sábado, 21 de março de 2009

O NOVO MUNDO NO SEIO DO MUNDO VELHO


Meditações sobre um paradoxo bíblico-existencial


“Porque quem está em Cristo é uma nova criação, as coisas velhas passaram e agora tudo se fez novo” (2Co 5,17)

Como assim?

Em que sentido devemos entender a declaração de Paulo acima citada?

Talvez (frise-se esse advérbio: talvez) estejamos mais seguros quanto ao que significa esse estar em Cristo. Mas, e quanto à assertiva de que estando nele somos nova criação? E quanto à assertiva de que as coisas velhas ficaram para trás? Substancialmente, o que ficou para trás? Quais eram aquelas coisas velhas às quais o estar em Cristo proporcionou a superação? E ainda, onde estão todas as coisas novas? Onde está essa novidade oni-abrangente produzida por esse estar em Cristo?

Já as traduções mais arraigadas entre nós ampliam a dificuldade no entendimento dessa declaração. Por razões que somente João Ferreira de Almeida poderia nos dar a saber, preferiu traduzir kainê ktísis – literalmente nova criação – por nova criatura. Desde então, entendemos que Paulo está fazendo referência à estrita experiência subjetiva, intimista, personalista e individualista da conversão. Kainê, isto é, o novo que advém do estar em Cristo, seria uma dádiva estritamente antropológica. E o idoú gégonen kainátudo se fez novo – estaria referenciado exclusivamente aos impactos dessa novidade na dimensão íntima dos discípulos e discípulas.

Dessa forma, as expressões gregas kainê ktísis e idoú gégonen kainá estão, entre nós, reduzidas equivocadamente à experiência humana privatizada. Todavia, o que aquelas expressões denotam é a novidade ampla, cósmica e oni-abrangente que advém do estar em Cristo. Nele, tudo é novo. Portanto, ainda que a experiência da conversão tenha implicações profundas sobre a dimensão subjetiva, intimista, personalista e individual (metanóia) de cada um de nós, as expressões nova criação e tudo se fez novo não se exaurem nisso. Em outras palavras: kainê ktísis e idoú gégonen kainá não são sinônimos de metanóia.

Assim sendo, voltamos às nossas indagações iniciais, sobretudo a estas: Onde estão todas as coisas novas? Onde está essa novidade oni-abrangente produzida por esse estar em Cristo? Onde está essa nova criação?

Num primeiro olhar, não há qualquer mudança substancial no mundo e na criação, ainda que nossa conversão tenha sido a mais honesta entre todas. Pelo contrário, o que nos afronta é a terrível realidade de que o mundo permanece velho, e que suas estruturas velhas e caducas desafiam a todo e qualquer projeto focado em novidades. Nos convertemos aos montes enquanto o mundo somente vai ratificando suas velhas estruturas. Até aqui, a caducidade desse mundo vai derrubando um projeto utópico depois do outro.

E nenhum de nós deveria recorrer às revoluções científicas, tecnológicas e globalizantes da atualidade para supor que estamos num mundo novo, diferente, inédito. Não! A novidade de tais fenômenos consiste somente na novidade dos meios, dos métodos, dos caminhos, dos instrumentos cuja finalidade é repetir, naturalizar e de certa forma consagrar as antigas estruturas que compõem este mundo. Nesse sentido, o Qoelet (Eclesiastes) tem toda razão: “nada há de novidade debaixo do sol”.

Mas a quais estruturas estou me referindo quando falo da caducidade desse mundo?

Estou fazendo referência, sobretudo, às estruturas de dominação e suas múltiplas e variadas modalidades. A novidade dos métodos e das revoluções científica, tecnológica e globalizante tem servido somente à construção de mecanismos novos para perpetuar estruturas antigas. Essas estruturas são aquelas que se refletem na disparidade de classes, de gênero, de cultura, de crença, e etc... Ou seja, não há nenhuma novidade em nosso mundo, a não ser aquelas que ajudam a corroborar as repetições das injustiças de sempre.

