domingo, 2 de agosto de 2009

O SANTO E O PROFANO NO CENTRO DA VIDA


Ambiguidade existencial e intensidade de fé na vida de Sansão


Há santidades tão necrófilas e mortificantes que cheiram a mais asquerosa profanidade. Há profanidades tão apaixonadas pela vida que exalam o aroma da mais bela santidade.

***

Ninguém pense que a Bíblia é uma coletânea onde figuram exclusivamente homens e mulheres santos. Não! A virtuosidade de um aqui, de outra acolá, está entre os seus temas. Mas muito diferentemente de nossa compreensão cristã, o profano também é na Bíblia um lugar da ação de Deus. Se a Bíblia consistisse numa coletânea estritamente dedicada a gente santa, Sansão jamais poderia figurar ali. Mas figura! Ao lado de José do Egito e de Moisés, de Samuel e de Daniel, de juízes virtuosos e de profetas destemidos, a Sansão o livro dos Juízes dedica quatro capítulos inteiros (Jz 13-16).

Sansão foi um mulherengo nato. Nos quatro capítulos a ele dedicados na Bíblia, relacionou-se com três mulheres. Casou-se com uma pagã filistéia a contragosto de seus pais (14,1-3). Numa passada por Gaza, usou os serviços de uma prostituta (16,1). Além disso, cedeu aos encantos mal-intencionados de outra filistéia – Dalila (16,4).

Também figurava entre daqueles que costumam resolver suas questões à base de muita agressividade e violência. Para de sanar uma dívida, matou trinta homens a fim de obter o produto a ser pago – trinta indumentárias de nobreza (14,19). Num único dia, assassinou a mil homens usando a queixada de um jumento. Ao fim dessa “legítima defesa”, no lugar de se penitenciar e suplicar por perdão diante de Deus, suplicou por água, a fim de saciar sua sede. E Deus o atendeu (15,14-20)!

Foi um péssimo marido. A impossibilidade de conviver com sua primeira esposa era tal que moveu o pai desta a instaurar um divórcio forçado entre jovem casal (15,1-2).

Sansão também tinha a vingança no fundo de sua alma. Movido pela ira advinda daquele divórcio forçado, matou trezentas raposas fazendo delas feixes com os quais ateou fogo às plantações dos filisteus, destruindo seus estoques de cereais e os seus olivais, tudo sob o alento da vingança (15,3-6). Tendo recebido a notícia de que tais fatos tiveram implicações trágicas para seu ex-sogro e sua ex-esposa, promoveu outra chacina a fim de se vingar dos pretensos assassinos destes (15,7-8).

A mentira parece ter sido outra de suas péssimas qualificações morais. Questionado três vezes por Dalila acerca da origem de sua força física incomum, Sansão lhe apresenta três razões mentirosas a fim de manter guardado seu segredo (16,5-14). Foi a impaciência extrema gerada pelas insistentes investidas de Dalila, e não o desejo de dizer a verdade, que coagiu Sansão a confessar-lhe a fonte de sua força sobre-humana (16,16-17).

O último dia da vida de Sansão foi marcado pelo vermelho do sangue dos filisteus. Seu canto do cisne consistiu no maior dos atos de violência de sua biografia. Assim, uma das últimas palavras do redator é esta: “E foram mais os que matou na sua morte do que os que matou na sua vida” (16,30).

Obviamente não temos aí nenhum bructa facta, isto é, não temos narração pura de fatos históricos. O que temos tanto na saga de Sansão quanto na de outras personagens bíblicas é a mescla inteligente de fatos históricos com muita teologização. História e estória. Conforme a compreensão do redator (e de sua tradição), alguns desses atos profanos de Sansão foram tranquilamente legitimados pelo próprio Espírito de Deus (cf. 13,25). Sua vitória no embate contra um filhote de leão é possível por conta do Espírito de Deus (14,6). O assassinato dos trinta homens a quem usurpou as indumentárias de nobreza também é vaticinado pelo Espírito de Deus (14,19). Semelhantemente o é a chacina dos mil homens (15,14). Por fim, a apoteose de sua agressividade no templo de Dagon é precedida por uma oração a Deus (16,28).

