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quinta-feira, 27 de março de 2014
sexta-feira, 14 de março de 2014
ANJOS, DEMÔNIOS E PSICÓLOGOS
— “Há algum fundo espiritual nos chamados ‘problemas psicológicos’?”, me perguntou um aluno, ao término da defesa de mestrado da minha amiga Camila Teixeira.
— “A que você se refere?”, eu retruquei.
— “A essas coisas, tipo depressão, esquizofrenia, etc. Você acha que há algum fundo espiritual nisso tudo?”, ele completou.
Me acostumei a ouvir esse tipo de pergunta desde o início da graduação em Psicologia. Elas iam ficando mais frequentes, na medida em que meus colegas iam descobrindo que além de postulante a psicólogo, eu também era pastor e teólogo. Quase óbvio, por assim dizer! Agora como professor, elas continuam a aparecer, vindas de alunos que se dão conta de minhas atividades fora da universidade – embora eu não esteja atuando como pastor no momento.
O perfil desse pessoal é sempre o mesmo: jovens crentes chocados com um novo universo simbólico, onde a ciência dita a “ordem do discurso”. Jovens crentes assustados frente a professores e professoras arrogantes. Tenho identificado duas posturas preponderantes que resultam desse conflito: ou uma nova conversão à mentalidade científica, e o abandono do legado da experiência religiosa, ou a reclusão e o fortalecimento de posturas religiosas reacionárias, como fuga e compensação para os “absurdos” da mentalidade ilustrada.
— “Vamos ter essa conversa. Não agora, pois não é possível. Mas teremos essa conversa”, eu o prometi.
Mas a pergunta do rapaz, penso eu, é menos simples do que poderíamos supor. É o tipo de dúvida honesta, para quem baliza sua vida por convicções religiosas. É muito comum, sobretudo nas igrejas cristãs, que as pessoas sejam ensinadas a adotar a visão de mundo do Novo Testamento. Algumas até do Antigo Testamento, embora isso exija uma desonestidade intelectual enorme! Quem primeiro apontou para isso como um problema foi Rudolf Bultmann.
Para Bultmann, que era estudioso do Novo Testamento, adotar a fé cristã não deveria implicar na adoção da visão de mundo do Novo Testamento. Segundo esse exegeta, o Novo Testamento era portador de um kerygma, que em grego quer dizer “mensagem”. E essa “mensagem” a ser apreendida consistia fundamentalmente num chamado à conversão do indivíduo, ou seja, consistia num apelo à subjetividade. Nada mais! Em resumo, a visão de mundo presente no Novo Testamento, marcada pela mentalidade mítica e pré-científica deveria ser peneirada. No interior de cada narrativa mítica, o crente deveria encontrar a “mensagem”, sempre dirigida ao coração e à subjetividade.
Bem, o que sabemos é que para a maioria das pessoas que creem hoje, as coisas não são assim. Além da adesão à “mensagem”, a maior parte das pessoas que creem hoje acaba adotando também a visão de mundo do Novo Testamento. Na verdade, para a maioria dessas pessoas não há qualquer separação entre uma coisa e a outra. O mundo habitado por humanos, anjos e demônios do Novo Testamento continua vigente. E é isto que fundamenta a ideia de um “fundo espiritual” para problemas psicológicos. Afinal, a crença central aí consiste na certeza não apenas da existência de entes supranaturais, mas principalmente na capacidade e na regularidade interventora desses entes na presente ordem de coisas.
O Novo Testamento, e sobretudo os Evangelhos, são prolixos em narrativas de possessão por demônios, cuja fenomenologia estaria muito próxima de sintomatologias próprias de certos transtornos mentais. Uma conclusão apressada, mas muito corriqueira, consiste em dizer que essa maneira de encarar as coisas tais como temos no Novo Testamento – isto é, atribuir a origem de enfermidades físicas e mentais à influência de entes supranaturais – era própria de uma mentalidade mítica, e deveria ser superada pelas descobertas de uma mentalidade científica. A mentalidade científica, por se referir à etiologia orgânica (portanto “natural”) desses fenômenos, seria desmistificadora. Não foi a toa que Bultmann deu o título de Demitologização a um de seus ensaios mais famosos.
