segunda-feira, 21 de novembro de 2011

CONFISSÕES DE UM PREGADOR


“Se anuncio o Evangelho, não tenho de que me gloriar, pois pesa sobre mim essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16)

Eu sou um pregador do Evangelho do Jesus Cristo.
Das coisas que venho fazendo na vida, esta talvez seja a que me dê maior prazer. Hoje, penso em pregar esse Evangelho até o fim de minha vida. Não tenho certeza se terminarei meus dias vivendo do Evangelho. Mas quero terminá-los pregando-o. Já mudei de idéia, na fé, incontáveis vezes. Sempre quis ter a cabeça aberta às mudanças. Mas nunca mudei minha autopercepção como um pregador. Já preguei em todo tipo de congregação: nas pentecostais e nas tradicionais; nas ricas e nas pobres; na cidade e na zona rural; nas capitais e nas cidades do interior; em templos e em casas; em praças e em cima de trios elétricos; em todo tipo de lugar e para todo tipo de público.
Contudo, se nossa percepção da fé, do mundo, das pessoas, da vida, de nós mesmos, vai mudando – amadurecendo, penso eu –, o conteúdo de nossa pregação também vai. Já disse muita coisa nos púlpitos por onde passei que não diria hoje. Já privilegiei temas que não privilegiaria agora. Já interpretei passagens da Bíblia de uma forma que não repetiria atualmente. Quando eu era menino, pensava como menino, sentia como menino e pregava como menino. Não posso me arrepender de nada do que disse, porque quando reconhecemos que o que dissemos foi produto de uma época pregressa de menos amadurecimento, então o que dissemos não pode ser visto como equívoco. Talvez mais à frente eu questione essas palavras que agora escrevo, considerando-as como fruto deste tempo em que vivo e da minha compreensão atual do que é a fé.
Por isso, escrevo esse texto para possíveis pessoas que, porventura, pensem em me convidar hoje como pregador do Evangelho. É bem verdade que nunca deveríamos convidar um pregador baseado em nossas próprias expectativas. Mas a idéia é a de evitar constrangimentos e desapontamentos desnecessários.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em primeiro lugar, que gosto de pregar mais sobre a fé deJesus do que sobre a fé em Jesus. Talvez você não veja tanta diferença entre as simples preposições de em. Saiba que para mim essas preposições fazem toda a diferença, e que, em minha opinião, a fé de Jesus é muito diferente da forma como a maioria das pessoas crê em Jesus. A fé de Jesus é fé no Pai (Abba) que é Nosso, ao tempo em que a féem Jesus quase sempre é a fé em um Pai que é Meu, de Minha Igreja. A fé de Jesus é fé também nas pessoas, algumas delas consideradas impuras, hereges e distantes de Deus, ao tempo em que a fé em Jesus quase nunca é fé nas pessoas, além de ser motivo para demonização, perseguição e exclusão de pessoas que pensam e vivem de modo diferente do nosso. A fé de Jesus é uma força que leva ao serviço, ao posicionamento explícito do lado dos oprimidos, e ao risco do confronto com os opressores desse mundo. Já a fé em Jesus quase sempre leva ao quietismo, à salvação da alma individual, e atualmente ao consumismo e à exaltação dos valores preconizados pelo Capitalismo.
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em segundo lugar, que gosto mais de pregar sobre problemas humanos, sobre dilemas coletivos como a pobreza, o racismo, a homofobia, a falta de segurança, a corrupção política, a inércia da sociedade, a exploração econômica e outros temas que dizem respeito à vida concreta das pessoas. Saiba que não privilegio hoje esses temas por mera sofisticação acadêmica ou vaidade intelectual. Privilegio atualmente esses temas porque os vejo, de alto a baixo, fervilharem na própria Bíblia. Saiba que em minha opinião, esse trabalho que os chamados “movimentos sociais” realizam hoje, é o mesmo trabalho que as igrejas declinaram de fazer ontem. Saiba que ao enfatizar essas coisas, me movo com a consciência de quem está querendo resgatar uma dimensão fundamental da fé cristã, testemunhada na Bíblia pelos profetas, por Jesus de Nazaré e pelas comunidades cristãs primitivas. Portanto, se você for me convidar como pregador hoje, fique certo de que não vou me fundamentar em Marx, Engels ou Che Guevara. Talvez eu possa vez por outra me aproximar deles no que convergirem com a minha percepção do Evangelho. Mas é de Isaías, Amós e Jesus de Nazaré, que meu discurso partirá certamente.   
