quinta-feira, 5 de julho de 2012

CIÊNCIA DE MENINO


Sobre o lúdico nas décadas de 1980 e 1990
Num bate-papo com meu pai durante as férias, ele se dizia estarrecido com a esperteza das crianças de hoje. Na opinião dele, os meninos de hoje são mais inteligentes, mais precoces em tudo. Usando um contra-exemplo, revelou algo inédito sobre mim. Disse que eu tive dificuldades para desenvolver a fala. Minha mãe, segundo ele, chegou a desconfiar que eu fosse mudo. A coisa de fato parece ter sido séria, já que até tratamento com fonoaudiólogo foi necessário. Falei somente após os dois anos de idade. Aí, meu pai concluiu: “parece que os meninos de hoje, ao contrário dos da sua época, já nascem sabendo tudo”.
Com muito respeito e reverência tive que discordar.
Na contramão da opinião do meu pai, não tenho nenhuma admiração por essa geração de crianças e adolescentes. Pelo contrário, tenho um pouco de pena deles. Melhor dizendo, tenho dó daquilo que estão fazendo deles. Fui criança na década de 1980 e adolescente na de 1990. Tenho orgulho de pertencer a essa geração por um simples motivo: entre nós havia espaço para a expansão da criatividade e da inventividade. Logo, minha tese é: aquela geração, sem Internet, sem MSN [sem Facebook], sem Playstation e sem Orkut era mais inteligente.
Na minha infância pouca coisa era necessária para a diversão. Se tivéssemos à disposição um lugar vasto (uma rua, uma várzea, uma praça, etc.), o resto era com a gente. Qualquer canto era um campo de bola. Qualquer pedra de rua era trave. Qualquer saco de plástico e meia dúzia de retalhos de pano era bola.
Mas a gente também gostava de jogo-de-botão. O problema era que nem sempre se tinha dinheiro pra comprar daqueles bonitinhos que se vendem em supermercados. Problema? De jeito nenhum! Qualquer dúzia de tampa de garrafa era um time. E se não tínhamos campo, qualquer folha de madeira lisa era transformada em um. Ganhei inúmeros campeonatos com meu “poderoso Bahia”.
Como todo menino da média, a gente adorava carrinho-de-mão. Se não tínhamos aqueles feitos em fábrica, qualquer recipiente de água sanitária cheio de areia e um barbante virava carro. E o que dizer então das patinetes, protótipos do skate,feitas de madeira e rodinhas de rolimã? Tinha até volante e freio! Meu Deus, como era bom!
E as pipas? São elas que mais revelam a inteligência peculiar daquela geração, porque sua fabricação requer conhecimentos de aerodinâmica (inconscientes até então). Os nomes eram os mais inusitados: tinha o morcego, em forma de quadrado e cruzado de uma ponta à outra por uma talisca de bambu reta e outra em forma de arco; tinha a arraia, em forma retangular e cruzada por duas taliscas retas; o tinha o bacalhau, cuja forma lembrava o emblema do Super Homem, atravessada por duas taliscas paralelas retas e outra perpendicular a elas; e tinha ainda o singelo periquito, feito com qualquer papel, sem taliscas e cuja aerodinâmica dependia apenas da exatidão das dobras.
Não tenho certeza, mas creio que eu e meus amigos tenhamos inventado oTampinha Cross. Pelo menos, nunca ouvi falar dele em outros lugares. Era simples: num chão de barro nós esculpíamos uma pista imitando um autódromo. Alisávamos o fundo de uma tampinha de refrigerante ou cerveja e cada um tinha direito a três toques (nós chamávamos de tops) na tampa alternadamente. Vencia quem cruzasse a linha de chegada primeiro, como numa corrida de Fórmula 1. E nisso a tarde ia num segundo!
Nós não nos contentávamos nem mesmo com as revistas em quadrinhos prontinhas das bancas. Produzíamos as nossas. Tínhamos os nossos próprios personagens e até nossa própria editora. Já pensou?
Qual era a vantagem daquela geração sobre a atual? A criatividade e a inventividade! Hoje a diversão exige um click insosso de mouse ou de joystick. Sem esse mundo de facilidades cibernéticas e interativas a gente tinha que fazer metamorfose das coisas. Em termos modestos a gente tinha que ser cientista, isto é, transformar a realidade bruta dos fenômenos a nosso favor. Fazíamos isso com maestria. É por isso que sinto pena dessa geração de crianças e adolescentes: estão sendo castrados em sua criatividade e inventividade em função de um click.
Eis, por fim, a diferença entre as duas gerações: a de agora goza os frutos da ciência – a de outrora fazia ciência. Rusticamente, mas fazia!
Janeiro de 2007

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