Dessa perspectiva, a resposta ao meu aluno estaria pronta:
— “Não, não há nenhum ‘fundo espiritual’ nos problemas psicológicos atuais, visto que nossas disciplinas científicas demonstraram o caráter orgânico e natural de sua etiologia”.
Não há problema algum na assunção de tal postura. No entanto, ao assumi-la, precisamos reconhecer que nos inscrevemos num certo de regime de discursividade onde a ciência possui o status de saber régio. E inscrever-se num certo regime de discursividade, e não em outro, tem implicações importantes no que tange a questões bem práticas de nossa vida. Por exemplo, assumir o regime de discursividade do Novo Testamento relativo às questões de saúde mental dificilmente me proporcionaria o ingresso como docente em um curso universitário de Psicologia. A Universidade, enquanto instituição social, funciona a partir de uma ordem do discurso muito precisa. A ciência, neste caso, constitui-se como regime discursivo no qual é preciso transitar. E isso, do ponto de vista da organização social, é bastante idiossincrático no Ocidente.
Mas além dessas questões, que são da ordem da relação entre saber e poder, nosso problema também se filia a dificuldades de ordem epistemológica. Será que realmente “nossas disciplinas científicas demonstraram o caráter orgânico e natural da etiologia dos transtornos mentais”? Como diria o filósofo norte-americano Richard Rorty, as palavras da ciência são de fato um “espelho da natureza”? Ou, como diria o filósofo francês Michel Foucault, as palavras – todas elas – não seriam uma “forma de violência que fazemos às coisas”?
Bom, não resta dúvida que as explicações científicas, em todos os campos, e também no campo dos fenômenos ligados à saúde mental, gozam de um status privilegiado em nosso tempo. Mas se filiarmos epistemologia e política, como fizemos ligeiramente acima, teremos que admitir que as explicações científicas, muito mais do que serem um reflexo objetivo da realidade, são formas discursivas que produzem mundos. O caso dos fenômenos ligados à saúde mental é farto de exemplos. A própria noção de “loucura” seria um deles. Muito recentemente na história do Ocidente a loucura tornou-se uma “patologia mental”. Atualmente, fala-se cientificamente da loucura com categorias diferentes das presentes na psicopatologia.
Portanto, eu diria ao meu caro aluno:
— “O problema não diz respeito apenas às diferentes possibilidades de dar sentido a um fato. As diferentes possibilidades de dar sentido a um fato estão ligadas a diferentes regimes de discursividade. E cada regime de discursividade se relaciona de modo diferente com cada contexto histórico e social. O lugar que ocupamos aí tem implicações práticas e imediatas na nossa vida. O regime discursivo dos psicólogos e psicólogas acerca do tema tem nuances e efeitos concretos diferentes daquele dos sacerdotes. E esse é um cálculo que cada um precisa fazer por si mesmo. Mas eu concordo que na atualidade, anjos e demônios ajudem a angariar fama e dinheiro, talvez muito mais que teorias científicas”.
terça-feira, 4 de março de 2014
NA EPIDERME DO COTIDIANO
Encontros e desencontros. A vida da gente bem que
poderia ser resumida assim. Completamente sem querer eu encontrei Antonio
Marcos – que é um pseudônimo – guardando carros à noite, num estacionamento da
orla de Jatiúca. Antonio Marcos tem 34 anos de idade, é do interior de Alagoas,
mas vive sozinho, segundo ele, em um barraco na favela do Brejal, aqui em
Maceió. É solteiro, mas vive um romance de quase dez anos com uma mulher dez
anos mais velha. É que segundo Antonio Marcos, “menina nova não sabe de nada!”.
