sábado, 19 de janeiro de 2013

A RAZÃO ESPIRITUAL DO CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO

Por Jung Mo Sung

Recentemente assisti uma entrevista de um padre famoso por suas liturgias-show em um canal de TV aberto. Ele disse que respeitava a Teologia da Libertação, mas que ela levava somente assistência social aos pobres, mas não a fé; e que ele levava a fé e também a assistência social.



Eu não quero discutir aqui se a opinião dele sobre a TL está correta ou não, mas temos que reconhecer que essa é uma imagem muito divulgada sobre a TL. Isto é, difundiu-se na sociedade, e também em muitos setores das igrejas cristãs, que a TL se preocuparia somente ou prioritariamente com as questões sociais e políticas (o que é mais do que mera assistência aos pobres dito por aquele padre) e, com isso, deixaria sem segundo plano a religião, fé e espiritualidade.

Quem conhece melhor a TL sabe que isso não é correto, mas algo deve ter passado para que essa "falsa imagem” tenha se espalhado. Não pode ser somente culpa ou responsabilidade de algum tipo de "difamação” ou incompreensão por parte dos que se opõe a TL. Talvez não tenhamos sido suficientemente claro em explicitar os fundamentos bíblicos, a experiência viva da fé e a espiritualidade que nos move nas lutas e debates sociais e políticos. Em me lembro de uma aula que tive com Hugo Assmann, no mestrado em teologia, em 1988, quando ele nos dizia muito seriamente: se a TL perder a bandeira da espiritualidade para setores carismáticos conservadores será o início do seu fim.

Não sei se já perdemos essa bandeira e luta, mas penso que é fundamental sempre nos relembrarmos e reforçarmos uma das convicções fundamentais dos primeiros teólogos da libertação: a TL é uma teologia espiritual! Não porque discute a espiritualidade na Bíblia ou retoma o estudo dos grandes mestres espirituais – coisas que também faz –, mas porque assume como o seu momento "zero” uma experiência espiritual. É bastante divulgada a tese de que a TL é o momento segundo, sendo o momento primeiro as lutas pela libertação. (Por isso, a TL não é uma simples releitura dos tratados teológicos a partir da opção pelos pobres, ou como diversos propõe hoje a partir do pluralismo religioso, mas uma reflexão teológica a partir e sobre as lutas de libertação.) Mas, poucos se lembram que, na tradição do cristianismo de libertação, o que nos motiva para essa luta é a indignação ética frente a realidade da injustiça social, do sofrimento dos pobres. E que essa indignação é mais do que meramente uma questão ética. Como a primeira geração da TL afirmou: é uma experiência espiritual de ver na face do pobre a face de Jesus.

Talvez esse ponto fundamental, que está no fundamento, deva ser mais aprofundado e difundido pelo cristianismo de libertação. Quando se diz que no encontro solidário com os pobres e outras vítimas das injustiças e preconceitos encontramos com Jesus ressuscitado, é claro que isso não deve ser entendido no sentido literal, como se pudéssemos ver Jesus com os olhos que " a terra irá comer”. É uma linguagem espiritual-teológica. Entendemos melhor o seu sentido quando nos perguntamos de onde vem essa força que nos empurra a lutar por pessoas que não podem nos pagar ou retribuir – lutar de "graça” – e quando nos perguntamos também porque, apesar de tanta dificuldade e incompreensões, essa luta deixa nossa vida com mais "graça” de ser vivida, razão pela qual nos mantemos fieis a luta.

É da sabedoria espiritual cristã ser capaz de "ver” esses "mistérios da fé” – a experiência da "graça” de Deus no cotidiano – que estão por detrás, para além da mera aparência, de "assistência social” ou de "luta política”. Uma sabedoria que é capaz de perceber e compreender o Espírito de Jesus Crucificado e Ressuscitado nas nossas vidas. É isso que quer dizer "encontrar Jesus no encontro solidário com os pobres e vítimas”.

