sábado, 15 de outubro de 2011

POR QUE "ÓPIO COISA NENHUMA"


Sobre o potencial ambivalente da experiência religiosa

Quando eu resolvi produzir meu blogue, há três anos, uma grande amiga achou o título Ópio Coisa Nenhumahorrível. Num papo confidencial, ela me dizia que o nome era estranho, foneticamente deselegante, e espiritualmente esquisito. O blogue de um pastor, dizia ela, deveria ter um nome mais espiritual, mais suave, mais bíblico. Quando submeti meu livro, com o mesmo título, ao conselho editorial da EDUFAL, o(a) parecerista me recomendou que o mudasse. O título havia sido considerado confuso, editorialmente não recomendado e mercadologicamente fraco. O livro foi aprovado para a publicação com o título Religião e compromisso social (no prelo).
Para mim, era óbvio que o título Ópio Coisa Nenhuma seria automaticamente compreendido pelas pessoas. Eu pensava que todo mundo veria nele uma explícita referência ao aforismo de Marx “a religião é o ópio do povo...”. Todo mundo vai notar que Ópio Coisa Nenhuma é uma negação e uma afronta a esse aforismo, assim eu pensava. E a história que se seguiu foi a de inúmeros esforços para ter que justificar o porquê desse título.
Eu vislumbrei desde muito cedo minha vocação como teólogo. Lembro-me de enfrentar meu examinador do concílio com a estranha vontade de ser pastor-teólogo. E uma de minhas ênfases enquanto teólogo tem sido a de reforçar o potencial positivo da experiência religiosa. Já há muita gente interessada no potencial negativo da religião, dentro e fora das igrejas. Mas eu tinha razões muito fortes e pessoais para assumir outra postura.  
A primeira delas diz respeito à minha própria experiência com a religião. Eu também tive uma fase inicial de fundamentalismo e êxtase irracional. Já me entreguei aos devaneios carismáticos que vivem da negação do mundo e da demonização dos prazeres da vida. Mas essa fase não durou muito, embora tenha sido bastante necessária. No geral, foi com a experiência religiosa que tive a experiência de encantamento do mundo. Aprendi o valor das pessoas, descobri potencialidades latentes em mim mesmo, e venci uma série de dificuldades pessoais que por muito tempo eu havia experimentado como travas existenciais. Quando o efeito do ópio fundamentalista acabou, uma fé madura me encheu de paixão pela vida, e uma vontade de lutar por um mundo melhor tornou-se o mote principal de minha existência. Devo tudo isso à minha experiência religiosa.
Em segundo lugar, uma das razões para reforçar o potencial positivo da experiência religiosa havia sido a descoberta de algumas biografias magníficas. Eu havia descoberto um número significativo de pessoas para quem a experiência religiosa não poderia ser chamada de ópio. Nos livros, eu ia me dando conta de que a experiência religiosa estava na base da ação de grupos e de pessoas fantásticas, amplamente celebradas mundo afora.
A religião da comunidade primitiva de Atos 2,42-47 e 4,32-37, que partilhava todos os bens a fim de que ninguém tivesse necessidade, não podia ser chamada de ópio. O episcopado libertador de Basílio de Cesaréia (329-379) não podia ser chamado de ópio. As reivindicações sociais dos camponeses anabatistas do século XVI, liderados pelo espiritualismo de Thomas Müntzer (1490-1525), não podiam ser chamadas de ópio do povo. A abnegação dos irmãos moravianos, que se vendiam como escravos para evangelizar as colônias européias, não podia ser chamada de ópio do povo. Muito menos a sensibilidade de John Wesley (1703-1791) frente aos trabalhadores ingleses que começavam a ser vitimados pelos efeitos da Revolução Industrial, e o evangelho social de Walter Rauschenbusch (1861-1918) na virada para o século XX.