Voz mansa e bem articulada, Antonio Marcos me disse
que não gosta de drogas, mas curte uma cachacinha de tempos em tempos. Ninguém é
de ferro! É que é preciso trabalhar pra dar conta da vida. E Antonio Marcos
vende cerveja na praia. Mas para tanto, ele primeiro cata as latinhas usadas
deixadas no chão e as vende. Um quilograma, segundo me contou, custa em média
R$ 2,50, ou na melhor das hipóteses R$ 3,00. Com o dinheiro, compra cerveja em
lata e as vende em dia de sol. Depois cata as latas de novo... E assim a vida
vai caminhando, não em círculos, mas sempre pra frente.
Eu encontrei Antonio Marcos sentado em seu carro de
mão, feito de madeira e pneus de verdade, usados. Na verdade, não era dele
propriamente. Ele havia tomado emprestado de um amigo. Antonio marcos me dizia
que bom pra guardar carros mesmo é durante o dia. E me explicou. No carro havia
várias folhas de papelão, que eu julguei que também tivessem sido catadas para
a venda. Nada disso. As folhas de papelão cobrem os parabrisas dos carros, pra
diminuir o calor dos motoristas. Com o papelão, me dizia Antonio Marcos, o
trocadinho é garantido. Mas a noite, sem calor e sem papelão, me confessava ele,
poucos querem deixar o trocadinho.
Antonio Marcos precisava de R$ 100,00 pra terminar
seu barraco no Brejal. Foi por isso que ele decidiu esticar o expediente até a
noite. De fato, eu não sei ao certo a distância que separa o Brejal da Jatiúca.
Mas suponho, bem por baixo, que devam ser uns 10 km. É esse o seu percurso,
empurrando o carro de mão emprestado do amigo, catando as latinhas de cerveja do
caminho, para guardar carros à noite, à espera de trocados possíveis, mas não
certos. E sem “moral da história”. Porque o que a vida tem a ensinar está na
superfície dos fatos, na epiderme do cotidiano, e não oculto nas profundezas de
nossas quase sempre hipócritas “morais da história”.
terça-feira, 16 de abril de 2013
O QUE É A “FAMÍLIA BRASILEIRA”?
Não, não sou contrário à família, aos bons costumes, à moral, a Deus, à igreja, a nada disso! Não sou um relativista radical, um crítico inveterado da religião, muito menos um polemista. Nada disso. Mas não me furto ao pensamento. Não tenho medo da dúvida. E adoro perguntar! Então, se alguém puder, me responda, por favor:
O que é esse ente que todas as pessoas de igreja resolveram chamar de “a família brasileira”? O que é “a família brasileira”?
Me parece que “família” é algo que nunca é, mas sempre está sendo. Nesse sentido, são dispensáveis todos os estudos acadêmicos da antropologia e da história social dos povos, uma vez que a própria Bíblia, enquanto narrativa-recorte da história de um povo e sua fé, denuncia esse fato. O numeroso clã de Abrão e Sarah, errante pelo deserto e arrastado pela convicção de uma voz divina, era uma família. E a naturalidade com que a própria Sarah aceita a barriga de aluguel de Agar é indicativo de como as coisas funcionavam naquele arranjo familiar. Do mesmo modo como o era o clã de Josué, que decidiu deixar para trás a fé aprendida no Egito para abraçar a nova fé em Javé.
Mas também a bigamia de Elcana, certamente farta dos prazeres gozados com Ana e Penina, era uma família. E Deus nunca se zangou de nada! Muito menos com as poligamias de David e Salomão. Mas Ana nunca esteve satisfeita com a perversidade de Penina, porque perversidade não combina com relações familiares! A Lei do Levirato, uma peça rara da engenhosidade cultural daqueles dias, servia de modo eficaz ao modelo de família vigente. E consagrava também o papel superior dos machos por perpetuar sua memória, além de glorificar a Deus com a afirmação do papel reprodutor das mulheres. Valores sagrados, que certamente aquelas famílias consideravam atemporais, e por isso, intocáveis. Nossas famílias nucleares lhes seriam um insulto e uma blasfêmia, porque, para dizer como os gregos antigos, os valores divinos são imóveis... Mas eu juro que um dia me dedico a investigar acerca de quem inventou o Levirato.
