sábado, 2 de outubro de 2010

CRESCER, APARECER... E AMADURECER


Sete teses sobre a teo-ideo-logia evangélica no Brasil
Há mais de ano atrás, em maio de 2009, eu havia escrito o seguinte sobre os evangélicos e a política no Brasil: Sim, os evangélicos cresceram e apareceram! Saltamos de 5 ou 7 por cento no início da década de 1990 para mais de 15 por cento em dez anos. Em 2000 o IBGE dizia que éramos uns 26 milhões de crentes tupiniquins. Talvez beiremos os 30 milhões atualmente. Tamanho crescimento religioso é um dado sociológico impossível de passar despercebido por quem quer que seja. Já que crescemos tanto e já estamos aparecendo positivamente até na Rede Globo, seria também o momento de não entrarmos num jogo cuja regra maior parece evidente: fazer-nos massa de manobra! Afinal, gente crescida é gente que deve aprender a cuidar bem de si!
Ao que parece, até o momento continuamos a crescer e a aparecer, mas ainda não amadurecemos.
Admito que as últimas convulsões no mundo evangélico brasileiro, relacionadas ao futuro político de nosso país, ajudaram a reforçar a incômoda tese acima. Vou tentar expor minhas razões em forma de sete pequenas teses (hipo-teses), bem no estilo de Karl Popper.
Minhas hipo-teses são as seguintes:
1. Não aprendemos com nossos próprios equívocos históricos.
2. Não ultrapassamos a mentalidade de gueto.
3. Preferimos os conteúdos prontos da difamação ao debate franco e aberto de idéias.
4. Continuamos a ver na iniqüidade social um fato natural.
5. Desprezamos o fato histórico de que já fomos minoria desprivilegiada.
6. Tememos as conseqüências de um Estado totalmente laico.
7. Confundimos crítica com desunião, sectarismo e desamor.
***
1. Não aprendemos com nossos próprios equívocos históricos. Não amadurecemos ainda porque desprezamos o fato de que a estratégia de demonização de partidos de esquerda no Brasil não é nova. Na verdade, tanto a demonização quanto a criminalização de partidos e movimentos de esquerda – dos quais o MST é só um exemplo – têm sido uma constante no nosso país. O campo religioso evangélico brasileiro parece extremamente fértil aos conteúdos desse tipo de ardil ideológico. Em 1989 e em 2002 tais conteúdos se apresentavam sob a ameaça do fechamento das igrejas e do cerceamento da liberdade religiosa, por conta de uma suposta ideologia comunista defendida por Lula. Àquela época, tal como se vê agora, a mobilização anti-Lula e anti-PT tornou-se amplamente aceita por nossas igrejas. Duas coisas poderiam ser ditas em função disso: a) ou a falta de memória histórica permanece sendo um mal incurável entre nós, ou,b) de fato, não estamos dispostos a interpretar aqueles fatos como um terrível equívoco histórico com o qual deveríamos aprender a corrigir nossos procedimentos atuais.
2. Não ultrapassamos a mentalidade de gueto. Não amadurecemos ainda devido ao fato de que não desejamos romper com a mentalidade de gueto. A mentalidade de gueto se caracteriza, entre outras coisas, pelo fenômeno grupal da formação de uma consciência de status de superioridade em relação a outros grupos sociais. Em decorrência disso, aparece a dificuldade de relacionamento com grupos diferentes. Erich Fromm chamava a esse fenômeno de “narcisismo de grupo”. No entanto, quando tais grupos sentem que seus valores estão sendo ameaçados, e tais valores coincidem com os de grupos outrora antagônicos, “os inimigos fazem as pazes”. Nós gostaríamos muito de ver ocorrer no Brasil, por exemplo, uma aproximação sincera entre evangélicos e católicos. Além de ser um grande sinal de fraternidade para a sociedade, muita coisa interessante em termos missionários poderia aparecer daí. Mas a aproximação que se assiste agora, fundamentada somente na necessidade de proteger interesses particulares, demonstra o quanto ainda somos marcados pela mentalidade de gueto. O “ecumenismo interesseiro” que a gora se vê, e que certamente se dissolverá após a eleição, deve ser visto por nós com profunda vergonha.
3. Preferimos os conteúdos prontos da difamação ao debate franco e aberto de idéias. Não amadurecemos ainda porque continuamos, como povo evangélico, avessos ao pensamento e à reflexão. É lamentável que pacotes ideológicos profundamente questionáveis sejam aceitos entre nós com base unicamente no “poder pastoral” (Michel Foucault). Digo isso não somente em relação às informações recentemente veiculadas pela campanha anti-PT nas igrejas evangélicas. Essa postura se estende a muitos outros pacotes teo-ideo-lógicos que encontram fácil adesão no campo religioso evangélico brasileiro, sem qualquer reflexão crítica. Pastores e pastoras estão sujeitos aos mesmos condicionamentos histórico-sociais que qualquer pessoa. Disso deriva o fato de que eles também erram. A verdade de suas declarações, portanto, não deve repousar apenas em seu status de líderes religiosos. Junto com a confiança que devemos àqueles e àquelas que se dedicam aos cuidados de nossas almas, deveríamos deixar de prontidão o nosso senso crítico. Por exemplo, quantos pastores e pastoras que encabeçaram mobilizações anti-PT de fato discutiram o PNDH-3 ou a PL-122/2006 com suas igrejas? João Alexandre parece ter toda razão quando canta “É proibido pensar!”.