Eu ia descobrindo nos livros que a América Latina era um caldeirão fervilhando com um tipo de religião que não podia ser adjetivada de ópio do povo. Entre evangélicos e católicos, havia indivíduos e grupos que deveriam ser tratados diferentemente. Como chamar de ópio do povo a religião de Richard Shaull, de Paulo Wright, Rubem Alves e Paulo Evaristo Arns? Como chamar de ópio do povo a religião daqueles que escreveram o Manifesto da Ordem dos Pastores Batistas de 1963? Como chamar de ópio do povo à religião dos que organizaram a Conferência do Nordeste, em 1962, com o tema Cristo e o processo revolucionário brasileiro? Como chamar de ópio do povo às Comunidades Eclesiais de Base e à Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, José Comblin e Leonardo Boff? Nos livros, eu ia me dando conta de um tipo de experiência religiosa que não aparecia na crítica dos professores universitários.  
Em terceiro lugar, minha ênfase enquanto teólogo no potencial positivo da experiência religiosa se reafirmava na medida em que eu ia conhecendo gente de carne e osso, cuja experiência religiosa não poderia ser adjetivada como ópio. Com o tempo, fui me acercando de pastores e pastoras, missionários e missionárias, teólogos e teólogas diferentes. Eu não poderia chamar a religião de Marcos Monteiro de ópio do povo, com sua opção pelos pobres e sua renúncia às pompas da atividade pastoral. Eu não podia chamar a religião de Wellington Santos e Odja Barros de ópio do povo, por conta de sua coragem na denúncia de realidades de opressão fundiária, política e de gênero. Eu não poderia chamar a religião de Adriano Trajano de ópio do povo, com sua abnegação por humanizar um torrão de Alagoas que pouca gente que saber, e por seu enfrentamento de certas oligarquias históricas que por lá se perpetuam. Enfim, eu estava totalmente convencido de que a religião de Waldir Martins, Raimundo César, Paulo César, Jardson Gregório, Reginaldo Silva, Claudio Márcio, Joel Zeferino, e tantos outros e outras que fui conhecendo durante a caminhada, não poderia ser chamada de ópio do povo.  
Mas não se engane: pessoas religiosamente virtuosas não são apenas aquelas capazes de grandes realizações no campo social. Há um número enorme de pessoas anônimas, sem diplomas, sem vínculos com movimentos e iniciativas sociais, membros de comunidades religiosas, que fui conhecendo em minha trajetória pastoral, cuja vida é encantadora. Ou, como diria Foucault, gente que [a partir da religião] “foi fazendo de suas vidas uma obra de arte”. Pessoas simples, algumas delas sem estudos formais, mas profundamente inspiradoras.
Citar nomes é um ofício que comporta uma única certeza: a de que cometeremos a injustiça de esquecer alguém. Mas ainda assim eu mencionaria o irmão Altino (Acupe-BA), pregador do Evangelho completamente iletrado, do alto dos seus 85 anos (quando o conheci há nove anos), e com uma vitalidade de dar inveja em gente de 18 anos. Gente como Dró (Eduvirgens – Barra do Rocha-BA), cuja alegria contagia a quem estiver perto, qualquer que seja a situação. Gente como o irmão Zeca (Utinga-AL), cuja simplicidade apaixonante nocauteia qualquer presunção. Gente como Alda Galdino (Forene – Rio Largo-AL), cuja sensibilidade e humanidade constrangem a muitos humanistas. Gente como Pêu (Forene – Rio Largo-AL), cuja bondade, inteligência e sede espiritual são fascinantes.
Isso não minimiza as coisas vergonhosas que certos religiosos praticaram e praticam mundo afora. Mas tais coisas devem nos fazer pensar que nenhuma religião é intrinsecamente má. Bom ou mau é o uso que as pessoas fazem de sua experiência religiosa.
Com a religião as pessoas podem aprender a discriminar os outros, mas foi com ela que eu mesmo aprendi a respeitar as diferenças humanas. As pessoas podem ser motivadas a matar em nome de sua fé, mas foi pela fé que eu mesmo aprendi que a vida é o nosso bem maior. Com a religião as pessoas podem aprender que esse mundo não tem jeito e a cruzarem os braços esperando o céu, mas foi com a religião que eu me convenci de que o mundo pode ser transformado agora mesmo. As pessoas podem aprender com a religião que a cultura humana e as coisas alegres que nela há são entes contra os quais temos que resistir, mas foi com a religião que eu aprendi que “tudo na criação de Deus é bom”, e que a vida deve ser protegida e aproveitada da melhor maneira possível.
Ópio do povo? Pode até ser aqui e ali.
Para mim? Coisa nenhuma!  