O Novo Testamento é produzido também em um contexto em que as famílias estão sempre sendo... O próprio Levirato ainda era vigente entre os judeus. Os clãs não haviam morrido. E o papel das mulheres pouco havia mudado. Alguns escritos atribuídos a Paulo chegam a tomar a família Greco-romana como um modelo de gerência eclesiástica: o dominus é o cabeça da casa. Abaixo dele as relações são de submissão. Pregadores e exegetas tentam dar um jeito nisso. Mas não é possível! Esses hagiógrafos (os escritores sagrados) sabiam o que estavam fazendo. E certamente estão respondendo a mulheres insubmissas, que encontravam na comunidade de fé um espaço para sua voz e para a sua vez, dois milênios antes do feminismo! Mas elas não venceram. O modelo de família Greco-romana, assumido como modelo de administração eclesiástica, fez dos pastores, bispos, padres e demais eclesiásticos, os verdadeiros cabeças da Igreja. O Vento, contudo, sopra onde quer...
Esse é um resumo mal feito. Tosco, se preferir. Mas o que ele quer dizer é o seguinte: o mundo pré-moderno não conheceu a família nuclear-patriarcal que vigora em nossos dias!
A família nuclear-patriarcal -- painho, mainha e sua prole -- é uma invenção muito recente do ponto de vista do processo histórico. Seu processo de formação envolve elementos variados, que vão desde as mudanças nas estruturas de produção econômicas fundadas pelo Capitalismo ocidental, à invenção do “amor romântico”, até seu vaticínio pelo Estado moderno, como um dispositivo estratégico para o governo político da vida das populações. Bom, esse papo é um pouco chato, e eu resisto a ficar citando livros e autores que só o povo da academia tem estômago para ler. Por hoje, não!
Não duvido que a benção de Deus, que o amor mútuo, que isso e que aquilo mais estejam presentes nas famílias nucleares que se formam hoje. Deus me livre de julgar alguém! Mas é preciso tranquilidade e lucidez para admitir que a formação do modelo de família nuclear-patriarcal tem muito mais a ver com razões bem mundanas, bem profanas, bem históricas, se a gente preferir. E que Deus abençoe a todos nós, que vivemos sob a égide desse modelo que nos foi imposto por nossa cultura, e não por Ele. E que ele mesmo nos ajude a reconstruir esse modelo, especialmente enquanto um espaço de relações de poder e de papéis sociais consagrados. Sim! Não aposto no fim do modelo de família nuclear. Mas acho que ele precisa ser reconstruído. As mulheres, sobretudo, dizem isso, porque são elas que habitam o polo mais problemático desse modelo. Que Deus nos ajude nessa tarefa. Dizem que o Deus da Bíblia se revela na História...
Diante disso, penso que deveríamos parar com essa retórica de “defesa da família brasileira”. Porque dito de um modo direto: esse ente não existe! No mínimo, se formos honestos, vamos admitir que esse ente não passa de uma retórica, de um discurso, de um objeto construído pela linguagem, para não reconhecer o devir da história e a autonomia humana, que se põe a reinventar, como sempre o fez, a ideia de “família”.
Sim, a família nuclear-patriarcal foi o modelo vigente no Brasil a partir dos idos da Modernidade. O fim do sistema escravocrata e a introdução do Brasil no circuito do Capitalismo mundial ajudaram a consolidar esse modelo entre nós. E foi assim em todo Ocidente também! Contudo, o Censo do IBGE realizado em 2010 aponta para profundas transformações nesse modelo, que embora ainda se constitua como maioria, não goza mais de uma posição de hegemonia. E é bom que se diga que isso tem pouco a ver com gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e heterossexuais. Essas mudanças todas têm a ver com os fluxos complexos da História, alimentados por fatores múltiplos, diversos, simultâneos e irrefreáveis. Acima de tudo, é a autonomia humana que está em jogo. E já chegou a hora do “povo de Deus” aprender a lidar com isso!