4. Continuamos a ver na iniqüidade social um fato natural. Não amadurecemos ainda, pois os novos fatos que circulam entre nós, sobretudo aqueles ligados às advertências contra a “legalização da iniqüidade” via PT, evidenciam o quão pobre permanecem as nossas análises sociais. É quase inacreditável que nossas melhores lideranças aceitem e divulguem a idéia de que somente agora corremos o risco da legalização da iniqüidade. E é vergonhoso que isso encontre ampla aceitação em nossas igrejas. Os crimes contra a liberdade de expressão cometidos durante a Ditadura Militar entre 1964 e 1985 não foram expressões de iniqüidades legalizadas? A desigualdade social de nosso país não é produto de uma iniqüidade historicamente legalizada? O tratamento desigual dado pelo nosso Código Penal aos magistrados, parlamentares e portadores de curso superior no Brasil, não é expressão de iniqüidade legalizada? A coexistência de latifúndios e favelas não é expressão de iniqüidade legalizada? Ou nada disso seria iniqüidade? Ou são fatos naturais da vida social, de tal maneira que sequer pensamos neles como problemas? Será que nossa falta de percepção desses fatos como iniqüidades não está ligada com nossa visão de mundo tacitamente burguesa? Sei que não há quem falte, entre nós, quem enxergue tudo isso como “vontade de Deus”. Lamentavelmente.
5. Desprezamos o fato histórico de que já fomos minoria desprivilegiada. Ainda não amadurecemos porque nos falta memória histórica. Sabemos quase tudo sobre a Bíblia, mas quase nada acerca de nossa própria História como grupos religiosos no Brasil. Hoje, achamos ruim que grupos minoritários se articulem em função dos seus interesses. Mas esquecemos que já passamos pelo mesmo estágio quando éramos minoria desprivilegiada. Hoje, trememos de medo perante os desafios de um Estado laico. Mas esquecemos que fomos uma das principais forças históricas para a construção do Estado laico brasileiro. Como pastor batista, eu desejo muito que um dia possamos ter uma Nação cristã. Mas também afirmo sem medo de ser mal compreendido: Deus nos livre de um Estado cristão! Uma Nação cristã não necessita de um Estado cristão. A História já mostrou o quão perigosos, sanguinários, perseguidores e anticristãos são todos os Estados cristãos.
6. Tememos as conseqüências de um Estado totalmente laico. Nosso pavor diante de um Estado radicalmente laico prova que não amadurecemos ainda. Afinal, onde se radica nosso desejo por parlamentares evangélicos? Onde se radica nosso desejo por leis estatais que reflitam nossa visão de mundo? Onde se radica nossa rejeição aos projetos de Lei e às políticas públicas de inclusividade de certas minorias? Em nosso apreço pela família? Em nosso zelo pela herança doutrinária cristã? Talvez seja, em parte. Mas eu acrescentaria mais uma razão. A campanha anti-PT entre os evangélicos, sua defesa por leis que reflitam seus valores religiosos, e sua recusa a um Estado totalmente laico, refletem também seu desejo por seguridade. Não queremos enfrentar, como os primeiros cristãos, as conseqüências de um Estado que nos desafie com sua visão secularizada do ser humano. Queremos seguridade e conforto. Nossa honra seria muito melhor afirmada no enfrentamento corajoso das conseqüências de um Estado totalmente laico, do que com a influência da religião sobre nossas Leis. Conforto e seguridade são itens da teo-ideo-logia evangélica média que quase ninguém está disposto a negociar.
7. Confundimos crítica com desunião, sectarismo e desamor. Não amadurecemos ainda porque não sabemos lidar bem com a crítica, confundindo-a com desunião, sectarismo e desamor. Na contramão dessa postura, Paul Tillich dizia em sua Teologia Sistemática que “a crítica é também uma forma de comunhão”. Um dos conceitos mais caros da obra tillicheana é o conceito de “princípio protestante”. No que isso consiste? Consiste no fato de que deveríamos, como grupo religioso, estar sempre abertos à crítica e sempre prontos para a autocrítica. Conforme Tillich, mais do que qualquer confissão doutrinária, é essa honestidade crítica aquilo que mais deveria caracterizar as igrejas protestantes. Mas, na prática, os debates envolvendo o futuro político do Brasil revelam o quanto a crítica é um demônio contra o qual não sabemos lidar. Entre as táticas mais imundas encontradas nessas discussões está a rotulação do outro como “fundamentalista”, “reacionário”, “...ólogos espirituais”, “marxistas”, “liberais” etc. Quase sempre a rotulação é produto de quem se considera acima da crítica. Quase sempre ela é a forma covarde de se furtar a um exame sério das idéias em jogo.

Um comentário:

Marcos Monteiro disse...

Paulo, as suas análises lúcidas fazem parte do meu desafio de viver melhor e mais seriamente. Um grande abraço.