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Nota de repúdio ao Promotor de Atalaia Sóstenes de Araújo Gaia


Nota de repúdio ao Promotor de Atalaia Sóstenes de Araújo Gaia

10 de Outubro de 2011.

A Constituição Federal, em seus Artigos 127 a 130, define o Ministério Público como uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Em seu Artigo 129, inciso II, lhe é atribuído como função “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.
Na contramão da sua incumbência constitucional, em Audiência Pública, sobre Segurança, realizada pela Câmara de Vereadores de Atalaia no último dia 20 de setembro, com a presença de Dr. Alfredo de Mesquita (Juiz de Direito), Major J. Cláudio, vereadores e outras autoridades, o promotor público Sóstenes de Araujo Gaia usa a tribuna para afirmar que dentre as dificuldades existentes na comarca de Atalaia tem-se “o problema dos Sem Terras que é de onde parte toda bandidagem do município”.

A respeito de mais uma infeliz declaração do promotor, o Movimento Sem Terra afirma:

  1. Que reconhecemos o importante papel do Ministério Público no Brasil e em Alagoas. Fomos defensores de seu crescimento e sua autonomia e independência no processo de democratização do Brasil, mas não podemos nos calar diante de pessoas que envergonham e maculam a imagem do MP;

  1. Sentimos na carne as questões da violência em nossa sociedade. A violência social e a violência do Estado quando não garante direitos constitucionais aos cidadãos. E temos feito nossa parte para minimizar estas violências. Imaginem o que seria dos milhares de trabalhadores que foram descartados das terras das Usinas Brasileira e Ouricuri em Atalaia após falência, e com a apropriação indevida daquela terras por fazendeiros e autoridades; se não tivessem encontrado no MST a possibilidade de ter terra, trabalho e moradia digna;

  1. O MST em Atalaia é alvo de inúmeras tentativas de barrar a luta pela terra, prova disto é o histórico de violência contra a luta e os trabalhadores, tendo três mortes só neste município, através de consórcios de fazendeiros e grileiros de terra com a conivência de autoridades (Chico do Sindicato, José Elenilson e Jaelson Melquíades, todos assassinados, impunes até hoje). Buscando criminalizar o Movimento e construir uma imagem negativa da organização na sociedade.

  1. Lamentamos muito a conduta de um agente público que deveria servir de defesa intransigente da aplicação da Lei, mas que se soma ao conservadorismo que insiste em afrontar os Direitos Humanos. Posições expressas na fala do promotor citado, como “bandido bom é na pedra do IML”, não condizem com a competência demandada pela Instituição a qual hoje representa.

  1. A história de mais de 25 anos do MST comprova que nossa organização se construiu combatendo todas as formas de violência, procurando conquistar vida digna para as pessoas excluídas. Só em Atalaia são mais de 500 famílias (2000 cidadãos) assentadas/os a partir da luta do nosso Movimento, com direito a escola, creche, terra pra plantar, moradia digna, cultura.

Esperamos que os órgãos competentes tomem as medidas cabíveis contra esse membro que tem demonstrado posição em desconformidade com os princípios do Ministério Público.

Seguiremos organizando famílias, no Brasil, em Alagoas e em Atalaia. Lutando para conquistar terra para quem nela quer trabalhar. Convictos que não se desiste da luta quando matam um Sem Terra.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

MANIFESTO DA IBP SOBRE AS FAMÍLIAS ATINGIDAS PELAS ENCHENTES EM ALAGOAS

Maceió, 13 de outubro de 2011

MANIFESTO DA IGREJA BATISTA DO PINHEIRO CONTRA O DESCASO PÚBLICO EM RELAÇÃO ÀS FAMÍLIAS E COMUNIDADES ATINGIDAS PELAS ENCHENTES EM ALAGOAS

“Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”
(Mateus 5,6)