Portanto, precisamos saber que quando falamos em “família brasileira”, estamos cometendo o equívoco de empacotar todos os arranjos familiares, tradicionais e emergentes, numa categoria que só poderia ser aplicada ao povo das igrejas. A “família brasileira”, esse ente imaginário e puramente retórico, é muito mais heterogêneo e diverso do que nossa linguagem quer admitir, não cabendo nos limites do modelo nuclear-patriarcal, consagrado historicamente pelo discurso das igrejas cristãs.
É preciso saber também, que quando nos filiamos à retórica da “defesa da família brasileira”, estamos participando de um jogo de forças, em que assumimos como estratégia a invisibilização pelo não-reconhecimento do Outro, de sua autonomia, e de seu direito de ser. Se a “família brasileira” coincide com o modelo nuclear-patriarcal, o que são os demais modelos emergentes de organização familiar? Eles simplesmente “não são”? O que significa um apagamento desses? Não há violência nesse não-reconhecimento ou nesse confinamento do outro ao não-ser? Sim, há muita violência nisso tudo!
Por isso penso que é preciso amar as famílias, velhas e novas, como se não houvesse amanhã. Porque se você parar pra pensar...
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
BREVÍSSIMA HISTÓRIA DE UMA NEUROSE
Essa é rapidex!
É simples. O atual movimento evangélico brasileiro reproduz fielmente as neuroses pertencentes às suas matrizes norte-americanas. De que neurose se trata, neste caso? Daquela na qual não se pode viver sem "inimigos públicos", cujo confronto ajuda a reforçar nossa identidade adoecida [vide a própria política internacional dos EUA na segunda metade século 20: Vietnam, Cuba, União Soviética, América Latina, Oriente Médio].
O protestantismo de missão, vindo dos EUA, e que aqui chegou a partir da segunda metade do século 19, já trouxe na bagagem seu inimigo público: o Catolicismo, visto como responsável pelo atraso e pela minoridade da cultura brasileira. Os pentecostais, ainda cheirando a leite, foram nessa onda, embora sempre rivalizassem com os próprios protestantes históricos também. E por todo século 20, praticamente, nesses meios a Igreja Católica foi eleita como contra-identidade.
Já os neopentecostais, visceralmente ligados também a matrizes norte-americanas, decidiram dar continuidade à neurose por outro caminho. E elegeram, por muito tempo, as religiões de matriz africana como seu "inimigo público". Inimizade safada, com certeza, já que nesse pega-pá-capá muitos elementos dos cultos afroameríndios foram assimilados pelos "irmãos". E até hoje isso continua em voga. Mas a bola da vez mudou.
E estranhamente, o "inimigo público" atual teve a capacidade inédita de suscitar o horror de todo mundo: de protestantes e pentecostais históricos e de neopentecostais também. E mais: também de forma inédita, o "inimigo público" da vez é externo ao Grande Arraial Religioso. Tô falando desse pessoal da sexualidade diferente, tirada do armário recentemente. E a neurose continua, pois sem inimigos públicos pra fazer guerra "nóis num vévi" !!! E se vivermos mais uns anos, ainda vamos ver esse "inimigo público" com cara nova.
Quem será? Não faço ideia. Viva e verá !!!
É simples. O atual movimento evangélico brasileiro reproduz fielmente as neuroses pertencentes às suas matrizes norte-americanas. De que neurose se trata, neste caso? Daquela na qual não se pode viver sem "inimigos públicos", cujo confronto ajuda a reforçar nossa identidade adoecida [vide a própria política internacional dos EUA na segunda metade século 20: Vietnam, Cuba, União Soviética, América Latina, Oriente Médio].