Pessoas e grupos que vivem movidas por essas experiências espirituais se congregam em comunidades para celebrar sua fé e sua caminhada espiritual. É uma celebração "energizada” por algo mais profundo do que performances de rituais humanos, uma celebração movida por esse Espírito de Amor solidário, que nos faz compreender o que diz a primeira carta de são João: "Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é realizado” (1Jo, 4, 12).

Talvez o que precisamos é melhorar nossa comunicação com a igreja e a sociedade para mostrar mais claramente que o que move o cristianismo de libertação não é ideologia política ou problemas sociais, mas é a fé em Jesus e o Espírito Santo, que nos movem ao encontro das pessoas que sofrem e juntos lutar pela Vida. E isso porque, além de ser teologicamente correto, a força social do cristianismo está na sua espiritualidade.

[Jung Mo Sung, autor, com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres” (Paulus). Twitter: @jungmosung].

Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73185

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

JESUS E FREUD

Um pouquinho de bom humor pra quem não se achar mais santo que Jesus! 


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

UMA RAPIDINHA SOBRE "EXCENTRICIDADE"


Era uma aula de mestrado, e a primeira coisa que me chamou à atenção naquela sala foi o fato de que entre os mais de vinte mestrandos, havia apenas um homem além de mim. Segundo, uma parte daquelas mulheres era declaradamente feminista. E a aula começou exatamente pelo tópico das relações históricas entre homens e mulheres, e pelo papel do feminismo da presente conjuntura. O clima era um pouco pesado. Mas o bom humor do professor deixou tudo muito descontraído.
Foram poucas as vezes na vida em que eu me senti excêntrico. Mas, espere um pouco. Você sabe o que é excentricidade? Simples. Um indivíduo excêntrico é um indivíduo que está “fora do centro”. Ex-cêntrico. Fora da norma, do eixo, do prumo, da baliza. Anormal. À margem. Marginal. Excentricidade, portanto, é o sentimento que nos invade sempre que nos sentimos fora de um padrão considerado normal, conforme as convenções sociais.
Foi um pouco assim que me senti no meio de tantas feministas juntas. E foi bem desconfortável, a princípio.
No entanto, ao fim da aula tudo voltou a ser como era. A excentricidade se foi. Isso porque aquele momento funcionou como uma espécie de suspensão do cotidiano. Fim do momento de suspensão, fim do sentimento de excentricidade. A questão é que há grupos sociais que carregam a excentricidade aonde quer que vão. Para os tais, não há momentos de suspensão. A excentricidade é o seu cotidiano. Na prática, isso quer dizer muita coisa. 
Há muitos excêntricos desejosos de sair desse lugar, para ocupar o centro. Mas há muita gente assumindo suas mais diferentes excentricidades, numa tentativa de multiplicar os centros. Esse não é um movimento fácil. É sempre difícil furar as barreiras da normalização. A excentricidade, à primeira vista, é bem desconfortável. Mas ela deve ser muito mais quando é a matéria que constitui o cotidiano dos indivíduos.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O CORPO E O PODER RELIGIOSO