Este documento é resultado das discussões empreendidas durante o fórum bienal Igreja & Sociedade, ocorrido este ano em nossa comunidade religiosa, e que teve por tema “A atuação das igrejas nas situações de calamidade pública: Alagoas em questão”.
Nós, da Igreja Batista do Pinheiro, estivemos dialogando com diversas representações da sociedade civil alagoana, acerca da terrível situação em que se encontram as famílias atingidas pelas enchentes em nosso estado nos anos de 2010 e 2011. Nossos diálogos foram fomentados por representantes das comunidades atingidas, da comunidade acadêmica universitária, da arena político-partidária, do funcionalismo público estadual, e da comunidade religiosa, todos no intuito de encontrar respostas para o flagrante descaso em que se encontram as referidas famílias alagoanas.
Neste sentido, o presente documento tem o caráter de protesto em relação às entidades responsáveis pelas políticas de intervenção nessas comunidades, e dirige-se, sobretudo, ao Governo do Estado de Alagoas e ao Ministério Público Estadual, cobrando-lhes celeridade nas ações e fiscalização mais transparente quanto aos recursos destinados pelo Governo Federal para o programa de reconstrução das comunidades atingidas. Exigimos das entidades mencionadas maior transparência possível na utilização dos recursos públicos destinados à reconstrução das comunidades atingidas, haja vista a denúncia de residentes das próprias comunidades, relativas às arbitrariedades na utilização desses recursos e na destinação das novas residências já estarem sendo uma prática presente em alguns dos municípios atingidos.
Como comunidade religiosa, e como entidade da sociedade civil preocupada com o bem-estar dos nossos irmãos e irmãs alagoanos, consideramos vexatória a participação do Governo do Estado de Alagoas, e exigimos do mesmo respostas imediatas e ações políticas rápidas e eficazes que ajudem a minorar o sofrimento das milhares de famílias que há dezesseis meses vivem em condições subumanas em acampamentos comparáveis a “campos de refugiados”. O fórum Igreja & Sociedade 2011 apenas ratificou aquilo que em visitas pessoais os líderes da Igreja Batista do Pinheiro puderam verificar in loco, e aquilo que a Rede Globo de Televisão publicizou para todo o país, coincidentemente nos mesmos dias em que realizávamos o fórum: ausência de saneamento básico, alimentação precária, disseminação de doenças infectocontagiosas (sobretudo entre as crianças), crescimento da criminalidade e prostituição infantil.
Lamentamos a ineficácia do Governo do Estado de Alagoas nas políticas intervenção nessas comunidades, ao passo em que no estado de Pernambuco a maior parte das famílias já está realocada. No entanto, nosso lamento e indignação juntam-se a um clamor por justiça em relação às milhares de famílias que ainda vivem sob essas condições. Não gostaríamos que os dezesseis meses dessa tragédia política se estendessem para os vinte e dois anos da tragédia política da comunidade de Santa Fé, em União dos Palmares.    

Pr. Wellington Santos
Prª. Odja Barros
Pr. Paulo Nascimento 

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

RESENHA DE "CONVERSAS SOBRE A FÉ E A CIÊNCIA"