O protestantismo de missão, vindo dos EUA, e que aqui chegou a partir da segunda metade do século 19, já trouxe na bagagem seu inimigo público: o Catolicismo, visto como responsável pelo atraso e pela minoridade da cultura brasileira. Os pentecostais, ainda cheirando a leite, foram nessa onda, embora sempre rivalizassem com os próprios protestantes históricos também. E por todo século 20, praticamente, nesses meios a Igreja Católica foi eleita como contra-identidade.
Já os neopentecostais, visceralmente ligados também a matrizes norte-americanas, decidiram dar continuidade à neurose por outro caminho. E elegeram, por muito tempo, as religiões de matriz africana como seu "inimigo público". Inimizade safada, com certeza, já que nesse pega-pá-capá muitos elementos dos cultos afroameríndios foram assimilados pelos "irmãos". E até hoje isso continua em voga. Mas a bola da vez mudou.
E estranhamente, o "inimigo público" atual teve a capacidade inédita de suscitar o horror de todo mundo: de protestantes e pentecostais históricos e de neopentecostais também. E mais: também de forma inédita, o "inimigo público" da vez é externo ao Grande Arraial Religioso. Tô falando desse pessoal da sexualidade diferente, tirada do armário recentemente. E a neurose continua, pois sem inimigos públicos pra fazer guerra "nóis num vévi" !!! E se vivermos mais uns anos, ainda vamos ver esse "inimigo público" com cara nova.
Quem será? Não faço ideia. Viva e verá !!!
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
POR UMA HERMENÊUTICA BÍBLICA DA SUBVERSÃO
Considero muito oportuno o que nos propõem os editores da revista e editora Novos Diálogos, quando nos convidam a pensar conjuntamente a nossa fé a partir do espírito da Quaresma. Três coisas muito boas temos aí: 1) o convite a continuarmos pensando a nossa fé, com seriedade, humildade e amor, para a edificação de todo povo de Deus e para promoção da vida; 2) o convite para pensarmos a fé coletivamente, pois ninguém sozinho é capaz de dar conta de toda a demanda reflexiva desse tempo no campo da espiritualidade cristã. Creio que essas reflexões devem ser entendidas como um convite ao pensamento para todos e todas que compõem a comunidade cristã, já que pensar a fé não é privilégio de especialistas; 3) o convite para fazermos isso tudo a partir do sentimento da Quaresma, negligenciada por nós, evangélicos e protestantes brasileiros, mas presente nas mais antigas tradições cristãs como um tempo de contrição e de preparação para a Semana Santa.
Muito mais do que oferecer-lhes um pensamento pronto, o que eu desejo fazer nessas breves linhas é partilhar interrogações, e convidar a você, leitor e leitora, a pensarmos juntos. Como você verá a seguir, escolhi o tema das relações entre as igrejas evangélicas e a Bíblia. Acredito ter feito isto por razões muito óbvias.
A primeira delas diz respeito à centralidade que se busca dar à Bíblia enquanto texto fundamental, com autoridade exclusiva na vida de nossas comunidades e de nossas tradições religiosas. A despeito das enormes diferenças ideológicas que nos distinguem, somos todos parte dessa grande “religião do livro”, na qual se tornou o Cristianismo ocidental. E enquanto herdeiros diretos e indiretos das reformas religiosas do século 16 na Europa, a luta pela preservação do sola scriptura tem sido uma das marcas distintivas dessa espiritualidade que nos caracteriza enquanto evangélicos e protestantes no Brasil. Prova disto é que o protestantismo, como nenhuma das demais religiões do livro, tem contribuído nos últimos anos para uma difusão massiva da Bíblia em grande parte das culturas do mundo. Tudo isto sinaliza para a centralidade conferida ao texto bíblico na autocompreensão que evangélicos e protestantes têm de si, como povos da fé bíblica.
