terça-feira, 24 de julho de 2012

NUNCA QUIS TANTO SER LIBERAL


Palavras são armas. Em sua aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970, Michel Foucault dizia que o discurso, longe de ser um espelho bem polido para fazer refletir a realidade, é uma forma de “violência que fazemos às coisas”. Outra tese interessante desse filósofo é aquela que diz que o discurso “constrói as realidades acerca das quais se pronuncia”. Tese inquietante. Tendemos a pensar que o discurso é aquilo que usamos para descrever a realidade, defini-la, categorizá-la, como se houvessem referentes estáticos no mundo, aguardando nosso pronunciamento. Não. A palavra, de diferentes formas, é uma forma de tecer o real. Nas relações de poder do cotidiano, ela é uma das formas usuais com as quais lutamos uns contra os outros.
No campo estrito das lutas morais de nosso cristianismo, “liberalismo” tem sido uma dessas palavras-arma. Não descreve realidades, mas as cria. Cria sujeitos perigosos, devassos, de costumes frouxos. Os últimos debates acerca da relação religião/sexualidade vêm constituindo um palco aberto para a produção de novos liberais. Neste caso, liberais são aqueles que fazem concessões a um tratamento diferente daquele que tradicionalmente as igrejas vêm oferecendo às pessoas que estão fora da norma heterossexual. A palavra “liberal”, usada nesses embates, torna-se um fetiche, uma vez que é utilizada sem um mínimo conhecimento de sua história, de sua genealogia. Como uma pistola, que o sujeito utiliza sem se dar conta dos processos de sua fabricação, a palavra “liberalismo” é usada como arma para produzir sujeitos desqualificados em matéria de moral religiosa, sem que se saiba de fato o que ela é, ou como foi inventada.
Em termos teológicos, convencionou-se chamar de Teologia Liberal àquela forma de prática teológica que teve lugar no século XIX, no contexto europeu, ancorada em dois movimentos intelectuais distintos.
Chamaram-se de teólogos liberais, em primeiro lugar, àqueles estudiosos do cristianismo que se utilizaram de ferramentas do historicismo crítico inventado no século XIX, para analisar os textos bíblicos e a história eclesiástica. Dois nomes de destaque dessa tendência foram Adolf von Harnack e Albert Schweitzer. Esses teólogos pressupunham que os textos bíblicos, em sua produção histórica, obedeciam aos mesmos processos de composição encontrados em outros tipos de narrativa. Isso não significava um esvaziamento do caráter sagrado desses textos. Mas significava dizer que uma narrativa, mesmo que construída com base na fé, não está livre dos condicionamentos históricos que estão na sua base.
Em segundo lugar, chamaram-se de teólogos liberais àqueles estudiosos do cristianismo que tomaram como horizonte intelectual o idealismo histórico, principalmente aquele ligado a uma tradição hegeliana. O nome de destaque aqui é do Daniel Schleirmacher. Alguns incluem aí também os nomes de Ludwig Feuerbach e Rudolf Otto (este último mais ligado à tradição de Kant). Também afinados com as novas concepções do estudo da história, mas de base filosófica, o idealismo se estrutura na ideia do espírito universal como fonte racional de todas as produções simbólicas, incluindo as religiosas. A religião aí não perde sua aura de conhecimento sagrado, sublime, numinoso, ou mesmo revelado. Apenas é identificada como uma das maneiras com que o espírito universal se dá a conhecer. Junto com a Filosofia e a Arte, o conhecimento religioso seria uma das formas da fenomenologia do espírito.  
Do ponto de vista de sua localização geográfica e político-social, esses estudos são produções alemães, concebidos num contexto pequeno-burguês e universitário. Embora se tenha tentado vender a qualquer custo o simplismo de que o liberalismo teológico do século XIX tenha sido a razão do enfraquecimento do cristianismo na Europa, a verdade é que tais tendências liberais nunca chegaram a se popularizar, devido à sofisticação intelectual que exigiam. Ocorre com o liberalismo teológico o mesmo que ocorre com o Iluminismo. O etnocentrismo de parte dos historiadores europeus do século XX elege o Iluminismo – um movimento circunscrito à burguesia intelectual e universitária franco-germânica – como um “ciclo da mentalidade universal”. O sujeito europeu burguês é elevado à categoria de “sujeito universal”, em total desprezo aos movimentos de pensamento que ocorriam em outras partes do mundo. Trata-se aqui do próprio modo positivista de narrar a história. O que quero dizer é que, semelhantemente, o liberalismo nunca chegou ao status de paradigma teológico, a ponto de ser vinculado com a derrocada do cristianismo europeu. Esta deve ser buscada em razões mais amplas, que certamente não são monocausais. Fazer a história delas é tarefa para uma tese de doutorado...