Numa correspondência da prisão Bonhoeffer dizia ao seu amigo Eberhard Bethge que não entendia a razão das coisas serem assim no Antigo Testamento:

“Por que, no Antigo Testamento, mente-se energicamente e muitas vezes para a honra de Deus (acabei de reunir as passagens); mata-se, engana-se, rouba-se, divorcia-se, até mesmo se pratica a prostituição (cf. a genealogia de Jesus), duvida-se, blasfema-se e amaldiçoa-se, enquanto no Novo Testamento tudo isso não existe? Estágio religioso “preliminar”? Isso é uma explicação muito ingênua, pois trata-se do único e mesmo Deus. Mas vamos falar mais disso oralmente!”

As questões que me surgem dessa narrativa, todavia, são de outra natureza: (1) Por que a narrativa de um sujeito com um currículo tão ambíguo foi lembrada e acrescentada à Bíblia? (2) O que a narrativa da vida profana de Sansão poderia contribuir para a fé dos homens e mulheres de Israel, seus primeiros leitores? (3) E a nós, homens e mulheres de hoje, o que essa mesma narrativa tão profana tem a ensinar?

Vou arriscar uma hipótese:

A narrativa acerca de Sansão nos fala de um homem que viveu com invejável intensidade, de acordo com a fé de seus dias. E embora essa palavra não apareça uma só vez ao longo da narrativa, “intensidade” é a expressão oculta em cada ato dessa tragédia. Talvez “intensidade de fé” fosse a necessidade dos primeiros receptores da narrativa.

Somente hoje podemos chamar de “defeitos morais” tudo aquilo que Sansão vivenciou. Mas nos seus dias, tudo aquilo era visto como meios legítimos da ação de Deus na história. Mentira, violência, vingança, naquela conjuntura, eram tidos como elementos legítimos, conquanto que a honra própria e a honra nacional fossem mantidas. Estaríamos falando de uma fé “imoral”? Penso que não. Afirmá-lo seria cometer o equívoco de julgar aquela cultura religiosa à luz de nossos valores religiosos atuais. O máximo a se dizer naquele caso é que se tratava de uma fé “transmoral”. Todos os elementos da vida, desde os mais ambíguos, são potencialmente pertencentes ao circuito da ação de Deus na história. E Sansão os capitalizou ao máximo. Está absolvido!

E se essa narrativa tem alguma coisa a nos comunicar hoje, é isto:

Qualquer que seja a nossa fé, a nossa ideologia, a nossa visão de mundo, o ideal é que existencializemos isso ao máximo que pudermos!

Quando se trata da fé evangélica – falo daquela fé que carrega a qualidade inconfundível do Evangelho de Jesus Cristo, não dos grupos que carregam a simples alcunha –, a narrativa deve ser lida como um convite à maximização de suas virtudes: o amor, o serviço, o louvor. Ninguém é constrangido a repetir ipsis literis os atos de Sansão. Quem se atreveria? Mas todos nós somos convidados a imitá-lo na intensidade com a qual vivenciou suas convicções. Gente assim dá motivos para ser lembrada depois da morte, a despeito de toda ambigüidade.

www.opiocoisanenhuma.blogspot.com

www.portaldavida.net

www.ibforene.com.br

Um comentário:

Jabes Nogueira Filho - pastor disse...

Querido Paulo,
Realmente a figura de Sansão é daquelas incômodas que encontramos ao longo da leitura bíblica - mas está lá!
Porém, além das ações e motivações que pautaram a vida daquele anti-herói, a presença da narrativa no texto sagrado força-nos a ter sempre em suspeição nossa tradição hermenêutica.
É claro que também podemos tomar como base a máxima de que "ainda bem que Deus e melhor que a gente" - esta frase tenho usado sistematicamente para buscar entender a ação divina na história e atribuir sentido as suas intervenções misericordiosas, quando minha moral cristã ocidental e meu senso de história moderna e teleológica me levam a buscar este fio condutor.
É!, Sansão me incomoda. Mas que bom que ele está na Bíblia, porque assim não preciso ser escravo da letra mas me abrir para o vento do Espírito. Não preciso ter respostas a todas as perguntas, mas posso me deixar levar apenas pelo mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus. Não sou forçado a estampar um estereótipo culturalmente santo mas descansar naquele que é tudo em todos.
Parabéns pela análise da vida de Sansão. É bom ler textos que nos faça ir além do ópio.
Um abraço.