Contudo, não é apenas essa centralidade conferida à Bíblia entre os evangélicos e protestantes que me instiga. Além disto, são seus usos, suas leituras e interpretações, que considero serem muito peculiares no contexto das demais grandes igrejas que formam o cristianismo ocidental. Instiga-me o fato da Bíblia servir aos mais diferentes tipos de propósitos entre nós, desde o fomento à fragmentação grupal que nos marca, até a estigmatização de grupos sociais cujo estilo de vida difere daquele preconizado pelos evangélicos. Confesso a minha insistente sensação de que as formas com as quais nos relacionamos com a Bíblia, via de regra, estão muito distantes da maneira como o próprio Jesus de Nazaré leu e interpretou sua Escritura Sagrada.
Assim, neste ensaio parto de um pressuposto, que é ao mesmo tempo uma interrogação para pensarmos juntos. Considero que a centralidade conferida à Bíblia entre evangélicos e protestantes brasileiros tornou-se tão autoevidente e tão naturalizada, que nos impede de questionarmos a nossa própria relação com esse texto religioso e com a vida de um modo geral. Creio ser unânime a ideia de que a autocompreensão de nossas comunidades está imbuída do sentimento de que pertencemos, de forma quase exclusiva, ao povo da fé bíblica. Para ficarmos com apenas o exemplo de um teólogo famoso, o suíço Karl Barth afirmaria que as reformas religiosas do século 16 na Europa se constituíram como recuperações e continuações históricas da fé experimentada por Israel, testemunhada nos textos bíblicos.
É justamente os efeitos dessa autocompreensão e da suposta autoevidência desta “fé bíblica” que gostaríamos de interrogar a partir de agora. São esses efeitos que, a nosso ver, nos impedem de problematizar a relação que estabelecemos com a própria Bíblia, e consequentemente com a vida.
Eu nos questionaria: por que nossa relação com a Bíblia não tem a mesma liberdade que Jesus de Nazaré tinha diante dos textos sagrados de sua religião?[1] Evidencia-se muito a atitude subversiva de Jesus frente as autoridades político-religiosas de seu tempo, e mesmo o seu enfrentamento (quer velado quer explícito) ao imperialismo romano. No entanto, pouco falamos da liberdade subversiva de Jesus de Nazaré frente à Lei, e o modo de relação dele com os textos sagrados. Quase nunca notamos que a novidade da pregação e da atividade de Jesus de Nazaré tem como pano-de-fundo uma profunda releitura dos textos fundamentais de sua tradição religiosa, feita com muita liberdade e tendo na defesa da vida mais frágil uma espécie de “princípio hermenêutico”.
Jesus subverte aquele tipo de leitura que se relaciona com as Escrituras Sagradas a partir de um modelo jurídico, circunscrito ao esquema mandamento-observância, em que as demandas da vida devem se submeter às exigências da lei. Antes da observação irrestrita e inflexível da lei grafada com tinta, Jesus sempre privilegiou a restauração das forças da vida, feita à base da fé, do acolhimento e do amor manifestado em gestos muito concretos. A letra da lei só faz sentido na medida em que contribui para que a “lei do amor” restaure as relações humanas. Em sua liberdade de intérprete das Escrituras Sagradas, a preservação da vida é que tem proeminência, e a palavra sagrada só faz sentido se se prestar a protegê-la e afirma-la. É a santidade da vida que faz luzir a sacralidade da Escritura.
Como lemos e interpretamos hoje a nossa Bíblia? Que relações estabelecemos entre a Bíblia e a vida? Que nível de liberdade temos ao ler e interpretar a nossa Bíblia hoje? O quanto ainda estamos identificados com uma leitura feita no modelo jurídico do mandamento-observância? Como esse modelo arcaico, subvertido pela forma com que Jesus de Nazaré lia a sua Escritura Sagrada, molda ainda hoje o nosso sentido de missão na sociedade? Quem tem proeminência na leitura que fazemos de nossa Bíblia hoje: a preservação da vida frágil, ou a aplicação insensível da letra à vida?