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em terceiro lugar, que gosto de usar toda a amplitude do termo “salvação”. Gosto especialmente da forma como no Antigo Testamento se falava em salvação, isto é, como um evento de dimensões históricas que trazia de volta a paz, a harmonia e a alegria do povo em meio a situações de crise e de perigos para a existência das comunidades. Gosto especialmente da forma com que Jesus se dirigia às pessoas, depois de algum milagre, dizendo-lhes “a tua fé te salvou”, sem alusão a nenhum compromisso institucional. Gosto dessa salvação como o fim de um sofrimento físico, espiritual, psicológico e comunitário, como aquela que recebeu a mulher do fluxo de sangue. Gosto dessa salvação que é o resgate das potencialidades da vida, da possibilidade de voltar a viver como “gente comum”, no meio dos outros, sem olhares julgadores, com a autoestima elevada. Creio na salvação como “vida eterna” aqui e no porvir. Mas se você for me convidar como pregador hoje, saiba que não uso, já há algum tempo, a Idéia do Inferno como ameaça teológica e como meio de coação para a salvação eterna e para o ingresso na igreja.    
Se você for me convidar como pregador hoje, saiba, em quarto lugar, que gosto de ler a Bíblia de forma muito livre, confiando no auxílio do Espírito Santo, com meu espírito aberto à voz de Deus, usando ferramentas científicas que me ajudam na tarefa hermenêutica, e tendo a Jesus como “princípio interpretativo”. Saiba que em lugar de ver na Bíblia um escrito psicografado por Deus através de certas pessoas, vejo nela um testemunho fantástico da caminhada do povo de Israel, produzido à luz de sua fé em Deus e das promessas messiânicas. Saiba que vejo na Bíblia um livro extraordinário, mas que pode ser tanto “palavra de Deus” quando lido e interpretado em função da vida, quanto “palavra do Diabo Humano” quando lido e interpretado para fundamentar violências simbólicas, exclusões e perseguições de toda sorte. Saiba que considero algumas porções do texto Bíblico como frutos da História, sem vigência atual, totalmente ultrapassadas, vencidas pela compreensão trazida por Jesus de Nazaré, que considero como Ponto de Plenitude da Verdade. Fique sabendo que Jesus é meu “princípio interpretativo”, e que considero “palavra de Deus”, na Bíblia, tudo aquilo que converge com o ensino de Jesus sobre as coisas da fé. Saiba que para mim, a Bíblia oferece as melhores dicas para o tipo de convivência humana sonhada por todos os povos – sendo assim Palavra de Deus.
Por último, se você for me convidar como pregador hoje, saiba que gosto de pregar sobre um Deus incompreensível e incognoscível para qualquer fé e qualquer teologia, que ama incondicionalmente tudo aquilo que criou. Saiba que me esforço para permanecer fiel ao maior legado que o Protestantismo Antigo nos trouxe, e que os novos protestantismos esqueceram: a fé na Graça de Deus. Saiba que creio na Graça como um presente dado ao universo inteiro. Como dom de toda existência, e como oceano no qual está mergulhado o próprio Ser. Fique sabendo que não creio na Igreja como “mediadora exclusiva dessa Graça”, mas creio nela como lugar potencial de acolhimento da Graça, e como comunidade onde a fraternidade e a esperança podem ser muito bem orientadas. Saiba que considero a dogma Extra Ekklesia nula sallus – fora da Igreja não há salvação – uma heresia, uma declaração de absoluta arrogância, e uma tolice total. Saiba que creio em um Deus que ri de certas convicções dogmáticas, e que, por conta dessa Graça, guarda grandes surpresas para aqueles que vivem seguros em si mesmos acerca de sua condição espiritual no mundo.
É assim que prego o Evangelho hoje. Prego como forma de gratidão pelo que o próprio Evangelho fez em mim. Como disse Paulo de Tarso, prego como forma de “constrangimento existencial”, porque “ai de mim se não pregar o Evangelho” (1Co 9,16). Talvez depois destas confissões me sobre pouco espaço para pregar nas igrejas. O que pouca gente sabe é que os cristãos, historicamente, começaram a se confinar em templos religiosos já na fase de “constantinização” de sua fé. O próprio Jesus tinha nas sinagogas e no Templo apenas mais dois espaços, entre outros tantos, para sua pregação. Na maior parte do tempo sua pregação se dava mesmo era nas ruas, nas casas, nos espaços públicos, e em qualquer outro ambiente onde pessoas quisessem lhe ouvir. Eu também trabalho para fazer do mundo o meu púlpito, onde pregar possa ser mais do que falar,  sobretudo viver.
Amem. 

domingo, 20 de novembro de 2011

TIRAR DA CRUZ OS POVOS NEGROS

Olá pessoal!


