segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

APOCALIPSE NO(W)!


Meu primo, pastor Gleidson Portela, quis saber o que eu pensava acerca de tantos desastres ambientais ocorrendo no mundo simultaneamente. Quis saber o que eu pensava acerca da grande aceitação dada a prognósticos míticos, do tipo do calendário Maia e o apocalipse de 2012.
Antes de lhe dizer minha opinião, eu recordava uma afirmação de Umberto Eco feita ao cardeal Carlo Martini, na troca de correspondências que deu origem ao livro Em que crêem os que não crêem?. Eco dizia ali que hoje convivemos com o inusitado fato de que a ciência tornou-se obstinadamente apocalíptica, enquanto a religião torna-se obstinadamente secularizada. A ciência, sob o ímpeto do global warming – o aquecimento global. A religião, sob o ímpeto do neoliberalismo e suas benesses.
Eu disse a meu primo que achava que a leitura desses fenômenos, assim como toda intervenção, deveria levar em conta fatores diversos. Em consonância com o pensamento de Edgar Morin, a abordagem desses eventos deveria se calcar no pensamento complexo. Quase nunca isso acontece. Quase sempre as avaliações e as intervenções seguem modelos fragmentários. Não obstante, essas catástrofes vão se tornando algo corriqueiro mundo afora.
Pensar e intervir nessas situações significa admitir a existência dos fatores de ordem “natural”, que estão além de qualquer responsabilidade humana. As chuvas, os terremotos, os deslizamentos de terra, os tsunames, e os demais eventos cataclísmicos que estamos assistindo com alguma freqüência nos últimos anos, em certa medida independem da intervenção humana, ainda que não totalmente. No entanto, nenhuma avaliação ou intervenção que desconsidere os elementos políticos das tragédias em questão pode ser devidamente eficaz. O governo brasileiro, por exemplo, depois das últimas tragédias na região serrana do Rio de Janeiro, decidiu investir na tecnologia meteorológica de prevenção às enxurradas. É lógico que uma intervenção nesse modelo responsabiliza a natureza e desresponsabiliza o estado. Calcada numa leitura fragmentária dos eventos, as políticas públicas de habitação sequer são cogitadas como estratégias de prevenção desses desastres.
Infelizmente, tocar a buzina de alarme fica mais barato que investir em política pública de habitação. Para o estado, é bem menos oneroso. Já sabemos agora que toda política pública de habitação, além da resolução do déficit habitacional do país, deve levar em consideração o problema da ocupação do espaço nas grandes cidades.  
Uma leitura e uma intervenção dos mesmos eventos numa perspectiva complexa levariam em consideração todo um conjunto de fatores implicados nessas tragédias. Esses fatores variariam desde a prevenção meteorológica, passando pela educação ambiental em nível pessoal e institucional, até as políticas públicas de habitação e ocupação do espaço urbano. Investir apenas no aparato de prevenção meteorológica é um recurso ideológico sutil, que expressa a responsabilização das forças da natureza e a desresponsabilização do papel do estado pelos prejuízos.
Dizia a meu primo ainda sobre o risco do discurso apocalíptico da religião nesses casos. Lembrava-lhe acerca de Paulo Freire e sua crítica a todas as ideologias de “desproblematização do presente”. Se o que assistimos é expressão das previsões apocalípticas sobre o fim do mundo, então não há o que fazer. Pelo contrário, haveria muito que celebrar! Também não haveria responsáveis, além do próprio Deus, zeloso em cumprir seus desígnios cataclísmicos para o fim dos tempos. O presente, portanto, estaria desproblematizado. Obviamente, esse discurso convoca à resignação, e à estagnação de qualquer ação transformadora. Os materialistas-dialéticos o chamariam de “ideológico”.
De uma outra perspectiva, Foucault dizia que o discurso não cumpre apenas essa função de velar o sentido oculto das coisas. O discurso, para ele, é algo pelo qual lutamos. O discurso seria também um fetiche do poder. O poder de dizer a coisa certa e mover pessoas e coisas. O poder de dizer a coisa certa e desdizer o que os outros dizem, tal como o discurso do psiquiatra sobre o louco, ele nos exemplificaria. E eu dizia justamente que esses discursos que enredam os últimos eventos cataclísmicos no mundo num esquema apocalíptico devem ser frontalmente negados e relativizados.
PARA APROFUNDAR A DISCUSSÃO
CAPRA, Fritjof. Ponto de mutação: a Ciência, a Sociedade e a cultura emergente. Tradução de Álvaro Cabrall. São Paulo: Editora Cultrix, 1999
ECO, Umberto; MARTINI, Carlo M. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 1995
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2005
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005

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