FALCÃO, Waldemar (org.). Conversas sobre a fé e a ciência: Frei Betto & Marcelo Gleiser com Waldemar Falcão. Rio de Janeiro: Agir, 2011
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Os leitores da última fase de Rubem Alves sabem que uma de suas crônicas mais difundidas é aquela sobre a diferença entre o jogo de tênis e o frescobol. Enquanto no tênis o objetivo é vencer o adversário com a bolada certa, no frescobol é diferente. Quanto mais se coopera com o adversário, mais prazeroso o jogo fica. Bola pra lá, bola pra cá, e quanto mais tempo a bola ficar no ar, sinal de que ambos jogaram bem. Diferentemente do tênis onde apenas um jogador vence, no frescobol, via de regra, ambos vencem.
O próprio Alves aplicou essa ilustração a um mundo de coisas: há casamentos, por exemplo, que se parecem com um jogo de tênis, onde cada cônjuge vive da expectativa de “tirar o outro da jogada” com a “palavra certa”. E há aqueles que se parecem com um jogo de frescobol, e se sustentam, entre outras coisas, pelo fio tênue da arte de dialogar sem pretensões de derrotar o outro.
Conversas sobre a fé e a ciência nada mais é do que uma deliciosa partida de frescobol entre três amigos: Waldemar Falcão (músico, astrólogo e escritor), Frei Betto (frade dominicano, teólogo e escritor) e Marcelo Gleiser (físico teórico e escritor). As 334 páginas desta publicação registram um clima de profundo respeito, abertura, cordialidade e dialogicidade entre três figuras pertencentes a tradições culturais bastante distintas. Em um tempo em que as intolerâncias, de todos os tipos, vão ficando cada vez mais na moda, Conversas sobre a fé e a ciência acaba se tornando um testemunho fantástico da necessidade da difícil tarefa de dialogar com os diferentes.
O livro tem quatro seções: TrajetóriasCiência e FéO Poder e Até o Fim (do Mundo, do Universo), abordadas por Frei Betto e Marcelo Gleiser, e mediadas por Waldemar Falcão. Sem perder de vista as distinções e peculiaridades concernentes à atividade da Ciência e da Religião, Betto e Gleiser contestam aqueles que se pautam pela incompatibilidade entre esses saberes. Para eles, se Ciência e Religião são distintas epistemológica, metodológica e estruturalmente falando, são convergentes na tarefa de se constituírem como saberes parceiros do ser humano em face das agruras da existência. Essa convergência talvez esse seja o mote principal dessas Conversas...
Não há dúvidas de que as intolerâncias, o chamado "narcisismo de grupo" (Erich Fromm), os fundamentalismos de toda sorte se recrudescem a cada dia. Quase sempre cedemos ao equívoco de pensar que essas coisas só acontecem no campo religioso. Não é verdade! O trabalho de Richard Dawkins, por exemplo, não seria uma forma de cruzada pós-moderna de um fundamentalismo de tipo científico-darwiniano? Quem vive o cotidiano de uma universidade sabe o quanto a atividade científica também está marcada por fundamentalismos de toda sorte. Essas Conversas sobre a fé a ciência, proporcionadas por Frei Betto e Marcelo Gleiser, devem ser encaradas com um sinal de esperança numa cultura que insiste em cultivar a intolerância e o absolutismo de certos pontos de vista sobre a vida.
Necessitamos todos e todas conversar mais. Pessoas diferentes, em mesas comuns, sem a arrogância e sem a gana por derrotar o Outro. O ditado popular reza que “é conversando que a gente se entende”. Às vezes a gente se desentende também. Mas conversar abertamente, mesmo correndo-se o risco de esbarrarmos algumas vezes na diferença, é uma necessidade cada vez mais premente. Não há construção de um convívio harmonioso no mundo que não passe pela construção e aceitação da alteridade, e que não passe pelo desafio e pela arte de conversar abertamente.


Eu costumo dizer que nossa dificuldade de aceitar o diferente e de dialogar com ele, não tem muito a ver com as nossas próprias certezas. Antes, tem a ver a com o medo e a possibilidade de que as verdades do Outro esfacelem as nossas verdades sobre ele e sobre nós mesmos. Esse livro me ajudou a confirmar essa desconfiança.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A BENDITA REBELDIA DE VASTI

Olá pessoal!


Segue mais uma mensagem pregada por mim no culto dominical em nossa comunidade de fé Igreja Batista do Pinheiro. Baseado no texto de Ester 1,1-22, busquei resgatar a memória da rainha Vasti, e a partir de sua rebeldia frente ao rei Xerxes, refletir sobre o potencial positivo da rebeldia nos campos da política, do trabalho, dos relacionamentos humanos e da espiritualidade. A mensagem intitulou-se "A bendita rebeldia de Vasti", e foi pregada no dia 02/10/2011 no culto vespertino da IBP.


Para assisti-la, CLIQUE AQUI!