Três níveis de docilização religiosa dos corpos
A fixação docilizadora do cristianismo em relação ao corpo é muito anterior a qualquer técnica moderna de poder. Nietzsche talvez tenha sido um dos primeiros filósofos a denunciar programaticamente a problemática relação do cristianismo com o corpo. Desde muito cedo, na história cristã, a negação do corpo e de seus prazeres foi se constituindo como forma privilegiada de acesso à bem-aventurança, sempre remetida à alma e ao espírito.
Embora se reconheça a presença constante de correntes problematizadoras dessa fobia ao corpo no interior da própria história da religião cristã, parece-nos que tais contra-discursos nunca chegaram a provocar mudanças paradigmáticas na forma de relação entre o cristianismo e o corpo. Nenhum dos grandes cismas registrados na história do cristianismo ocidental tematizou o corpo enquanto superfície de aplicação do poder.
O próprio Foucault, que descreveu magistralmente a produção de um “poder disciplinar” surgido como forma de docilização dos corpos no contexto das reestruturações econômicas da Europa a partir dos séculos 16 e 17, admite que tais tecnologias disciplinares haviam existido de forma isolada em certas instituições, dentre as quais os mosteiros cristãos medievais.
Obviamente, há diferenças fundamentais entre as técnicas disciplinares de docilização dos corpos presentes nas instituições cristãs e aquelas que Foucault discutiu a partir do sistema carcerário e escolar modernos, especialmente em Vigiar e punir. Enquanto nestas, a docilização dos corpos visa esvaziá-los de sua potência política para aumentar sua potência produtiva em termos econômicos, aquela visa especificamente o esvaziamento das possibilidades éticas, entendidas como “cuidado de si” e como a utilização do corpo como forma de fazer da vida uma obra de arte. Enquanto as técnicas modernas de docilização dos corpos estariam ligadas à dominação econômica (e indiretamente ligadas ao domínio da subjetividade), aquelas ligadas ao cristianismo estariam relacionadas diretamente às lutas pelo domínio da subjetividade.
A nosso ver, há pelo menos três níveis pelos quais atualmente as diversas igrejas cristãs operam uma docilização dos corpos, esvaziando suas possibilidades éticas.
Um primeiro nível é o mais capilar de todos. Ele tem a ver especialmente com a doutrina e a ideologia relacionadas aos processos de formação empreendidos pelas comunidades religiosas. Estaria presente nos púlpitos, na pedagogia cristã, na hermenêutica dos textos bíblicos, e nas demais formas de ensino cristão, que servem para a manutenção ideológica de cada confissão, cujo efeito imediato é um estrito controle dos corpos, corroborando os mecanismos de normalização da sexualidade presente em outras instituições sociais. Seria um enorme equívoco dizer que as comunidades cristãs são as únicas instituições sociais a promoverem este tipo de docilização dos corpos. O que se pretende aqui é demonstrar apenas a peculiaridade desses discursos religiosos, no interior de uma teia discursiva que é muito maior, e que atravessa todo o tecido social.
Um segundo nível, especialmente relacionado ao anterior, diz respeito à formação especifica dos quadros pastorais das diferentes comunidades religiosas. Embora eles estejam muito próximos do nível capilar acima esboçado, sua peculiaridade consiste no fato de que se trata aqui da formação específica dos agentes pastorais. A nosso ver, esse nível caracteriza uma estratégia de dominação dos corpos mais presente no contexto católico. Docilizar os corpos e a sexualidade, esvaziando-os de sua potência ética, significa, entre outras coisas, formar pessoas competentes para operacionalizar essa estratégia específica de poder. Um exemplo pontual poderia ser dado com o documento do Vaticano Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e de sua admissão ao seminário e às ordens sacras, analisada magistralmente por Durval Muniz de A. Júnior, e adjetivado por este autor como uma forma de “pastoral do silêncio”.
Um terceiro e último nível seria aquele que encontramos mais explicitamente representado por atores religiosos ligados ao campo evangélico, em que a plataforma política serve como base para o exercício do poder sobre os corpos. O Poder Legislativo brasileiro, como é amplamente sabido, tem tido nos últimos anos ampla presença de atores cuja representação política está explicitamente identificada com os interesses de certas instituições religiosas, mormente das igrejas evangélicas. A participação política de tais atores privilegia os temas ligados ao corpo e à sexualidade, não propositivamente, mas como forma de contenção às políticas sociais voltadas para a diversidade sexual. Esse nível, a nosso ver, necessitaria de uma problematização especial, pois se vincula com as questões do caráter laico do estado. Ele se diferencia dos dois níveis anteriores por sua abrangência social, pois implica a imposição de certas visões religiosas particulares acerca do corpo e da sexualidade para o todo social, marcado pelo pluralismo e pela heterogeneidade.
É importante apontar para a base heteronormativa presente em todos os níveis de controle sobre o corpo aqui esboçados. Cada um deles, a nosso ver, e ao seu modo, estão vinculados ao “dispositivo de sexualidade” que Foucault descreveu no primeiro volume de sua História da sexualidade. Descrever a relação entre esses níveis, e a relação de todos eles com os processos de normalização do corpo e da sexualidade levados a cabo por outros discursos e outras instituições sociais laicas, é o desafio que estamos propondo em nossa pesquisa de mestrado. 

