segunda-feira, 30 de março de 2015

HOLOCAUSTO BRASILEIRO - Resenha

Para a maior parte das pessoas interessadas em Ciência, um livro vale pelo seu potencial de aproximação da Verdade. Mesmo que a ideia de Verdade, em Ciência, tenha sido profundamente questionada pelas perspectivas pós-modernas como um produto de lutas pelo poder – “a verdade é deste mundo”, dizia Foucault –, Ciência e Verdade continuam formando um binômio forte. Para Karl Popper, por exemplo, não é outro o ideal da Ciência, senão o de nos aproximar sempre mais da verdade acerca das coisas. A tarefa é eterna, sem dúvida.
No meu caso, estou numa fase da vida em que um livro vale não necessariamente pelo seu potencial de aproximação da Verdade, mas pelo seu potencial de fissurar o mundo! Era Foucault também quem dizia que o pensamento serve para rachar as coisas. Trata-se de uma metáfora, obviamente. Rachar as coisas com o pensamento é desnaturalizar aquilo que, muitas vezes em nome da Verdade, foi postulado como normal, natural, essencial, imutável, ahistórico, estrutural. Rachar as coisas com o pensamento é reconstruir o roteiro histórico onde os conceitos foram forjados. Fissurar o mundo com o pensamento é denunciar os jogos de poder pelos quais a Verdade chegou ao seu trono.
Em adição a isso, minha fase também é aquela em que um livro vale muito mais pelo seu potencial estético. É necessário ser prazeroso, ser leve, ser direto, e, sem exigir demais, ter um quê de beleza e sensibilidade. Há coisas assim na Ciência! Já na cultura acadêmica e universitária... Bem, na Universidade escrevemos para os pares e para pontuar no Lattes. E todo mudo sabe que sem hermetismo não há salvação no mundo da produção científica universitária. Uma lástima e uma pena!
É por todas essas razões que eu tenho dito que o livro Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, foi uma das melhores experiências literárias que tive nos últimos meses.
Lançado em novembro de 2013, Holocausto brasileiro foi prêmio Jabuti – a maior condecoração literária no Brasil. Lançado pela Geração Editorial, são 255 páginas entre fotos e uma narrativa que prende como visgo de jaca dura. Li praticamente em dois fôlegos.
Daniela Arbex nos reconduz por uma página nefasta da história do Brasil, ligada à psiquiatria mineira, e especialmente ao hospital psiquiátrico Colônia, em Barbacena-MG. Ela nos conta como num lapso de 50 anos (1930-1980), 60 mil pessoas morreram no interior do Colônia. Daí a alusão a um holocausto.
Contudo, mais do que o escândalo de um número tão grande de mortes, era o modo como os pacientes eram ali tratados que justifica a referência a um holocausto. O sequestro da identidade, a submissão a tratamentos científicos arcaicos e letais (como a eletroconvulsoterapia), a exploração do trabalho forçado e gratuito, e a exposição às mais degradantes condições sanitárias e alimentares fizeram do Colônia a reprodução de Auschwitz em solo brasileiro. No auge da matança, eram 16 óbitos a cada dia. Uma parte desses cadáveres alimentava as Faculdades de Medicina da região. Com o excesso de cadáveres, os corpos eram dissolvidos em ácido no pátio central do hospício, à vista dos pacientes, para que os esqueletos pudessem ser comercializados junto às mesmas instituições acadêmicas.
A força dessas denúncias, entretanto, não é maior que a beleza das narrativas de superação de pacientes do Colônia, presentes no livro. Talvez a grande proeza do trabalho de Daniela Arbex tenha consistido em dar a palavra aos protagonistas dessa história horrível. Todo o livro é composto pela voz dessas pessoas que um dia tiveram suas vidas alijadas em nome de certas convicções científicas, terapêuticas, e em nome de uma certa visão de sociedade. Segundo a autora, mais da metade dos pacientes do Colônia não tinha diagnóstico psiquiátrico. Eram simplesmente pessoas excêntricas: meninas que engravidaram antes de casar, bêbados contumazes, esposas rejeitadas para o que os maridos pudessem usufruir de suas amantes, homossexuais, ou simplesmente alguém com uma tristeza profunda. Incrível imaginar que algumas dessas pessoas passaram a vida inteira no hospício por essas razões.
Em Holocausto brasileiro algumas delas falam. Contam sua história. Reinventam sua identidade. Falam também funcionários do Colônia: médicos psiquiatras e funcionários encarregados das tarefas diárias. Falam especialmente funcionários indignados, e que antes do movimento de Reforma Psiquiátrica tentaram resistir a uma estrutura de poder arcaica e desumanizante. Falam aqueles e aquelas que, de algum modo, tentaram enfrentar a estrutura de dentro dela, seja com ações minúsculas e capilares (micropolítica), seja no âmbito maior da política institucional (macropolítica).
Por razões óbvias, o livro interessa bastante às pessoas envolvidas com a Saúde Pública e àquelas que se ocupam do “campo psi”. Para nós, ocupados com esse campo, o livro reedita a seu modo uma pergunta suscitada pelo Conselho Federal de Psicologia, no contexto da epidemia das internações compulsórias no Brasil: “que práticas estamos endossando em nome do cuidado que queremos exercer?” Mas minha convicção é de que o livro tem uma pertinência muito maior. Como afirma a Eliane Brum no prefácio, atrocidades como a do Colônia, levadas a cabo por tanto tempo, não são possíveis sem certo consentimento social. Isso serve para todas as violações de direitos humanos!
Indico a leitura de Holocausto brasileiro com entusiasmo. Ele nos faz pensar que a loucura dos normais é muito mais perigosa e nefasta que a loucura dos loucos.
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ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013, 255p.

Um comentário:

Gilliane disse...

Peço a gentileza de nos presentear com Nise da Silveira. Nao esqueci!
Abraço fraterno