No dia 20/11/2011, Dia da Consciência Negra, eu preguei uma mensagem visando mostrar porque temas como esse deveriam fazer parte do ensino cotidiano das igrejas cristãs. Usando a imagem de Simão Cirineu (Mt 27,32/Mc 15,21/Lc 23,26), um negro obrigado a carregar a cruz de Jesus, eu desafiava aos presentes a contribuir para tirar a cruz dos negros em nossos dias. Mensagem intitulada "Tirar da cruz os povos negros"pregada no culto vespertino da IBP.


Para assisti-la, CLIQUE AQUI!


Abraços fraternos!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

TRIBUTO A JOSÉ COMBLIN

Olá irmãos e irmãs!


No dia 27 de março desse ano a teologia latino-americana perdeu um de seus mais criativos representantes: o Pe. José Comblin. Nascido na Bélgica em 1923, mas radicado no Brasil desde 1957, Pe. Comblin é considerado uma das mentes mais lúcidas dentre aquele círculo de teólogos identificados com a Teologia da Libertação. 


Para nosso último encontro da FTL-AL em 2011, decidimos prestar um tributo a um dos teólogos que mais honraram o tema da "opção preferencial pelos pobres". Neste encontro, o Pr. Paulo César Pereira (Igreja Batista nos Bultrins, Olinda-PE) nos trará uma comunicação baseada em seu trabalho de mestrado (aprovado com distinção na Universidade Católica de Pernambuco) sobre a teologia pastoral de Comblin. Os detalhes seguem abaixo.


TEMA: "Pastoral urbana: uma abordagem a partir do teólogo Joseph Comblin"
ORADOR: Pr. Paulo César Pereira (Olinda-PE)
LOCAL: Igreja Batista do Pinheiro (Maceió-AL)
DIA/HORA: 03 de dezembro, às 9:00h
INVESTIMENTO: R$ 5,00
REALIZAÇÃO: FTL-AL, IBP e Aliança de Batistas do Brasil

*Haverá um café regional servido aos presentes. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A MESA DE DEUS

Olá todos e todas!


Segue a mensagem pregada por mim no culto da EBD do dia 06/11/2011. Baseado no primeiro capítulo do livro de Daniel, meditei no tema "A mesa de Deus". Usando a metáfora de uma mesa farta, eu desafiava os presentes a resistir aos "manjares do rei", e a fartarem-se do alimento simples que Deus oferece. No fim das contas, são os alimentos simples, oferecidos na "mesa de Deus", que nos sustentam em nossas crises e intempéries na vida. Espero que a mensagem seja proveitosa a todos e todas!


Para assistir à mensagem, CLIQUE AQUI!


Abraços fraternos! 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

RESENHA DE “CINCO MENTES PARA O FUTURO”


