domingo, 7 de agosto de 2011

A VIDA NÃO É JUSTA


A vida não é justa.
Lutamos para fazê-la mais justa possível, mas quase nunca conseguimos. A vida também não tem qualquer sentido além daqueles que lhes damos. Entramos na existência sem escolher, e passamos a vida inteira lutando para inventar-lhe um sentido. Quase sempre adotamos aqueles que herdamos da cultura. Creio que é nosso dever fazê-lo, e é essa a proposta da religião. A religião não revela, mas significa. Não desvela, mas constrói sentido. Isso faz com que todas elas sejam idênticas, nem falsas nem verdadeiras.
De família pobre, Ela descobriu que estava com câncer aos 29 anos de idade. Adolescente, freqüentou a igreja. Depois se distanciou. Lutou contra o câncer durante um ano e oito meses. Nunca blasfemou. Até sorriu muito, crendo até o fim numa possibilidade de escapar. Não escapou. Morreu aos 31 anos de idade depois de muito sofrimento físico. Havia sido abandonada pelo esposo quando este descobriu sua gravidez. Nunca recebeu uma visita dele durante o enfrentamento de sua doença. Nem durante seu funeral. Ela se foi, deixando apenas a mãe e o irmão. Duas pessoas simples que se devotaram a Ela até o último instante. Obviamente, esse não é o resumo de sua vida, mas apenas de sua morte. Mas sua morte faz pensar na injustiça que se abate sobre certas biografias. Nada justifica seu sofrimento e sua partida tão precoce.
Um dia depois de sua morte, vi na tevê um documentário sobre Joseph Mengele, o médico nazista de Auschwitz. Mengele foi responsável por incontáveis atrocidades feitas naquele campo de concentração, contra os judeus, em nome da ciência e do Terceiro Reich. Chegou a ter um julgamento simulado em Jerusalém, organizado pelos parentes de suas vítimas. Fugiu para a América Latina. Viveu em Buenos Aires, Assunção, e por fim em São Paulo. Morreu na velhice, durante um banho de praia sossegado no litoral paulista. Acolhido por uma família paulista, foi tratado com as honras de um cidadão honorário europeu por muito tempo. Não teve nenhum de seus crimes julgados. Certamente não gozou de paz interior nesse tempo. Ou será que gozou? Morreu em um ambiente tranqüilo e acolhedor, num momento de lazer.
Confesso minha insatisfação com a teologia do livro de Jó. Como sabemos, o livro de Jó quer responder à questão: “por que sofre o justo?” Pergunta antiga, que tem tido em Jó uma espécie de resposta-arquétipo. Ainda me debato com o fato de que a Ela não cabe a “resposta a Jó”. Jó é provado, sofre, deseja a morte todo o tempo, mas sobrevive e é recompensado com o dobro do que possuía. Jó é um justo que experimenta a justiça, ainda que tardiamente, como recompensa de sua abnegação. Ela, do contrário, sofre muito, acredita em todo o tempo e morre. E ponto final.
Como cristão, creio na salvação e na ressurreição dos mortos. São objetos de fé nos quais simplesmente creio, sem a necessidade de justificá-lo. Mas nem a salvação nem a ressurreição me consolam da triste e injusta sina dEla. Por que Ela, e tantos outros, sofreram aquilo que deveria ser imputado pela vida a Mengele e a tanta gente como ele? Não me consola acreditar que Mengele, que nada pagou por aqui, pagará no inferno eternamente. É bem verdade que nunca quis tanto que o inferno existisse depois de ver o documentário sobre Mengele. Fiquei com a certeza de que, como diz o Rubem Alves, a idéia do inferno foi bolada por gente com muita sede de vingança no coração.
Por tudo isso, prefiro achar que há pontos cegos na religião. Pelo menos na minha. Não há teologia que me console da sorte dEla, e de gente como Ela, ao mesmo tempo em que Mengele e gente como ele morre na velhice, em pleno lazer na beira da praia.
Simplesmente, a vida foi muito injusta com Ela, e também com ele. Corrigirá a morte essa injustiça, e tantas outras similares? Honestamente, eu não sei. Mas espero de todo coração que sim. O nome disso é Religião.  
(*Na foto, sapatos do museu de Auschwitz)

3 comentários:

Zeff disse...

Pois é Paulo, creio também que o maior "ato de fé" é prosseguir apesar de não encontrar redenção para todos os aspectos da vida. Nunca saiu da minha cabeça a frase de Dostoiévski no livro "Os irmãos Karamázovi": "Nenhuma ciência (e para mim, nem teologia, religião) justifica a dor de uma criança!". Mas... apesar de tudo caminhamos com essa crença estranha de que algo nisso tudo faz sentido - ainda que nos escape exatamente o quê. Abraços.

Neilton Azevedo disse...

Pois é Paulo, eu também já vivi a minha crise particular ao tentar encontrar sentido para as coisas que acontecem. Atualmente penso que a vida é um misto de possibilidades (um tipo de roleta russa) na qual todos nós estamos arriscando tudo na próxima rodada, de forma que pouco au nenhuma influencia nos resultados tem aquilo que se faz ou deixa de fazer, só que muitas vezes tem tudo a vê, ou seja: a lógica da vida é a ausência de lógica, felizmente ou infelizmente eu nao sei). Boa reflexão meu amado paulo, boa refelxão!!!

Waldir disse...

Boa reflexão, Paulo, felizmente sua pena sempre traz contribuições relevantes para se pensar um pouco da existência. Na minha caminhada pastoral também já me deparei (e muito) com situações que me fizeram silenciar, sem ousar qualquer palavra ou explicação. Talvez o único consolo mesmo seja o título que você deu ao seu texto: "A vida não é justa".