de em. Saiba que para mim essas preposições fazem toda a diferença, e que, em minha opinião, a fé de Jesus é muito diferente da forma como a maioria das pessoas crê em Jesus. A fé de Jesus é fé no Pai (Abba) que é Nosso, ao tempo em que a féem Jesus quase sempre é a fé em um Pai que é Meu, de Minha Igreja. A fé de Jesus é fé também nas pessoas, algumas delas consideradas impuras, hereges e distantes de Deus, ao tempo em que a fé em Jesus quase nunca é fé nas pessoas, além de ser motivo para demonização, perseguição e exclusão de pessoas que pensam e vivem de modo diferente do nosso. A fé de Jesus é uma força que leva ao serviço, ao posicionamento explícito do lado dos oprimidos, e ao risco do confronto com os opressores desse mundo. Já a fé em Jesus quase sempre leva ao quietismo, à salvação da alma individual, e atualmente ao consumismo e à exaltação dos valores preconizados pelo Capitalismo.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em segundo lugar, que gosto mais de pregar sobre problemas humanos, sobre dilemas coletivos como a pobreza, o racismo, a homofobia, a falta de segurança, a corrupção política, a inércia da sociedade, a exploração econômica e outros temas que dizem respeito à vida concreta das pessoas. Saiba que não privilegio hoje esses temas por mera sofisticação acadêmica ou vaidade intelectual. Privilegio atualmente esses temas porque os vejo, de alto a baixo, fervilharem na própria Bíblia. Saiba que em minha opinião, esse trabalho que os chamados “movimentos sociais” realizam hoje, é o mesmo trabalho que as igrejas declinaram de fazer ontem. Saiba que ao enfatizar essas coisas, me movo com a consciência de quem está querendo resgatar uma dimensão fundamental da fé cristã, testemunhada na Bíblia pelos profetas, por Jesus de Nazaré e pelas comunidades cristãs primitivas. Portanto, se você for me convidar como pregador hoje, fique certo de que não vou me fundamentar em Marx, Engels ou Che Guevara. Talvez eu possa vez por outra me aproximar deles no que convergirem com a minha percepção do Evangelho. Mas é de Isaías, Amós e Jesus de Nazaré, que meu discurso partirá certamente.   
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em terceiro lugar, que gosto de usar toda a amplitude do termo “salvação”. Gosto especialmente da forma como no Antigo Testamento se falava em salvação, isto é, como um evento de dimensões históricas que trazia de volta a paz, a harmonia e a alegria do povo em meio a situações de crise e de perigos para a existência das comunidades. Gosto especialmente da forma com que Jesus se dirigia às pessoas, depois de algum milagre, dizendo-lhes “a tua fé te salvou”, sem alusão a nenhum compromisso institucional. Gosto dessa salvação como o fim de um sofrimento físico, espiritual, psicológico e comunitário, como aquela que recebeu a mulher do fluxo de sangue. Gosto dessa salvação que é o resgate das potencialidades da vida, da possibilidade de voltar a viver como “gente comum”, no meio dos outros, sem olhares julgadores, com a autoestima elevada. Creio na salvação como “vida eterna” aqui e no porvir. Mas se você for me convidar como pregador hoje, saiba que não uso, já há algum tempo, a Idéia do Inferno como ameaça teológica e como meio de coação para a salvação eterna e para o ingresso na igreja.    
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em quarto lugar, que gosto de ler a Bíblia de forma muito livre, confiando no auxílio do Espírito Santo, com meu espírito aberto à voz de Deus, usando ferramentas científicas que me ajudam na tarefa hermenêutica, e tendo a Jesus como “princípio interpretativo”. Saiba que em lugar de ver na Bíblia um escrito psicografado por Deus através de certas pessoas, vejo nela um testemunho fantástico da caminhada do povo de Israel, produzido à luz de sua fé em Deus e das promessas messiânicas. Saiba que vejo na Bíblia um livro extraordinário, mas que pode ser tanto “palavra de Deus” quando lido e interpretado em função da vida, quanto “palavra do Diabo Humano” quando lido e interpretado para fundamentar violências simbólicas, exclusões e perseguições de toda sorte. Saiba que considero algumas porções do texto Bíblico como frutos da História, sem vigência atual, totalmente ultrapassadas, vencidas pela compreensão trazida por Jesus de Nazaré, que considero como Ponto de Plenitude da Verdade. Fique sabendo que Jesus é meu “princípio interpretativo”, e que considero “palavra de Deus”, na Bíblia, tudo aquilo que converge com o ensino de Jesus sobre as coisas da fé. Saiba que para mim, a Bíblia oferece as melhores dicas para o tipo de convivência humana sonhada por todos os povos – sendo assim Palavra de Deus.
Por último, se você for me convidar como pregador hoje, saiba que gosto de pregar sobre um Deus incompreensível e incognoscível para qualquer fé e qualquer teologia, que ama incondicionalmente tudo aquilo que criou. Saiba que me esforço para permanecer fiel ao maior legado que o Protestantismo Antigo nos trouxe, e que os novos protestantismos esqueceram: a fé na Graça de Deus. Saiba que creio na Graça como um presente dado ao universo inteiro. Como dom de toda existência, e como oceano no qual está mergulhado o próprio Ser. Fique sabendo que não creio na Igreja como “mediadora exclusiva dessa Graça”, mas creio nela como lugar potencial de acolhimento da Graça, e como comunidade onde a fraternidade e a esperança podem ser muito bem orientadas. Saiba que considero a dogma Extra Ekklesia nula sallus – fora da Igreja não há salvação – uma heresia, uma declaração de absoluta arrogância, e uma tolice total. Saiba que creio em um Deus que ri de certas convicções dogmáticas, e que, por conta dessa Graça, guarda grandes surpresas para aqueles que vivem seguros em si mesmos acerca de sua condição espiritual no mundo.
É assim que prego o Evangelho hoje. Prego como forma de gratidão pelo que o próprio Evangelho fez em mim. Como disse Paulo de Tarso, prego como forma de “constrangimento existencial”, porque “ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16). Talvez depois destas confissões me sobre pouco espaço para pregar nas igrejas. O que pouca gente sabe é que os cristãos, historicamente, começaram a se confinar em templos religiosos já na fase de “constantinização” de sua fé. O próprio Jesus tinha nas sinagogas e no Templo apenas mais dois espaços, entre outros tantos, para sua pregação. Na maior parte do tempo sua pregação se dava mesmo era nas ruas, nas casas, nos espaços públicos, e em qualquer outro ambiente onde pessoas quisessem lhe ouvir. Eu também trabalho para fazer do mundo o meu púlpito, onde pregar possa ser mais do que falar,  sobretudo viver.
Amem. 