Na maior parte das vezes em que a palavra “liberalismo” é usada hoje em nossas lutas morais envolvendo o cristianismo, o que se tem é o uso de um simulacro. Ela não descreve sujeitos, mas os cria por conta própria. O que se tem com seu uso é uma forma discursiva de desqualificação daqueles contra quem se luta. Tal confusão, contudo, não é nada nova. Karl Barth e Rudolf Bultmann, por exemplo, sempre foram considerados no Brasil como “teólogos liberais”, enquanto os mesmos se identificavam como reativos ao liberalismo da teologia acadêmica de Tübingen. Barth chegou a ser chamado de “neo-ortodoxo” na Europa, enquanto era rotundamente taxado e evitado no Brasil como um “teólogo liberal”.
Em minha opinião, há uma série de razões que levam ao uso da palavra “liberalismo” como recurso discursivo de desqualificação do outro nas atuais lutas morais de nosso cristianismo. Elas teriam a ver com a tradição protestante a que somos devedores no Brasil. Não compete listar todas essas razões históricas. Basta dizer que a grande confusão diz respeito ao fato de se confundir uma teologia que deseja ser libertadora com relativismo teológico. Foi o século XX que produziu as teologias libertadoras, embora elas já estivessem presentes em muitas tradições cristãs do Ocidente. Essa “função libertadora”, no século XX, teve início tendo o pobre como sujeito de discurso privilegiado. Atualmente (sem que a questão da pobreza tenha sido resolvida!), essa mesma função libertadora se estende para outras demandas, pois se descobriu que esse pobre é atravessado por outras contingências. O pobre tem gênero, tem sexo, tem etnia, e a libertação de seu cativeiro econômico não significa necessariamente a libertação das relações de poder que se dão nessas outras esferas. Em sua analítica do poder, Foucault sempre colocou a seguinte questão: “uma sociedade que produzisse plena equidade econômica, seria uma sociedade sem relações de poder?”
Creio que essas teologias reconhecem, inclusive, que o conhecimento religioso tem sido um dos principais saberes mantenedores de relações de poder assimétricas, dando suporte a sujeições pecaminosas e anti-evangélicas. E aqui está o ponto nevrálgico desse papo todo: chama-se de “liberalismo teológico” justamente àqueles discursos teológicos de resistência a isso, e que buscam desconstruir um discurso religioso opressor e mantenedor de relações de poder anti-evangélicas.
Qual a diferença entre o antigo discurso da Teologia Liberal e o destas teologias com desejo de libertação? A diferença consiste em que aquele – o discurso liberal – estava interessado em debater os pilares da fé cristã, submetendo seus fundamentos à investigação científica, como forma de dar contas a uma mentalidade burguesa e acadêmica que flertava com a liberdade da razão. No fundo, ele consistia em dizer àquela burguesia que o Cristianismo ainda poderia ter lugar num contexto “ilustrado”, ainda que fosse necessário negociar certos pressupostos. Essa teologia libertadora que hoje se estende à discussão acerca da sexualidade quer outra coisa completamente diferente. Ela está ligada a minorias concretas cuja vida é desqualificada de diversas formas no contexto social. Essa teologia desconfia que o discurso religioso pode ser fonte de sustentação para injustiças, e os coloca em cheque. Não relativiza os fundamentos da fé cristã, mas relativiza um certo tipo de apropriação desses fundamentos, que não percebe seus próprios efeitos opressores.
Portanto, se ser liberal consistir no exercício de relativizar certas interpretações da Bíblia, ou do que sejam os fundamentos da fé, eu nunca quis tanto ser liberal (parafraseando o Rev. Jardson Gregório)! Aviso-os somente que o dogma e o fundamento de tal teologia permanecem os mesmos dos apóstolos: quem ama conhece a Deus, porque Deus é amor. Ou ainda este: aonde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. 