GARDNER, Howard. Cinco mentes para o futuro. Tradução de Roberto Cataldo Costa, Porto Alegre: Artmed, 2007, 159p.
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Me surpreendi com a leitura de Cinco mentes para o futuro, do psicólogo norte-americano Howard Gardner. Certamente isso se deve à expectativa em torno dessa leitura, ligada ao trabalho pregresso de Gardner.
Howard Gardner é um prestigiado psicólogo cognitivista, que se tornou mundialmente conhecido por conta da Teoria das Inteligências Múltiplas[1]. As definições da inteligência humana quase sempre estiveram circunscritas ora ao raciocínio lógico-matemático, ora à capacidade de resolução de problemas e processamento de informações, quando não à mera capacidade mnemônica. O próprio conhecimento psicológico ajudou a popularizar esses reducionismos por meio dos famosos testes de quociente de inteligência (QI). Inteligência, nesses termos, se resume às capacidades cognitivas ligadas às operações de raciocínio lógico-abstrato e formal, altamente valorizados pela cultura ocidental.  
Com a Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner propõe elevar ao status de inteligência algumas capacidades humanas antes descritas apenas como “habilidades” ou “talentos”. Dessa forma, as capacidades sinestésico-corporais, as habilidades musicais e linguísticas, as habilidades espaciais, interpessoais e intrapessoais, e também as habilidades lógico-matemáticas, são elevadas ao status de inteligências. Há grande profusão de publicações entre livros e artigos, do próprio Gardner e de seus colaboradores, destinados à difusão da Teoria das Inteligências Múltiplas. Por motivos óbvios, Gardner tornou-se um teórico de interesse para diversos campos acadêmicos, sobretudo para a pedagogia. No Brasil, no campo dos estudos pedagógicos, Celso Antunes tem sido o maior difusor dessa teoria[2] 
Em minha opinião, a novidade de Cinco mentes para o futuro consiste no fato de se tratar de livro de opiniões, distinguindo-se do estilo anterior de Gardner, balizado por um amplo aparato empírico e heurístico. Platão compreendia a tarefa da filosofia como o movimento da doxa (doxa = opiniãopara a episteme (epistémé =conhecimento). Gardner, com Cinco mentes para o futuro, parece ter feito o caminho inverso.
Gardner tem em mente as demandas culturais do futuro – principalmente aquelas do universo da educação e do trabalho –, e seu livro consiste numa espécie de bússola para os cidadãos que estiverem dispostos a ter um lugar nesse futuro. Aqui já aparecem, a meu ver, alguns pontos passíveis de crítica nesta obra. Gardner não chega a problematizar os arranjos culturais, políticos e econômicos aos quais se refere. Toma-os como realidades objetivas com as quais os sujeitos devem adaptar-se. Portanto, o livro é marcado por uma postura profundamente acrítica, e por vezes propagandística em relação às configurações de mercado. Sua preocupação é oferecer pistas de sobrevivência a um arranjo cultural, notoriamente identificado com o american way of life.
Em sua prescrição, cinco tipos de mentes estarão mais aptas à sobrevivência nos arranjos culturais do futuro: a mente disciplinada, a mente sintetizadora, a mente criadora, a mente respeitosa e a mente ética. Em nosso entender, o que Gardner descreve como “tipos de mente”, deveria ser descrito como “habilidades mentais”. É bem verdade que dificilmente um indivíduo consegue desenvolver todas as habilidades mentais aqui listadas. Há aqueles que se especializam em uma ou em outra, e aqueles que conseguem ter certo domínio de mais de uma dessas habilidades. Mas não estamos certos de que as aptidões cognitivas de um indivíduo possam ser reduzidas a uma dessas habilidades mentais, de tal maneira que se configure como um “tipo de mente”. Assim, em lugar de falar em um indivíduo com uma “mente sintetizadora”, por exemplo, preferimos falar em indivíduos com grandes potenciais de sínteses, entre outras habilidades mentais.
Para Gardner, a mente disciplinada é aquela marcada pela capacidade de empregar as formas de pensamento associadas a importantes disciplinas acadêmicas (história, matemática, ciências, arte, etc.) e importantes profissões (direito, medicina, gestão, finanças etc., bem como ocupações e ofícios), além de ser capaz de se aplicar de forma diligente, melhorando permanentemente e continuando além da educação formal.
mente sintetizadora seria aquela capaz de escolher as informações cruciais entre a enorme quantidade disponível, e de organizar essa informação de maneira que façam sentido a si e aos outros.
mente criadora seria aquela capaz de ir além do conhecimento e das sínteses existentes para propor novas questões, oferecer novas soluções, realizar trabalhos que levem mais longe gêneros atuais ou configurem novos, sendo que a criação parte de uma ou de mais disciplinas estabelecidas e requer um “campo” informado para fazer julgamentos de qualidade e aceitabilidade.
mente respeitosa seria aquela capaz de buscar responder de forma simpática e construtiva a diferenças entre indivíduos e grupos, buscar entender e trabalhar com aqueles que são diferentes, e ir além da mera tolerância e da atitude politicamente correta.
mente ética seria aquela capaz de abstrair características cruciais de seu papel no trabalho e como cidadão e agir de forma coerente com essas conceituações, além de esforçar-se para realizar bom trabalho e boa cidadania.
Gardner disserta sobre cada uma dessas mentes buscando fazê-lo a partir dos contextos educacional e do trabalho. É daí, majoritariamente, que surgem seus exemplos, e é para as demandas futuras da educação e do trabalho que suas prescrições são direcionadas. Como bom cognitivista, há também uma preocupação com a periodização do surgimento e do desenvolvimento de cada uma dessas mentes, sendo que a maioria dos atributos relacionados com cada uma delas surge, para Gardner, na infância, tendo forte ligação com os estímulos da educação formal. Gardner também faz questão de apresentar as possíveis “pseudo-formas” para cada uma dessas mentes. Por exemplo, a atitude de mera tolerância frente à diversidade, conforme Gardner, pode se constituir como uma pseudo-forma da mente respeitosa.
A despeito das críticas aqui apresentadas, eu recomendaria Cinco mentes para o futuro, sobretudo àquele público que agora inicia a trajetória intelectual. Como disse antes, os tipos de mentes aqui tratadas devem ser encaradas como “habilidades mentais” a serem cultivadas por qualquer pessoa. O cultivo dessas habilidades pode ser extremamente útil para aqueles(as) que desejam se enveredar na atividade intelectual (que não é sinônimo de carreira acadêmica). No entanto, eu ressaltaria mais uma vez o risco de se discutir epistemologia sem discutir política, como vem sinalizando o trabalho de Bruno Latour[3]. A ciência não pode ser vista como uma atividade politicamente neutra. Neste caso, em lugar de recomendar “cinco mentes” que se adéqüem ao futuro, eu preferiria recomendar “cinco mentes que problematizem o futuro”.


