terça-feira, 3 de março de 2009

O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS


A fé bíblica e o mundo contemporâneo em diálogo

Foi no domingo passado, enquanto eu aguardava meus amigos Marcos Monteiro e o casal Jeyson e Rúbia para o almoço em minha casa, que me surgiu a convocação súbita para realizar um exorcismo. Alguém da comunidade estaria supostamente possesso pelo demônio e a família contava com meu auxílio na resolução do caso. No interior da residência desta família cheguei a brincar com todos ao dizer que aquele demônio tinha um nome bem conhecido: 51 Pirassununga. E meu trabalho de exorcista se resumiu a convencer a “vítima” a que tomasse uma ducha de água fria, um bom gole de café forte e a que se entregasse a algumas horas de sono. Deu certo! Sem resistências, o “demônio” bateu em retirada!

Eu acredito que todo pastor e toda pastora verdadeiramente honestos já se defrontaram com as questões: Como enfrentar problemas e situações tipicamente contemporâneas com fórmulas forjadas há dois mil anos atrás? Como atualizar a experiência cristã em nosso mundo (que é fundado sob bases novas) com uma visão de mundo do primeiro século da Era Cristã? Como conciliar a visão de mundo de ontem na qual foi burilada a fé cristã e a visão de mundo de hoje onde essa fé deve se atualizar? A visão de mundo que deu origem à fé cristã deve ser transposta literalmente às gerações subseqüentes ou o Cristianismo deve ser reinventado a cada nova geração?

Essas perguntas e sua validade não são novas. O grosso da teologia católica e protestante da primeira metade do século 20 nada mais é que uma tentativa de responder satisfatoriamente a esses questionamentos. Os diversos e diferentes constructos teóricos que constituem essas teologias são como um círculo concêntrico girando em torno desta responsabilidade: ser cristão em nosso tempo.

Embora não tenha sido o primeiro filósofo a tratar do tema da impertinência das crenças religiosas em nosso tempo, e nem mesmo o primeiro a escrever sobre isso, é certo que Augusto Comte comparece como a figura responsável por popularizar a convicção de que a percepção religiosa do mundo é anacrônica em relação ao homem moderno. Foi Comte quem popularizou a noção de que a visão de mundo religiosa pertence aos estágios primitivos do pensamento humano, tendo sido superada pela mentalidade metafísico/filosófica, que, por sua vez, deveria ser superada pela mentalidade científico/positivista, da qual Comte era o próprio sacerdote e arauto. Professar uma percepção dos fenômenos naturais e sociais a partir de convicções religiosas, a seu ver, era o mesmo que andar milênios para trás em termos cognitivos.

Se eu não estiver equivocado, esse posicionamento teórico/prático baseado em Comte se instaurou meio como uma coqueluche sobretudo no século XIX. Digo isso porque, cada um à sua maneira, foi exatamente essa a posição de Feuerbach, Nietzsche, Marx e Freud, por exemplo. Cada um em sua perspectiva considerou a visão religiosa do mundo como resquício de uma era primitiva, cuja superação deveria ser um imperativo a bem do desenvolvimento cognitivo da civilização.

Muito próximo dessa atitude está a posição de Leon Trotsky. Há uma passagem dele que poderia ser tranquilamente atribuída a qualquer dos teóricos que exemplifiquei acima. Dizia Trotsky:

Não é apenas nas casas dos camponeses, mas também nos arranha-céus das cidades, que o século XIII vive ao lado do XX. Cem milhões de pessoas usam a eletricidade e ainda acreditam nos poderes mágicos de sinais e exorcismos [...]. As estrelas de cinemas procuram médiuns. Os aviadores que pilotam mecanismos milagrosos criados pelo gênio do homem usam amuletos em seus suéteres. Como são inesgotáveis em suas reservas de trevas, ignorância e selvageria!

Para usar uma expressão de Edgar Morin, eu diria que avaliações como as de Trotsky são o produto de uma inteligência cega. Cega porque unilateral, e unilateral porque não consegue captar o fenômeno em sua complexidade, para usar outra expressão de Morin. Vou me justificar mais abaixo.

Por outro lado, sou muito simpático à postura de Antonio Gramsci.

Gramsci, que não era teólogo, mas que também produziu a maior parte de seu legado intelectual na prisão (como Paulo e Bonhoeffer), deu-nos, a meu ver, uma excelente dica para o enfrentamento dessa problemática toda. Eis o que ele diz lá nos miolos de seus Cadernos do Cárcere:

Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado freqüentemente bastante remoto e superado? Se isso ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarramente “compósitos”. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica.

Antes do surgimento de quaisquer suspeitas, esclareço que Gramsci não está fazendo referência explícita nem ao Cristianismo em particular nem à religião em geral. Sua crítica se dirige ao marxismo ortodoxo, que, a exemplo do que ainda acontece muito em nossos dias, insiste em fundamentar sua práxis revolucionária a partir de uma visão ideológica burilada (muito genialmente, diga-se de passagem) no século XIX, sem se dar conta dos múltiplos matizes de nosso tempo.