9 comentários:

Pr. Petronio Borges Jr disse...

Caríssimo Paulo,
Para entender melhor, ajude seu amigo: A teologia considerada ortodoxa pode exercer uma "função libertadora"?
Vamos continuar o papo.
Petronio.

Paulo Nascimento disse...

Olá querido!
Questão complicada esta. Dizer quem é ortodoxo e quem é heterodoxo é sempre um risco. Muitas vezes esta é uma alcunha dada por outrem, e quem a possui por vezes não se reconhece nela. Bem, no meu modo de ver, aqueles grupos considerados mais ortodoxos, conservadores, historicamente têm dado à teologia outras funções, que não necessariamente a chamada "função social de libertação". A teologia, nesses grupos, quase sempre cumpre funções doutrinárias, eclesiais e apologéticas. Realmente, eu não me sentiria seguro para afirmar que os grupos mais conservadores têm feito da teologia uma "atividade libertadora", mais ou menos no sentido que a Teologia da Libertação deu a essa expressão. É bem verdade que a própria expressão "libertação" tem sido muito revista. Mas isso é outro papo... Essa minha consideração é uma leitura do que se tem feito nesses meios. Mas confesso que não conheço tudo, de tal modo que pode haver coisas diferentes por aí. Mas resumindo, me parece que via de regra, quando a teologia foi articulada como proposta de mudança de estruturas sociais, isso ocorreu em grupos e movimentos menos ortodoxos, muitas vezes punidos por uma teologia afinada com as ortodoxias. Acho que é isso. Vamos conversando. Vai ser um prazer.
Grande abraço!
Paulo

Pr. Petronio Borges Jr disse...

Caríssimo Paulo,
Sempre um grande prazer... Continuando... essa discussão lembra o debate histórico dentro da Linguística entre correntes formalistas e funcionalistas. A linguagem não é "apenas" expressão do pensamento ou sistema de comunicação. Linguagem é interação, o discurso é constitutivo da vida. Contudo a forma não deve ser desprezada. É da interação entre forma e função que se estabelece a linguagem. Pois bem, pensando em linguagem teológica, creio que os pressupostos podem ser diferentes, as conclusões discrepantes, mas o que determinará a função é o compromisso ético e político. Basílio de Cesareia e John Wesley são exemplos de uma teologia "ortodoxa" com intervenção em estruturas sociais, em situações de pobreza e escravidão. Tratando mais pessoalmente, crer na validade da experiência religiosa em geral, na singularidade de Jesus com Senhor e Salvador mesmo diante da diversidade de expressões religiosas, na universalidade dos princípios éticos do cristianismo, entendendo que os fundamentos da fé cristão, amor e liberdade tomam forma historicamente na tradição judaico-cristã e que, independente desta gênese, alcançam uma validade universal. Isso não autoriza nem oriente omissão ou opressão. Não preciso ser ateu para defender a laicidade do Estado. Não preciso ser ecumênico para agir com tolerância e respeito diante das diferenças. Dando foco à questão da orientação sexual, assumir uma interpretação bíblica contraria à união homossexual não me faz opressor nem me dispensa da luta por direitos humanos.
É ir adiante... o papo é bem legal!
Forte abraço.
Petronio.

Paulo Nascimento disse...