Abraços fraternos!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O QUE É UMA VOCAÇÃO


O que é uma vocação?
A palavra “vocação” talvez seja uma das mais presentes no mundo religioso, sobretudo no mundo cristão. Contudo, estranhamente essa palavra nunca aparece na Bíblia. Mas é certo que apesar de não ser mencionada nominalmente, em algumas narrativas bíblicas a experiência da vocação aparece inteiramente despida ao olhar atento. A narrativa do profeta Jeremias talvez seja um exemplo eloquente.
É preciso que se leia a narrativa em sua íntegra para entender os meandros da vocação de Jeremias. Não há ali nenhuma definição do que seja vocação. Em síntese, o que se pode dizer é que Jeremias se apresenta como um sujeito consumido por sua vocação de profeta, a ponto de suportar as agruras da oposição, da incompreensão de seus pares, e da perseguição das instituições oficiais frente à sua mensagem subversiva. Em Jeremias, a vocação não liquidou as ambiguidades da fraqueza humana. Pelo contrário. Foi enquanto sujeito vocacionado a ser profeta que Jeremias lamentou e quis voltar atrás. Mas foi enquanto sujeito vocacionado a ser profeta que ele encontrou a força suficiente para suportar todo sofrimento.
Lutero, num lampejo teológico, quis equiparar os “trabalhos mundanos” com a vocação religiosa. Na sua tradução do Novo Testamento para o alemão, ele usou a mesma palavra para “trabalho” e para “chamado”: beruf. Com esse recurso de filologia, Lutero queria dar a entender aos leitores da Bíblia de língua alemã que os trabalhos ditos “mundanos” e a vocação religiosa tinham o mesmo status, de tal modo que Deus poderia e deveria ser glorificado no meio das ocupações mundanas. O nosso protestantismo esqueceu-se disso, de tal modo que somente pastores e missionários são “vocacionados” na comunidade eclesial.
Apenas uma ressalva quanto a isto. Há vocações que nunca foram vividas como trabalho. Na verdade, nunca são. E há trabalhos que nunca foram vivenciados como vocação. Na verdade, nunca podem ser.
Toda vocação é um fogo que arde sem cessar em nosso peito. Não há vocação sem uma intensa sensação de que o amor nos invadiu. O amor, como dizia Camões, “é um fogo que arde sem se ver; (...) é estar-se preso por vontade”. É por isso que sofrimentos, decepções, angústias, temores, não podem matar a vocação. E por paradoxal que pareça, não há experiência vocacional sem a vivência desses dissabores com alguma intensidade.
Toda vocação enche a nossa vida de significado. A vocação pinta de colorido a existência cinza, e enche de significado cada dia de nossas vidas. É a vocação que nos informa de nosso exato lugar no mundo, e nos eleva à condição de seres com uma alta significância em um “universo frio e sem sentido”, no dizer de Rubem Alves. Por isso o seguimento da vocação é um ato de resistência contra todo niilismo.
Toda vocação implica em relações de profunda gratuidade. Pode-se até viver da vocação e para a vocação. Mas pode-se também viver apenas para a vocação, sem que necessariamente se viva da vocação. A interrupção da possibilidade de se viver da vocação nunca significa uma ameaça a ela. O que se colhe, verdadeiramente, como lucro da vocação não pode ser medido. É da ordem realização do Ser. E ainda que não se lucre nada de mensurável, a vocação perseguirá seu lucro imensurável até o último dia de nossas vidas. Vocação e gratuidade são irmãs siamesas.
A vocação, em sua radicalidade existencial, nos expõe diante dos valores e ideais mais preciosos que temos na vida. Morreríamos se privados fôssemos de exercê-la. Tudo voltaria a ser cinza. Um frio abaixo de zero petrificaria nosso coração. Nossos ossos secariam, e nosso espírito definharia. Tudo acabaria.
Toda vocação exige a companhia da coragem. Isso porque muitas vezes, em sua latência indomável, ela nos toma pela mão e nos chama a caminhar por estradas socialmente reprováveis, às vezes lisas e às vezes ásperas, às vezes doces e às vezes amargas, às confortáveis e às vezes pedregosas.
Como saber de minha vocação?
Escute os outros. Toda vocação é aromática. Seu aroma alcança aqueles que nos rodeiam, e denuncia aquilo que será nosso destino. Desatentos como somos, preocupados com mil coisas na vida, o aroma da vocação fica sem ser sentido por nós. Mas nunca por aqueles com quem convivemos. Paulo havia usado a metáfora do aroma para falar da presença de Cristo em nós. É impossível que os outros não o sintam em nós, se ele está em nós. É impossível que os outros não sintam o aroma daquilo que constitui nosso chamado na vida, nossa paixão mais profunda, nossa vocação.
Escute a si mesmo. Volte a si mesmo recorrentemente, em silêncio profundo, e escute a voz do seu próprio coração. É aí o altar preferido no qual Deus nos fala. Certa vez, um jovem quis saber de Rilke sobre como poderia ter certeza de que era vocacionado à literatura. E Rilke lhe empurrou para o abismo profundo do seu próprio coração. Lá, onde o ser se defronta consigo mesmo, e apenas consigo. Inquira a si mesmo nesse lugar secreto. Pergunte-se o que lhe seria sem o caminho de sua vocação.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