Finalmente, como Foucault sugere, nosso estudo dessas relações de poder não se dá na perspectiva da repressão, da violência ou da imposição, mas se identifica com as teorizações que tomam o poder como força produtiva e positiva. Uma das perguntas fundamentais que tentaremos responder, portanto, seria a seguinte: que potência de vida é reclamada por esse tipo de poder religioso sobre os corpos? Consequentemente, precisaríamos perguntar: que relações esse poder religioso sobre os corpos teria com o biopoder, enquanto modalidade de poder cuja pretensão é maximizar a potência da vida? 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

GONZAGÃO, GONZAGUINHA E O EVANGELHO


Certamente, uma das maiores belezas do Nordeste está na história do seu povo. Além da música, do artesanato, da culinária, da poesia, a beleza do nordeste está espalhada nas incontáveis biografias anônimas, que nunca se tornarão filme ou livro. Mas a história de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e de seu filho Gonzaguinha, retratada no filme Gonzaga: de pai para filho, é dessas que nos forçam a pensar na nossa própria vida.
No Sermão do Monte, Jesus afirma que “onde estiver o nosso tesouro, ali estará o nosso coração” (Mt 6,21). Em Marcos 8,36 Jesus indaga a seus discípulos perguntando-lhes: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Mas, o que tudo isso tem a ver com Gonzagão e Gonzaguinha? Sem querer contar o filme, e estragar seu o prazer em assisti-lo, eu diria que saí daquela sala de cinema com as seguintes reflexões:
Quais são os bens mais preciosos na vida de uma pessoa? Onde está o nosso coração? Nós hoje vivemos num tipo de sociedade onde o consumo, o reconhecimento, o prestígio social tornaram-se deuses a quem as multidões se devotam. Valores básicos e fundamentais como a família, o companheirismo conjugal, o tempo com os filhos, estão ficando cada vez mais nos últimos degraus da escala de prioridades na vida de muita gente. Quais são os custos disso?
Gonzaga: de pai para filho é uma belíssima narrativa, que, semelhante a algumas narrativas bíblicas, fala de amor, de superação, mas também dos dilemas e angústias que marcam de um jeito ou de outro a vida de todo mundo. Mas acho que, sobretudo, se trata de uma narrativa que fala de escolhas. O adágio do povo diz sabiamente que “a vida é feita das escolhas que fazemos”. Mas saber disso ainda é pouco!
O que a história de Gonzagão e Gonzaguinha tem a ver com o Evangelho? Como o Evangelho, ela nos lembra de que nossas escolhas têm consequências, e que realmente não vale a pena ser “rei de nada”, se perdemos o que é mais fundamental nessa vida...
* Texto do boletim dominical da Igreja Batista do Pinheiro (Maceió-AL), para o dia 04/11/2012.

sábado, 13 de outubro de 2012

E POR FALAR EM “KIT GAY”...