4 comentários:

DANIEL SANTANA disse...

A GRAÇA E A PAZ, COMO SERIA BOM QUE UMA MEIA DÚZIA DE "PREGADORES" QUE CONHEÇO E CONVIVO LÊ SEM ESTE TEXTO.TALVEZ DEIXASSEM A ARROGÂNCIA E A SUPERFICIALIDADE DE LADO.DEUS O ABENÇOE PASTOR PAULO A CADA DIA EM NOME DE CRISTO JESUS AMÉM.

Marconi Gadelha disse...

Meu amigo, textos como este, que espelham fielmente quem o escreveu, ressucitam e mim a esperança no verdadeiro cristianismo.

Paulo Nascimento disse...

Caro Marconi!

Você é uma simpatia de pessoa. A Nelma nem se fala. Que nossa amizade e fraternidade se reforcem a cada dia.

Abraços!

Neilton Azevedo disse...

Olá velho Agostinho Contemporâneo.
Suas confissões são fantásticas e contundentes, só que nesse caso elas se tornam a "Confissões de um Anti-Pregado" Ou seja o perfil do pregador, do homem de Deus, do santo, passa longe de suas confissões. Mas ainda bem que vc não se enquadra no perfil do pregado moderno, pois acredito que ela passe longe do modelo deixado por Jesus de Nazaré. Forte abraço cara.