[1] Cf do autor: GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. São Paulo: Artmed, 1996; Inteligências múltiplas: a teoria na prática. São Paulo: Artmed, 2000; Inteligência: múltiplas perspectivas. São Paulo: Artmed, 2001; Inteligência: um conceito reformulado. São Paulo: Artmed, 1998.
[2] Veja ANTUNES, Celso. As inteligências múltiplas e seus desafios. Campinas: Papirus, 2002; Jogos para a estimulação das inteligências múltiplas. Petrópolis: Vozes, 1999.
[3] Cf. LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MARCOS MONTEIRO: UM PESCADOR DE HUMANIDADE

Inspirado no artigo do Pr. Edvar Gimenez, e movido pela passagem do sexagésimo aniversário do Pr. Marcos Monteiro ocorrido no último dia 12 de outubro, publico meu texto-homenagem dedicado a uma das figuras de maior impacto na minha vida.

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MARCOS MONTEIRO: UM PESCADOR DE HUMANIDADE
Conheci Marcos Monteiro no ano de 2001, um ano antes da conclusão do curso teológico no STBNe, em Feira de Santana. Naquele ano, ela havia trabalhado com a disciplina Exegese do Novo Testamento, e havia também formado um grupo de estudos que se reunia todas as segundas-feiras em sua própria casa, no campus do seminário. Nós, que estudávamos no turno matutino – nessa época o STBNe ainda oferecia turmas nos turnos matutino e noturno –, não tínhamos aulas nas segundas-feiras. No entanto, o fascínio imediato que a pessoa de Marcos me provocou, fazia com que eu me deslocasse de Muritiba para Feira de Santana todas as segundas-feiras, a fim de participar das atividades do grupo de estudos.
Àquela altura, pelo menos para mim, o contato com alguns professores do STBNe já havia produzido mudanças profundas na maneira de enxergar a fé cristã e a missão das igrejas na sociedade. Não se tratava apenas de uma teologia interessada em derrubar mitos e questionar convicções alheias. Mas de uma teologia com sabor de vida, interessada nas questões mais urgentes que concerniam à vida concreta das pessoas. Marcos aprofundou essa orientação não apenas com o poder da grande erudição que detém, mas com um estilo de vida simples que nos constrangia e nos inspirava. Sob esse impacto feito à base de carisma, simplicidade e erudição, não tive dúvidas sobre quem escolher como orientador dos estudos monográficos. Os temas da Psicologia já me interessavam a essa época, e em meio a muitas dúvidas e indefinições, Marcos me ajudou a dar corpo a um antigo trabalho sobre o tema da religião na obra de Freud. Lembro-me dos encontros de sexta-feira dedicados à orientação, e de como ele me disponibilizava um bom número de livros de sua biblioteca particular.
Também não posso deixar de mencionar todo o fomento oferecido a mim por Marcos, para que eu prosseguisse nos estudos acadêmicos depois da graduação em Teologia. Na época, o STBNe tentava dar corpo a um projeto de Mestrado em Teologia, e Marcos chegou a me subsidiar com uma parte do seu salário para que eu pudesse realizar o desejo de me dedicar a níveis mais profundos do universo acadêmico, no campo dos estudos teológicos. Um pouco depois, Marcos chegou mesmo a me indicar como candidato a uma bolsa de estudos em Princeton (EUA), algo de que nunca esqueci. Recentemente quis que eu me tornasse presidente da FTL-B (meu Deus, que loucura!), e vez por outra, ainda vive me instigando a publicar as coisas que escrevo. Por todas essas razões, minha formação deve em muito a Marcos, pelo que sou imensamente grato.