É preciso observamos ainda que aquele modelo arcaico de interpretação das Escrituras Sagradas, subvertido por Jesus de Nazaré, e fundado sob o esquemamandamento-observância, foi bastante lucrativo do ponto de vista do exercício do poder. O sistema de opressão simbolizado pelo Templo de Jerusalém, enquanto exercício do poder das elites religiosas sobre os mais fragilizados, só podia manter-se mediante uma concepção jurídica das Escrituras. Havia a própria Escritura Sagrada, concebida como lei inflexível a ser aplicada literalmente à vida. Havia uma elite privilegiada daqueles que mantinham o monopólio da interpretação correta. E havia grupos sociais fragilizados, a quem só restava os altos custos da submissão, quase sempre traduzidos em altos custos financeiros, já que nenhum bem simbólico era gratuito nesse esquema. Em resumo, manter uma leitura das Escrituras no esquema mandamento-observância é fundamental para o exercício do poder.
Creio firmemente que nosso chamado, nossa vocação e nossa missão como comunidades cristãs na sociedade não devem se dar no nível do exercício do poder. Pelo contrário, imitar a atitude de Jesus de Nazaré é assumir o papel de agentes proféticos diante dos poderes que fazem minguar a vida, quaisquer que sejam seus meios de ação: políticos, religiosos, ideológicos etc. Não estou certo de que tem sido este o papel, de um modo geral, representado pela grande comunidade evangélica em nosso país. Os expressivos números do crescimento de nossas comunidades ainda não se converteram no crescimento da justiça social, na diminuição da violência e da corrupção política, ou na consolidação de uma cultura de paz e fraternidade. Desconfiamos profundamente que o projeto de grande parte da comunidade evangélica no Brasil vai se convertendo acintosamente em um projeto de poder, cuja face mais recente é a presença maciça nas plataformas político-institucionais de Estado.
Desconfio que esta inércia social, assim como a atitude de flerte com o exercício do poder, estejam profundamente arraigadas pela forma arcaica de ler e interpretar a Bíblia, que ainda caracteriza grandemente as comunidades evangélicas em nosso país. É por isso que lhe convido, neste tempo de Quaresma em que nos preparamos para celebrar a Semana Santa, a pensarmos um pouco acerca de nossa relação com o documento central de nossa identidade religiosa. Carlos Mesters, conhecido biblista holandês radicado há muitos anos no Brasil, apelidou a Bíblia de “flor sem defesa”. Bela, singela, capaz de aromatizar a vida, a Bíblia pode ser instrumentalizada em função de projetos completamente antagônicos ao espírito de Jesus. Como flor sem defesa, ela pode instrumentalizar o ódio em lugar do amor, a arrogância em lugar da simplicidade, e o poder em lugar do serviço gratuito ao próximo.
Meu convite, portanto, nesse tempo de Quaresma, é para seguirmos a Jesus de Nazaré também em seu gesto subversivo de leitura das Escrituras Sagradas. E como ele, fazer da leitura da Bíblia motivo para tornar a vida mais bela, mais justa e boa de ser vivida para todo mundo (João 10,10).
PARA APROFUNDAR
COM JESUS NA CONTRAMÃO
Carlos Mesters
Edições Paulinas│2007│135pp.
[Neste pequeno livro o biblista Carlos Mesters tenta nos aproximar do contexto mais amplo (social, político, geográfico, econômico) que serviu como pano-de-fundo para a atividade de Jesus de Nazaré. Muito mais do que a formulação de novos valores religiosos, Mesters nos mostra como a prática de Jesus buscava resgatar as potencialidades da vida em todas as suas dimensões. A releitura dos textos fundantes da tradição religiosa judaica tem importância pivotal para essa prática subversiva de Jesus, registrada nos evangelhos canônicos. Esse livro pode nos ajudar a repensar nossa forma de ler a Bíblia e de fazer missão hoje.]
Texto também disponível em Novos Diálogos.
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