Mas se o pastor e a pastora verdadeiramente honestos devem se defrontar com as questões acima mencionadas, o filósofo e o cientista social (e em certa medida também o teólogo) honesto e inteligente deve também se defrontar com outras questões do tipo: Quais os fundamentos psicológicos da recorrência da visão religiosa do mundo ainda hoje? Que relações existem entre a insistência da visão religiosa do mundo e as condições sociais produzidas pelo próprio projeto da Modernidade? Em que medida a Modernidade produziu, ela mesma, as condições para uma nova irrupção do sagrado? Ao se colocar essas questões, o filósofo e o cientista social se inserem numa perspectiva ampla e complexa, mais apta a captar os porquês dos fenômenos sociais do que as perspectivas unilaterais próprias do século XIX.

Recordo-me com certo constrangimento o sufoco que passei durante uma aula de Filosofia da Ciência que ministrei para pastores, aqui em Maceió. Assistíamos ao filme Ponto de Mutação, baseado no livro do Fritjof Capra. Ao fim, meu amigo Neilton Azevedo disse muito acertadamente: “Enquanto filósofos, cientistas e poetas discutem a inviabilidade da visão de mundo fundada no século XVII por Descartes e levada a cabo por Newton [visão reducionista-mecanicista], nós sequer nos damos conta da caducidade de uma visão de mundo fundada no século I da Era Cristã”.

Julgo sumamente difícil chegarmos a um consenso desses na igreja. Muito dificilmente as pessoas se darão conta de que a Bíblia, embora tenha validade e pertinência universal nos seus propósitos, é, em termos literários, produto de uma época específica, marcada por uma visão de mundo específica. Contudo, tendo sido escrita nesse contexto específico de dois mil atrás (que é diferente do nosso), ela me suscita ainda assim um projeto de vida aplicável nesse novo mundo: um projeto de amor e de afirmação incondicional da vida.

A própria Bíblia é um livro que dá testemunho de visões de mundo diferentes, que vão sendo vencidas sucessivamente à base dos processos sociais corriqueiros, sobretudo a partir do intenso intercâmbio cultural experienciado por Israel. Por exemplo, o próprio imaginário religioso daquele povo é descrito de forma múltipla em sua caminhada histórica. Nesse imaginário, a própria percepção de “quem é Deus” é múltipla, fruto de uma caminhada histórica rica e diversificada. Quem reuniu o Canon Escriturístico em sua versão definitiva sequer sentiu-se constrangido com o fato de que ali se fala de um Deus que manda matar os inimigos e de um Deus que manda amar incondicionalmente aos inimigos como sendo o mesmo Deus. Duvido que isso tenha sido fruto de distração!

Tenho certeza de que ao tratar meu “endemoniado” a partir de categorias desse tempo, tratei-o também biblicamente. Se a visão de mundo contemporânea – seus avanços científicos, suas discussões filosóficas, os resultados das ciências humanas, etc. – forem utilizados na promoção da vida e dos valores mais prementes dos seres humanos, não tenhamos dúvida: nesse momento fizemos a profunda experiência de termos sido homens e mulheres desse tempo e homens e mulheres bíblicos concomitantemente. Porque a Bíblia – embora seja produto literário de um tempo – é convite e proposta existencial para todos os tempos!

3 comentários:

Luiz Muniz disse...

Polo de Itanhaém
Aluno: Luiz Muniz Leite
Matrícula:178167

Comentário:"O Mundo Assombrado Pelos Demônios"
Os Evangelhos falam muito de possessão e opressão de demônios.O Livro de Atos também registra um ´sem-número de casos de exorcismo.Muito embora os demônios sejam mencionados esporadicamente no Novo Testamento,muitos cristãos têm se mostrado preocupados com a possibilidade de serem vulneráveis aos seus ataques. A minha posição é que mais uma vez fica claro a importância do Pastor ter um bom preparo teológico, para saber lidar com situações desta natureza.Para meditação gostaria de mencionar IJo. Cap.4.1;"Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora"

Paulo Nascimento disse...

Olá meu querido pastor!

Perceba, o fenômeno que chamamos de "possessão demoníaca" não está negado no meu texto. Eu somente me utilizei de uma situação do meu cotidiano pastoral (onde o caso de fato não era de possessão, mas de clara embriaguez) para introduzir e ilustrar o tema central da reflexão: "A relação entre a fé bíblica e a visão moderna de mundo".

Abração pra você, e obrigado por acompanhar nosso trabalho teológico.

Paulo Nascimento

Fabio Cruz da Silva disse...

Meu amigo, quanto tempo. Entre em contato. meu msn: fabio.crsva@hotmail.com
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