Não obstante, Marcos só conheceu Patrícia pessoalmente no ano de 2004, durante um dos encontros regionais da FTL, em Paripueira-AL. Esse encontro, por sinal, foi decisivo para um importante projeto que nos aguardava no futuro. Quem conhece Marcos sabe que ele é um exímio construtor de pontes entre as pessoas. E naquele encontro, Marcos apresentaria a mim e à Patrícia a Wellington Santos e Odja Barros, o que resultaria em uma parceria ministerial alguns anos depois, na Igreja Batista do Pinheiro, em Maceió. Não por acaso, ele acabaria sendo o orador em nosso culto de posse na Igreja Batista do Pinheiro. Em seu sermão baseado em Mc 5,1-11, nos convidava, a mim e a Patrícia, a sermos “pescadores de humanidade”, tanto naquela comunidade de fé, assim como em toda Maceió, em Alagoas, e onde mais nossa influência pudesse alcançar.
Não foram muitos os momentos em que eu e Patrícia pudemos desfrutar da presença de Marcos em nossa casa. Nossos encontros quase sempre aconteceram e acontecem nos ambientes acadêmicos e eclesiais aos quais estamos ligados. Mas a presença de Marcos sempre nos provocou fascínio, e, porque não dizer, um certo mutismo. Mais do que a complexidade de seu pensamento – e que se entenda complexidade no sentido de Morin, a quem Marcos estima –, é o impacto de sua figura despida das pompas hierárquicas de nosso imaginário pastoral que emudece. Mais do que o prestígio que lhe vem dos livros e artigos acadêmicos que escreveu, é o peso de sua biografia e de suas opções que emudecem. A sensação que temos é a de que Marcos se parece com Jesus de Nazaré, e que o Jesus Histórico deve ter sido assim como ele. E é exatamente isso que emudece. Afinal, em meio ao frenesi religioso de nossos dias, não são muitas as pessoas que nos provocam essa sensação.
A única coisa que eu e Patrícia ainda não lhe perdoamos são os roncos! No final de 2009, tive o privilégio de dividir o púlpito do Acampamento da Família da Igreja Batista do Pinheiro com Marcos. Ficamos hospedados no mesmo chalé: eu, Patrícia e Marcos, separados por uma divisória que nos dava alguma privacidade, mas nenhum isolamento acústico. Eram tão altos os seus roncos que tornavam impossível um segundo de sono. O próprio Marcos, por sua iniciativa, deixou-nos sós, e armou sua rede do lado de fora do chalé, a fim de que pudéssemos dormir tranqüilos.
Brincadeiras à parte, eu e Patrícia somos imensamente gratos à vida por conhecermos Marcos Monteiro. É uma alegria imensa para nós participar desta homenagem nos seus sessenta anos. Muito particularmente, a vida de Marcos para mim é uma fonte de inspiração no que diz respeito ao desafio de depositar fé nas pessoas em quem acreditamos. Falamos muito da fé em Deus, e de todo bem que ela pode fazer à vida das pessoas. Mas falamos pouco dessa capacidade que algumas pessoas têm de manifestar sua “fé no outro”. Sei que esta pode ser uma expressão meio esquisita para um fideísmo atento a palavras heréticas. Mas eu sou uma das muitas pessoas em quem Marcos tem tido fé. Porque é fácil ter fé em Deus, em quem (cremos!) não há imperfeições. Difícil mesmo é ter fé nas pessoas, com suas ambivalências e ambigüidades. Talvez tenha sido por isso que Marcos exortava a mim à Patrícia a fazermos de nossa caminhada pastoral um exercício de pescaria de humanidade: porque é justamente isso que ele mesmo vem fazendo a vida toda, sobretudo no nordeste do Brasil.
Parabéns Marcos, pelos sessenta anos de idade. Você é um presente de Deus e da vida, para mim e para Patrícia.
Paulo & Patrícia Nascimento
Maceió, 18 de agosto de 2011

sábado, 15 de outubro de 2011

POR QUE "ÓPIO COISA NENHUMA"