Um exemplo.

Zygmunt Bauman, em O mal-estar na pós-modernidade, disserta acerca da necessidade perene que cada sociedade tem de identificar e eliminar os elementos considerados “impuros”. [Se observarmos bem, essa é uma tendência nascida na dinâmica religiosa. Toda tradição religiosa parece ter sua “teologia da impureza” e todas elas procuram definir os cânones de regulamentação e de diferenciação entre puros e impuros. Nosso mundo, emancipado da hegemonia religiosa, parece ter assimilado tal tendência.] Bauman afirmaria que nos tempos modernos, os revolucionários – isto é, todos aqueles e aquelas envolvidos na ruptura com os padrões estabelecidos socialmente – foram os impuros da vez, suscetíveis à proscrição. Em tempos pós-modernos (o nosso tempo), os impuros são todos aqueles e aquelas que não podem atender às demandas consumistas do mercado. Devem, portanto, ser semelhantemente proscritos da sociedade. Quando muito, esses novos impuros são cooptados à dinâmica do mercado como combustível humano que alimenta os meios de produção.

Moral da história: não há novidade alguma no mundo acerca da qual devamos celebrar.

Mas temos um paradoxo a enfrentar. É no meio desse mundo velho que recebemos o impacto da declaração de que em Cristo somos nova criação, uma vez que tudo se fez novo. Mas, outra vez, onde estaria essa nova criação e essa novidade oni-abrangente?

Iniciemos o enfrentamento desse paradoxo com uma pergunta: Existe um mundo objetivo radicalmente separado da relação com o sujeito que o percebe? Desde de Martim Buber já sabemos que não. Toda relação humana com o mundo é mediada pela dualidade sujeito-objeto. Todo conhecimento humano se faz à base dessa relação recíproca entre sujeito cognoscente e objeto cognoscivo, de tal maneira que não se pode afirmar a existência objetiva de um a despeito da existência do outro. O ato de conhecimento implica uma transformação tanto do mundo quanto do sujeito que busca conhecê-lo reciprocamente. Meu mundo tem necessariamente a minha marca, e a minha marca tem necessariamente o legado do meu mundo.

Dessa maneira, o estar em Cristo, que primeiro é uma experiência de novidade íntima e pessoal, só chega à plenitude se reconstrói o mundo velho e caduco à luz dessa mesma experiência. Em outras palavras, o estar em Cristo promoverá para o indivíduo a construção de um novo mundo, mesmo na presença das velhas estruturas de dominação e opressão.

Porque um é o mundo velho para aqueles que com ele convivem com uma atitude passiva e resignada. Outro é o mundo velho para aqueles que com ele convivem de forma ativa-transformadora. Embora as estruturas velhas sejam as mesmas, trata-se de dois mundos diferentes. No primeiro caso, a velhice e a caducidade de tais estruturas é vista como necessária, natural e ontológica – o que conduz à resignação. No segundo, a velhice e a caducidade de tais estruturas é vista como contingente, artificial e transitória – o que conduz à ação transformadora. No fundo, são mundos distintos. É nesse sentido que o estar em Cristo inaugura a nova criação.

É suspeita, portanto, toda conversão pessoal que não se traduz na conversão do mundo da pessoa. É suspeita toda conversão pessoal que não põe homens e mulheres em marcha, como brotos que antecipam a novidade que se instalará sobre toda a humanidade.

Por fim, a declaração paulina, ao mesmo tempo em que ratifica um paradoxo, também exorciza uma contradição. Primeiro, ratifica o paradoxo de que o estar em Cristo inaugura a nova criação ainda no seio de nosso mundo velho e caduco de injustiças e opressões. Depois, exorciza a contradição de se estar em Cristo e conviver passiva e resignadamente com este mundo velho, ímpio, feio e injusto. Com honestidade, eu jamais me sentiria atraído por um Deus interessado somente na mudança dos valores morais e religiosos de alguns indivíduos, e desinteressado da mudança desse mundo velho e injusto.

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