“QUE A VOZ DO TEU SANGUE NOS DIGA ALGUMA COISA”

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No último dia 03 de setembro o estado de Alagoas viu ressurgir algo que havíamos pensado estar fora de moda: o crime de mando. Tombou, sob o impacto de doze covardes tiros, o médico e professor Luiz Ferreira, que também atuava na vida pública como vereador no município de Anadia. Virtual candidato à prefeitura daquela cidade, Luiz Ferreira foi vítima de uma emboscada logo após deixar um programa de rádio, onde anunciara sua virtual candidatura. Aos sessenta e um anos de idade, com um amplo currículo de serviço à sociedade alagoana nos campos da saúde, da educação e da política, Luiz Ferreira pagou com o próprio sangue o preço de assumir a postura político-ideológica que quis, e de colocar-se a serviço dos pequenos.


Infelizmente, a história recente de Alagoas tem sido constantemente manchada com o sangue de gente inconformada com os feudos políticos e com os currais eleitorais ainda muito vigentes por aqui. É muito grande a lista de pessoas que, seja no enfrentamento político, seja nos enfrentamentos dos movimentos sociais (principalmente na luta pela terra), foram vítimas dos caciques que não suportam sequer a idéia de terem seu poder questionado.
Estranhamente, não há a presença de padres, bispos, pastores e apóstolos nesta lista de mártires.
Digo “estranhamente” porque a Bíblia, livro-guia da fé cristã e chamado por padres, bispos, pastores e apóstolos de “regra de fé e prática”, está cheia de exemplos de pessoas que tais como Luiz Ferreira, pagaram com suas próprias vidas o preço do serviço aos mais humildes e do enfrentamento dos poderosos. Nós protestantes, por exemplo, professamos o sola scriptura, isto é, professamos que apenas as Escrituras Sagradas devem ser o referencial de nossa fé. Mas não são justamente as Escrituras Sagradas que chamam de “bem-aventurados” aqueles que são perseguidos e mortos por causa da justiça? (Mt 5,10-12)
Os profetas do Antigo Testamento, em sua maioria, viram-se perseguidos por questionarem a manipulação religiosa, as falsas consolações populares, o monopólio do poder e a opressão que se impunha ao povo mais pobre. Elias foi perseguido por se opor à idolatria e aos desmandos reais de Acabe e Jezabel. Isaías, conforme certa tradição religiosa, foi perseguido e cerrado ao meio por conta de sua mensagem de denúncia à opressão política e religiosa. Jeremias foi perseguido por Zedequias por conta de sua denúncia das falsas consolações populares em relação à invasão babilônica. Conforme a tradição mais crida entre os cristãos, todos os apóstolos de Jesus Cristo foram perseguidos e mortos em função do conteúdo subversivo de sua mensagem. Apenas João teria tido morte natural. O próprio Jesus de Nazaré teve na cruz a resposta do Império Romano à sua práxis subversiva, considerada perigosa à estabilidade imperial nas províncias da Galileia e da Judéia. A mensagem do “sacrifício vicário e salvífico” veio depois, como produto da fé dos primeiros cristãos.
Embora se dê muita ênfase aos aspectos sombrios e nefastos da Igreja Cristã na História – como as cruzadas, as caças às bruxas, as guerras religiosas européias, a perseguição aos livres pensadores, a intolerância frente a outras religiões, etc. –, não se pode esquecer que o Cristianismo tem legado ao mundo também uma rica lista de homens e mulheres que foram mártires em defesa da vida.