Sobre o potencial ambivalente da experiência religiosa

Quando eu resolvi produzir meu blogue, há três anos, uma grande amiga achou o título Ópio Coisa Nenhumahorrível. Num papo confidencial, ela me dizia que o nome era estranho, foneticamente deselegante, e espiritualmente esquisito. O blogue de um pastor, dizia ela, deveria ter um nome mais espiritual, mais suave, mais bíblico. Quando submeti meu livro, com o mesmo título, ao conselho editorial da EDUFAL, o(a) parecerista me recomendou que o mudasse. O título havia sido considerado confuso, editorialmente não recomendado e mercadologicamente fraco. O livro foi aprovado para a publicação com o título Religião e compromisso social (no prelo).
Para mim, era óbvio que o título Ópio Coisa Nenhuma seria automaticamente compreendido pelas pessoas. Eu pensava que todo mundo veria nele uma explícita referência ao aforismo de Marx “a religião é o ópio do povo...”. Todo mundo vai notar que Ópio Coisa Nenhuma é uma negação e uma afronta a esse aforismo, assim eu pensava. E a história que se seguiu foi a de inúmeros esforços para ter que justificar o porquê desse título.
Eu vislumbrei desde muito cedo minha vocação como teólogo. Lembro-me de enfrentar meu examinador do concílio com a estranha vontade de ser pastor-teólogo. E uma de minhas ênfases enquanto teólogo tem sido a de reforçar o potencial positivo da experiência religiosa. Já há muita gente interessada no potencial negativo da religião, dentro e fora das igrejas. Mas eu tinha razões muito fortes e pessoais para assumir outra postura.  
A primeira delas diz respeito à minha própria experiência com a religião. Eu também tive uma fase inicial de fundamentalismo e êxtase irracional. Já me entreguei aos devaneios carismáticos que vivem da negação do mundo e da demonização dos prazeres da vida. Mas essa fase não durou muito, embora tenha sido bastante necessária. No geral, foi com a experiência religiosa que tive a experiência de encantamento do mundo. Aprendi o valor das pessoas, descobri potencialidades latentes em mim mesmo, e venci uma série de dificuldades pessoais que por muito tempo eu havia experimentado como travas existenciais. Quando o efeito do ópio fundamentalista acabou, uma fé madura me encheu de paixão pela vida, e uma vontade de lutar por um mundo melhor tornou-se o mote principal de minha existência. Devo tudo isso à minha experiência religiosa.
Em segundo lugar, uma das razões para reforçar o potencial positivo da experiência religiosa havia sido a descoberta de algumas biografias magníficas. Eu havia descoberto um número significativo de pessoas para quem a experiência religiosa não poderia ser chamada de ópio. Nos livros, eu ia me dando conta de que a experiência religiosa estava na base da ação de grupos e de pessoas fantásticas, amplamente celebradas mundo afora.
A religião da comunidade primitiva de Atos 2,42-47 e 4,32-37, que partilhava todos os bens a fim de que ninguém tivesse necessidade, não podia ser chamada de ópio. O episcopado libertador de Basílio de Cesaréia (329-379) não podia ser chamado de ópio. As reivindicações sociais dos camponeses anabatistas do século XVI, liderados pelo espiritualismo de Thomas Müntzer (1490-1525), não podiam ser chamadas de ópio do povo. A abnegação dos irmãos moravianos, que se vendiam como escravos para evangelizar as colônias européias, não podia ser chamada de ópio do povo. Muito menos a sensibilidade de John Wesley (1703-1791) frente aos trabalhadores ingleses que começavam a ser vitimados pelos efeitos da Revolução Industrial, e o evangelho social de Walter Rauschenbusch (1861-1918) na virada para o século XX.