Olá querido Petrônio!
Acho que o que torna o papo mais prazeroso é a forma respeitosa com que ele é feito. Lembra da analogia de Rubem Alves sobre a diferença entre o tênis e o frescobol? Acho que nossa conversa, mesmo que não redunde em completa concordância, é interessante porque ela é feita como um jogo de frescobol. Olha, eu achei os exemplos de Basílio e Wesley muito interessantes, muito embora não devamos esquecer que eles viveram em outro ordenamento estrutural, onde "ação política" significava uma coisa totalmente diversa do que significa hoje. Faz tempo que não leio nada acerca dos dois. Li aquele livro sobre Basílio do Sipierski ainda no STBNe. Wesley é mais conhecido. Acerca deles, eu preferiria dizer que estão ligados muito mais a uma "ortopraxia" que a uma ortodoxia. Acho Sipierski faz essa reflexão. Eu os aproximaria, por exemplo, de Dom Helder, que mesmo sem nunca romper com as estruturas eclesiais, ficou para a memória muito mais por sua ortopraxia. Com tudo o que penso hoje, eu continuo sendo um simples pastor batista! Quanto à universalidade do cristianismo, aqui pensamos muito diferente, pois eu só acredito na universalidade do amor. O cristianismo é uma das concreções históricas disso. Jesus é uma metáfora maravilhosa da encarnação desse amor, mas que encontra em outros cantos outras possibilidades de acontecimento. Nós não nos sentimos parte de uma teia discursiva opressora, porque sustentamos uma visão muito individualizante das ações sociais. Homofóbico, por exemplo, é apenas aquele sujeito que esquarteja um gay. Todavia, de fato eu não consigo desvincular essa ação de uma série de discursos desqualificadores que, para mim, estão na sua base. Tais discursos não vêm unicamente da religião, mas também de outras vozes sociais, algumas até científicas. Acredito que os discursos desqualificadores da homoafetividade funcionam como "amoladores" das facas que no final do processo secciona esses corpos. Talvez a gente não esteja no fim desse processo, mas fazemos parte dele, ocupando algum lugar nesse circuito. Essa não é uma discussão moral, mas epistemológica, ligada a uma teoria do discurso que reconheço pertencer à certa tendência dentro das ciências da linguagem.
Bom, vamos conversando!
Abraços !!!

Pr. Petronio Borges Jr disse...

Meu nobre, na verdade sinto-me desengonçado tanto para o tênis quanto para o frescobol. Conversar com você me transporta aos tempos de Seminário, posso ouvir as gargalhadas, as discussões dos corredores, as pesquisas. A admiração continua a mesma. Muito grato pelo texto mais uma vez.
Forte abraço.
Petronio.

João Gabriel disse...

Salve grande Paulo!!"Pastor" como chamavamos na UESC no curso de Filosofia, partiu e ficamos orfãos dessa presença iluminada, uma das mentes mais brilhantes com a qual tive a honra de conviver, mesmo que por pouco tempo.Como está colega, lembra de mim? João Gabriel, seu ex-colega de Filosofia? Você é uma grande inspiração, te encontrei por aqui e voltarei a berber nesta fonte de luz que é sua mente, fique com Deus!Bom demais saber noticias suas!Abço!

Paulo Nascimento disse...

Grande Gabriel!

Claro que lembro de você, meu brother! Você conseguiu concluir o curso? Por onde andas? Agradeço muito pelas palavras elogiosas. Espero que você esteja bem, e que possa continuar acompanhando nosso blog. Grande abraço pra ti, e muita paz !!!

Paulo

João Gabriel disse...

È bom saber que você lembra de mim rpz! Você não sabe a falta que fez naquele curso, passamos por alguns bocados ali na UESC, infelizmente nem todos concluíram, e por incrível que pareça eu fui um dos poucos, Reinaldo ta terminando o curso de Direito na UESC mesmo, Suzi concluiu, passou no concurso pra professora do Estado, Salomão e Wagner viraram “Tiras”, você deve saber disso, rsrs, Luciano teve um embrolho com a universidade, acho que nem conseguiu concluir, Cara de Peixe plagiou a monografia e também se deu mal,os primeiros a concluir foram Suzi, João Paulo, Jôsi, Karine, eu fui um dos últimos, e por incrível que pareça, também passei no concurso do Estado, sou professor de Filosofia na rede estadual e particular em Itabuna, e to fazendo faculdade de Jornalismo também, sabe como é, né, tava sem nada pra fazer à noite...rsrs
Espero que você esteja bem, aprendi muito no pouco tempo que convivemos, desejo toda felicidade do mundo pra você, fica com Deus!

Paulo Nascimento disse...

Muito legal!
Eu estou em Maceió-AL, já por seis anos, pastoreando e estudando. Aqui fiz Psicologia na Universidade Federal, de 2007 a 2011. Agora tô no mestrado em Psicologia Social.
Grande abraço, brother !!!