domingo, 8 de fevereiro de 2009

QUEM PROFETIZA FALA AOS HOMENS


Em memória do centenário do nascimento de Dom Helder Câmara


No último dia 7 de fevereiro de 2009, deu-se o centenário do nascimento de Dom Helder Câmara. Nascido a 7 de fevereiro de 1909, Dom Helder partiu em 28 de agosto de 1999, aos 90 anos de idade, na cidade do Recife. Minha esposa teve o enorme privilégio de conhecê-lo pessoalmente enquanto ela cultivava a espiritualidade católica no Convento das Irmãs Sacramentinas em Feira de Santana. Para mim, de outra forma, a existência de Dom Helder passou despercebida por muito tempo.

Só o conheci por meio dos livros. Especialmente por meio de um livro – Helder, o Dom – que adquiri num sebo ambulante instalado na porta do pavilhão do curso de Filosofia, na Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-BA). Até hoje essa coletânea de artigos dedicados à sua memória permanece como uma das coisas mais instigantes e impactantes que eu já li.

Há uns quatro anos pude visitar seu túmulo situado no interior da Catedral da Sé, em Olinda-PE. Em sua lápide se encontram essas palavras: “O profeta do século 20”. É forçoso que nós, cristãos brasileiros protestantes e católicos, reconheçamos a verdade dessa declaração.

A tradição profética veterotestamentária é pródiga em sinalizar os distintivos de um autêntico profeta. No entanto, também aprecio sobremaneira a forma pontual com que Paulo tratou a questão. Em um dos argumentos usados na polêmica contra os pneumáticos (espirituais) de Corinto, Paulo simplesmente apela para o fato de que “quem fala em língua estranha fala em mistérios com Deus, mas quem profetiza fala aos homens para edificá-los, exortá-los e consolá-los” (1Co 14,2-3).

Noutras palavras, o profeta é servo de Deus na medida em que serve aos homens com e através da Palavra de Deus. Portanto, é servo de Deus e dos homens concomitantemente. Por meio da Palavra, edifica onde há aridez de amor, de fé e de esperança. Exorta os opressores a que se convertam de sua práxis opressora. E consola os oprimidos, mas não superficialmente, e sim lhes fazendo enxergar a oportunidade de serem artífices de seus próprios destinos, isto é, de forjarem sua libertação na companhia de Deus.

Fazendo alusão às expectativas construídas após a eleição de Obama, Jung Mo Sung dizia num artigo recente que os homens necessitam de “pessoas-símbolo” para animarem seus projetos utópicos e libertários. Fazia alusão a Rosa Parks e a Martin Luther King Jr. como exemplos de pessoas-símbolo da luta racial nos Estados Unidos. No Brasil, poderíamos dizer que Dom Helder tornou-se uma dessas pessoas-símbolo quando se trata de alimentar, perseverar e animar uma práxis evangélica articulada com o tema da opção preferencial pelos sem vez/voz. Recebeu os epítetos de “bispo das favelas”, “voz dos sem-voz”, “advogado do Terceiro Mundo”, “profeta da Igreja dos pobres”, “apóstolo da não-violência”, “bispo-vermelho”, entre outros. Dizia preferir o de “irmão dos pobres e meu irmão”, dado a ele por João Paulo II.

Aqui eu não desejo fazer uma resenha de sua biografia. Há amplo material bibliográfico e eletrônico disponível. Eu desejo somente, à luz do critério paulino, resgatar pequenos fragmentos do profetismo de Dom Helder. Porque ele “falou aos homens para edificá-los, exortá-los e consolá-los”.

Falou aos homens acerca da essência humana e cristológica das realidades sacramentais:

“Há uma Eucaristia no santo sacramento: a presença viva do Cristo, sob as aparências do pão e do vinho. Há também a outra Eucaristia, a Eucaristia do pobre: aparência de miséria? Realidade do Cristo!”

Falou aos homens acerca do poder da bondade e de seu triunfo e eficácia perante a violência:

“É mais fácil estar no ódio do que na bondade. Somente os fortes – fortes pela graça do Senhor – podem manter-se verdadeiramente na bondade. E é curioso como os poderosos da terra temem a bondade...”

Falou aos homens sobre a necessidade de não se renderem aos estreitamentos da realidade:

“Nunca se deve temer a utopia. Agrada-me dizer e repetir: quando se sonha só, é um simples sonho, quando muitos sonham o mesmo sonho, é já a realidade. A utopia partilhada é a mola da história”.

Falou aos homens sobre uma atitude inteligente e visionária ante a juventude:

“Demos à juventude, enquanto é tempo, um crédito de confiança, corajoso e ilimitado. Os jovens não aceitam uma confiança pela metade. Enfim, meus irmãos adultos: os jovens são ou não são vossos filhos? No dia em que a juventude for comedida, prudente e fria como a velhice, o país morrerá de tédio”.

Falou aos homens de igreja sobre a coragem de não negligenciarem as posições que assumiram:

“Fala-se muito em crise de autoridade na Igreja, e mesmo crise de fé. Minha experiência pessoal permite-me afirmar que há uma crise de autoridade, sobretudo quando as autoridades não têm a coragem de aceitar as conseqüências das opções que estudaram, deliberaram, votaram e assinaram”.

Falou aos homens de igreja sobre a primazia do testemunho eclesiástico:

“Se não estou enganado, nós, homens de Igreja, deveríamos realizar dentro dela aquelas mudanças que exigimos da sociedade”.

Falou aos homens de igreja sobre a primazia do serviço e sobre a benção da pluralidade:

“Nós, os excelentíssimos, estamos necessitados de uma excelentíssima reforma! Basta de uma Igreja que quer ser servida; que exige ser sempre a primeira; que não tem o realismo e a humildade de aceitar a condição do pluralismo religioso...”

Falou aos homens sobre as dimensões não-institucionais do amor de Deus:

“Os que não crêem têm em comum com os que crêem que o Senhor acredita neles. Será a surpresa de cristãos e de católicos quando virem que não entrarão sozinhos na casa do Pai... Porque o coração do Pai é muito maior que os registros de todas as nossas paróquias, e que o Espírito do Pai sopra por toda parte, mesmo lá onde os missionários ainda não aportaram!”.

Falou aos homens sobre a extensão da missão evangélica:

“Porque a fome, a miséria, são conseqüências das estruturas de injustiça, o Senhor exige de nós a denúncia das injustiças. Isso faz parte do anúncio da Palavra”.

Por fim, falou aos homens sobre as razões profundas do exercício da espiritualidade:

“Se Deus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente Pai, que necessidade tem de nossas preces? Não é porque oramos menos que ele será menos Deus, menos Pai, menos perfeito! Nós é que temos necessidade de orar, porque se não mergulhamos no Senhor, esquecemos nosso próximo e nos tornamos tão inumanos...”.

Que tenhamos em mente o fato de que Dom Helder não foi um teólogo de gabinete, enclausurado em meio a muitos livros, e teorizando distante da realidade de miséria do povo. Esses excertos todos expressam textualmente uma práxis viva, labutadora e orante de um nordestino (cearense) que, de acordo que Paulo Evaristo Arns “terá seu nome lembrado junto com o dos apóstolos mais insignes de todas as gerações que souberam honrar o Brasil e usar o carisma de defensor da paz e da justiça para os filhos de Deus”.

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