Já que o chamado “kit gay” – cujo nome técnico definido pelo Ministério da Educação havia sido Kit Anti-homofobia – voltou a ser assunto nas mídias do país, por causa da estapafúrdia ameaça de Silas Malafaia de “arrebentar em cima de Fernando Haddad” no segundo turno da disputa pela prefeitura de São Paulo, eu gostaria de trazer outra vez uma questão que considero respondida insuficientemente: se vivemos em um estado laico e não-confessional, como é possível que diretrizes religiosas possam interferir nas políticas públicas educacionais do país?
Uma tentativa de resposta que deve ser corrigida apresenta o argumento de que “o estado é laico, mas a nação é cristã”. Na verdade, o estado é laico, mas a nação é plural. A maioria cristã é uma realidade óbvia e inquestionável. Mas o reconhecimento dessa maioria não deveria ser utilizado como o fim do debate pela imposição da mesma. Isso não seria uma democracia, mas uma teocracia. O reconhecimento da maioria cristã deveria abrir a discussão de como é possível em um regime democrático, conciliar os interesses da maioria com as demandas sociais de grupos minoritários, sem desprezar esses últimos; ou ainda, como atender à legitimidade das demandas sociais dos grupos minoritários sem atribuir-lhes privilégios sobre o todo. Em síntese, o reconhecimento da maioria cristã deveria abrir o debate acerca de como o estado laico poderia, em meio a interesses e demandas sociais tão diversas, garantir o direito de plena cidadania a todos.
A rigor, diretrizes religiosas não devem conduzir as dinâmicas estatais em arranjos laicos e não-confessionais. Todavia, isso não quer dizer os atores religiosos estão impedidos de participar da arena política nacional nesses contextos. Enquanto cidadãos do país, e enquanto pertencentes ao enquadre multicultural que marca a sociedade, é legítimo que atores religiosos participem ativamente da condução política do país. Essa afirmação, entretanto, nos coloca diante da seguinte questão: como conciliar a presença e os interesses de atores religiosos na esfera público-política em um estado laico?
Alguns intelectuais, como Jürgen Habermas, por exemplo, defendem a ideia de que deve haver por parte de tais atores religiosos uma espécie de “tradução da linguagem” e dos interesses religiosos para uma linguagem política e secular. Habermas defende ainda que tais atores religiosos partam de alguns pressupostos cognitivos, que são basicamente dois: a aceitação da pluralidade cultural da nação, e a aceitação da neutralidade do estado em termos ideológicos. Portanto, os atores religiosos não estão vedados de participarem da arena público-política do país. A questão a ser pensada é como se dá tal participação. Dar contribuições específicas, direcionadas para problemas políticos e em linguagem secular, é muito diferente de conduzir o país empunhando um cetro cristão, ou qualquer outro cetro religioso.
Em outra oportunidade, já manifestamos nossa discordância da noção de “estado neutro”. No lugar dessa noção, propomos a ideia de um estado não-confessional. A laicidade dos estados modernos quer dizer que os mesmos deixaram de ser normatizados por valores religiosos. Contudo, isso não significa neutralidade. Perguntamo-nos: a partir de então, quem informa ideologicamente as ações dos estados modernos? Em nossa opinião, essa resposta deve apontar para duas instâncias principais: os saberes científicos e o direito. E aqui estaria o link para voltarmos a pensar no chamado “kit gay”, proposto à época pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad.
A ideia de introduzir materiais educativos com pretensões anti-homofóbicas nas escolas públicas brasileiras se radica em dois elementos. Primeiro, no reconhecimento de que a educação sexual que se transmite na educação pública atualmente estaria vinculada a uma matriz cultural que é religiosa e cristã. O simples reconhecimento desse fato seria problemático para a educação a ser oferecida por um estado laico e não-confessional. Segundo, a pressuposição de que a homofobia, que se expressa desde níveis mais cotidianos enquanto desqualificação, até níveis mais duros como os assassinatos motivados por questões de preconceito sexual, não são apenas problemas individuais, mas estruturais, que passam pela educação formal. A violência individual seria a ponta de um processo muito maior, que contemplaria também a educação formal.
Michel Foucault e Judith Butler são exemplos de autores que trabalham com a noção de matriz cultural. Em suas pesquisas, o Cristianismo tem lugar central enquanto matriz cultural presente na formação dos saberes científicos (médico, psicológico, psiquiátrico etc.), e também nas concepções de gênero que balizam grande parte das atuais relações sociais. A escola moderna tem sido um dos ambientes estratégicos mais eficazes para que tais saberes tornem-se forças normalizadoras, contribuindo com a naturalização das noções de normal e patológico, neste caso, no campo da sexualidade.
Uma vez que se reconhece o lugar da escola nas estratégias que normalizam e naturalizam concepções de gênero cuja matriz é religiosa e cristã, como não falar sobre isso na educação promovida por estados laicos e não-confessionais? Uma vez que se reconhecem os problemas ligados ao binarismo normal versus patológico relacionados à sexualidade, traduzidos na violência contra o “patológico” e a necessidade de sua eliminação, como não trazer essa discussão para a escola não-confessional? Uma vez que se reconhece que a homofobia, seja em nível simbólico ou concreto, não é apenas um problema de indivíduos, mas um problema sistêmico que envolve inclusive o tipo de educação sexual nas escolas e o silêncio delas acerca disso, como não levar para elas esta discussão?  
A meu ver, a introdução de materiais educativos nas escolas públicas voltados para o combate à discriminação e à violência sexual, não pode ser reduzido à discussão de convicções dogmáticas sustentadas por grupos religiosos. Ela deveria ser pensada na perspectiva da “governamentalidade”. Com esse termo, Foucault falava acerca de uma nova arte política inaugurada na Modernidade, que tem a população como seu objeto. Essa governamentalidade tem por função regular da melhor maneira possível a relação entre pessoas e coisas, a fim de maximizar os efeitos produtivos de tal relação. Porém, mais do que isso, trata-se aqui de maximizar da melhor forma possível a relação entre pessoas e pessoas. E em minha opinião, a violência sexual – assim como a violência contra mulheres, crianças e idosos, o racismo etc., – é um tema da ordem da segurança pública que precisa ser trabalhado desde os primeiros anos da educação formal.
Portanto, é função dos estados modernos (laicos e não-confessionais), garantir os diferentes modos de existência humana, e zelar por sua plena cidadania. Também é sua função pôr em ação todos os meios possíveis que garantam a segurança de seus cidadãos. Esses meios não devem se reduzir aos dispositivos da repressão e das sanções penais, mas devem se estender aos dispositivos de prevenção, que passam pela construção de uma cultura de paz. A escola, nesse sentido, continua sendo um lugar estratégico para tudo isso. As igrejas, quaisquer que sejam, deveriam aplaudir e se unir a tais iniciativas que corroboram o respeito às diferenças e a convivência pacífica entre as pessoas. Afinal, estas coisas lembram em muito os ideais daquele a quem uma parte das igrejas chamam de Senhor.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