Dietrich Bonhoeffer (†1945), pastor protestante alemão, foi perseguido e morto pelo nazismo por conta de sua oposição a Hitler. Martin Luther King Jr. (†1968), pastor batista norte-americano, foi assassinado por conta de sua luta em prol dos direitos civis nos Estados Unidos. Dom Oscar Romero (†1980), arcebispo católico, foi assassinado em El Salvador por conta de sua defesa dos pobres e do seu enfrentamento dos poderosos. Ignácio Martin-Baró (†1989), padre católico e psicólogo social, e Ignácio Ellacuria (†1989), padre católico e teólogo da libertação, foram brutalmente assassinados com mais quatro companheiros da Universidade San José em El Salvador, por representarem ameaçadas às oligarquias que historicamente mantinham-se no poder. Dorothy Stang (†2005), missionária católica na Amazônia, foi brutalmente assassinada por conta de sua defesa dos direitos da floresta e daqueles que dela viviam e estavam sendo alijados desse direito. Esta é uma lista muito grande. Estes são apenas os nomes mais conhecidos.
Alagoas também tem sido uma terra de mártires. Mas, quem são eles? Este estado, historicamente caracterizado pela imposição voraz das oligarquias da terra, pela centralização das atividades econômicas na nefasta monocultura da cana, e pela idolatria do poder político caracterizada pelos feudos familiares, tem tido seu chão manchado pelo sangue de muita gente que ousou sonhar com uma Alagoas diferente. Mas, quem são essas pessoas? Repito: estranhamente não há a presença de padres, bispos, pastores e apóstolos nesta lista. Portanto, é inevitável perguntar: quem são os verdadeiros profetas nesta terra? É com vergonha e pesar que respondo olhando para mim mesmo: não somos nós, os religiosos.
Nós, padres, bispos, pastores e apóstolos não somos os profetas que têm manchado o chão de Alagoas com o sangue que rega a luta pela justiça. No lugar do enfrentamento, preferimos o conforto. No lugar de uma sociedade mais justa e inclusiva, preferimos o céu e suas delícias. No lugar da denúncia, preferimos o silêncio, quando não a camaradagem e o favor de certos déspotas alagoanos. Denunciamos os “perigos do mundo”, sem notar que nossa vidinha mesquinha e aquietada por nossos gordos salários, é tudo que “o mundo” espera de nós. Somos leões da moralidade, gigantes na defesa da família, vigilantes intermitentes dos perigos do sexo, ao mesmo tempo em que somos gatinhos manhosos frente à opressão política, anões frente à imposição das oligarquias econômicas, e completamente cegos para a dor da maioria do povo de Alagoas. Definitivamente, nós nunca fomos profetas de nada!  
A voz do sangue de Luiz Ferreira clama por toda terra de Alagoas até os céus (Gn 4,10). O sangue deste mais novo mártir alagoano clama, em primeiro lugar, para que a justiça seja feita em relação aos seus algozes materiais e intelectuais. Em segundo lugar, a voz do sangue de Luiz Ferreira clama a toda sociedade alagoana, como uma trombeta tocando no alvorecer do dia, convidando-nos todos a acordar do sonho de paz e segurança. Em terceiro lugar, a voz de seu sangue clama nos recordando de que os poderes da morte estão muito vivos, e não querem conceder espaço para coisas diferentes, para uma sociedade mais igualitária, mais inclusiva e mais participativa. Em quarto lugar, a voz do sangue de Luiz Ferreira clama a nós, padres, bispos, pastores e apóstolos, para que saiamos de nosso mundo imaginário e sublimatório de paz e segurança. Ela clama nos convidando a despedaçar o cálice de ópio que nos embriaga há tanto tempo.