Eu ia descobrindo nos livros que a América Latina era um caldeirão fervilhando com um tipo de religião que não podia ser adjetivada de ópio do povo. Entre evangélicos e católicos, havia indivíduos e grupos que deveriam ser tratados diferentemente. Como chamar de ópio do povo a religião de Richard Shaull, de Paulo Wright, Rubem Alves e Paulo Evaristo Arns? Como chamar de ópio do povo a religião daqueles que escreveram o Manifesto da Ordem dos Pastores Batistas de 1963? Como chamar de ópio do povo à religião dos que organizaram a Conferência do Nordeste, em 1962, com o tema Cristo e o processo revolucionário brasileiro? Como chamar de ópio do povo às Comunidades Eclesiais de Base e à Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, José Comblin e Leonardo Boff? Nos livros, eu ia me dando conta de um tipo de experiência religiosa que não aparecia na crítica dos professores universitários.  
Em terceiro lugar, minha ênfase enquanto teólogo no potencial positivo da experiência religiosa se reafirmava na medida em que eu ia conhecendo gente de carne e osso, cuja experiência religiosa não poderia ser adjetivada como ópio. Com o tempo, fui me acercando de pastores e pastoras, missionários e missionárias, teólogos e teólogas diferentes. Eu não poderia chamar a religião de Marcos Monteiro de ópio do povo, com sua opção pelos pobres e sua renúncia às pompas da atividade pastoral. Eu não podia chamar a religião de Wellington Santos e Odja Barros de ópio do povo, por conta de sua coragem na denúncia de realidades de opressão fundiária, política e de gênero. Eu não poderia chamar a religião de Adriano Trajano de ópio do povo, com sua abnegação por humanizar um torrão de Alagoas que pouca gente que saber, e por seu enfrentamento de certas oligarquias históricas que por lá se perpetuam. Enfim, eu estava totalmente convencido de que a religião de Waldir Martins, Raimundo César, Paulo César, Jardson Gregório, Reginaldo Silva, Claudio Márcio, Joel Zeferino, e tantos outros e outras que fui conhecendo durante a caminhada, não poderia ser chamada de ópio do povo.  
Mas não se engane: pessoas religiosamente virtuosas não são apenas aquelas capazes de grandes realizações no campo social. Há um número enorme de pessoas anônimas, sem diplomas, sem vínculos com movimentos e iniciativas sociais, membros de comunidades religiosas, que fui conhecendo em minha trajetória pastoral, cuja vida é encantadora. Ou, como diria Foucault, gente que [a partir da religião] “foi fazendo de suas vidas uma obra de arte”. Pessoas simples, algumas delas sem estudos formais, mas profundamente inspiradoras.
Citar nomes é um ofício que comporta uma única certeza: a de que cometeremos a injustiça de esquecer alguém. Mas ainda assim eu mencionaria o irmão Altino (Acupe-BA), pregador do Evangelho completamente iletrado, do alto dos seus 85 anos (quando o conheci há nove anos), e com uma vitalidade de dar inveja em gente de 18 anos. Gente como Dró (Eduvirgens – Barra do Rocha-BA), cuja alegria contagia a quem estiver perto, qualquer que seja a situação. Gente como o irmão Zeca (Utinga-AL), cuja simplicidade apaixonante nocauteia qualquer presunção. Gente como Alda Galdino (Forene – Rio Largo-AL), cuja sensibilidade e humanidade constrangem a muitos humanistas. Gente como Pêu (Forene – Rio Largo-AL), cuja bondade, inteligência e sede espiritual são fascinantes.
Isso não minimiza as coisas vergonhosas que certos religiosos praticaram e praticam mundo afora. Mas tais coisas devem nos fazer pensar que nenhuma religião é intrinsecamente má. Bom ou mau é o uso que as pessoas fazem de sua experiência religiosa.
Com a religião as pessoas podem aprender a discriminar os outros, mas foi com ela que eu mesmo aprendi a respeitar as diferenças humanas. As pessoas podem ser motivadas a matar em nome de sua fé, mas foi pela fé que eu mesmo aprendi que a vida é o nosso bem maior. Com a religião as pessoas podem aprender que esse mundo não tem jeito e a cruzarem os braços esperando o céu, mas foi com a religião que eu me convenci de que o mundo pode ser transformado agora mesmo. As pessoas podem aprender com a religião que a cultura humana e as coisas alegres que nela há são entes contra os quais temos que resistir, mas foi com a religião que eu aprendi que “tudo na criação de Deus é bom”, e que a vida deve ser protegida e aproveitada da melhor maneira possível.
Ópio do povo? Pode até ser aqui e ali.
Para mim? Coisa nenhuma!