DECÁLOGO CONTRA O "VOTO DE CAJADO"



Dedicado especialmente aos amigos pastores
I.
Não usarás do vosso poder pastoral para guiar a consciência dos fiéis, como um rebanho de idiotados, em benefício de qualquer candidato. 
II.
Não usarás as Sagradas Escrituras de forma capciosa, a fim de legitimar a candidatura de uns, e demonizar a candidatura de outros. 
III.
Não venderás a tua consciência a candidato algum, em troco de recompensas materiais feitas à tua congregação. 
IV.
Não permitirás que teu púlpito deixe de ser plataforma de anúncio do Evangelho, para ser plataforma de propaganda partidária e eleitoreira, em tempo algum. 
V.
Não coagirás nem ameaçarás teus pastoreados que manifestarem inclinações políticas diversas das tuas. 
VI.
Reforçarás em todo tempo a total liberdade de consciência de teus pastoreados, em matéria de religião e política, ou em qualquer outra coisa. 
VII.
Instigarás tua congregação à ampliação sempre constante da consciência política crítica e livre, antes, durante e depois das eleições. 
VIII.
Auxiliarás aos teus pastoreados a perceberem que a ação política é muito maior que o voto, estendendo-se a ações individuais, associativas, comunitárias, de movimentos sociais, e que tais ações são tão potentes quanto o voto para as mudanças que todos desejam para a pólis. 
IX.
Conduzirás tua congregação de um modo que a mesma seja politicamente pertinente na comunidade onde está inserida. 
X.
Terás vergonha na cara em todo o tempo, também nos tempos de eleição.

Amém, irmão?