quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O GALO PROFETA E O CANTO DA VAIDADE

Havia um terreiro onde a injustiça e a desigualdade imperavam soltas entre os galos. A vida da maioria dos galos era muito ruim, porque um pequeno grupo se considerava proprietário do poleiro, das cercas, da organização do terreiro, de tal maneira que a população, em sua maioria, consistia em galos pobres. 


Basicamente, apenas dois tipos de canto de galos se faziam ouvir naquele lugar. Ou canto forte e estridente dos poucos galos que mandavam, ou os piados frouxos da maioria dos galos pobres. O piado dos galos pobres era tão fraco que mal podia ser ouvido. Não chegava sequer a ser ouvido pelos galos ricos, que continuavam tranqüilos como os únicos donos do pedaço.

- “A vida é assim: há os que nasceram para mandar e os que nasceram para obedecer”. Diziam alguns de entre os galos pobres.

- “Tudo nessa vida é como Galeus quer”. Diziam outros galos conformados.

Houve um dia, entretanto, que um galo novo chegou àquele terreiro. Ao notar a situação de dificuldade que os galos pobres tinham de enfrentar, decidiu, corajosamente, cantar na mesma altura dos galos ricos. Subia no poleiro e de lá cantava alto, bonito, estridente, chamando os galos pobres a tomarem pé da situação. Seu canto era tal que podia ser ouvido pelos galos ricos, que, obviamente, não gostaram nadinha daquela novidade.

- “Quem é este galo para desafiar nossa autoridade?” Perguntavam alguns de entre os galos mandões.

- “Quem lhe deu tamanha autoridade? Em quem ele confia?” Indagavam outros.

- “É pecado contestar as autoridades constituídas”. Diziam alguns de entre os próprios galos pobres.

E aquele galo, sozinho, repetia todos os dias o seu canto de defesa dos galos pobres e de denúncia da perversidade dos galos ricos, únicos a gozarem boa vida no terreiro, com milho, ração, e até pão de ló. Por muito tempo aquele galo, defensor dos galos pobres, cantou sozinho. Tanto eram o medo e o pavor que os galos pobres tinham dos galos ricos e poderosos, que foi difícil encontrar alguém que o quisesse acompanhar em sua atitude corajosa e destemida. Mas ele nunca temeu o fato de cantar sozinho. Todos os dias, logo cedo, como é costume nos terreiros, todos ouviam seu canto forte de defesa dos direitos dos galos pobres.

- “Como ele é corajoso. Como é admirável a sua coragem!” Diziam alguns poucos galos pobres.

- “Quero ser amigo dele. Quero aprender com ele a ser assim, corajoso e destemido”. Diziam outros.

E sua fama ganhou o terreiro. A admiração por seu canto diferente se espalhou por todo canto, até para além das cercas daquele terreiro. Era tanta a sua fama, que galos de outros cantos queriam ouvi-lo cantar. E ele se pôs a cantar aqui e acolá. E quanto mais cantava mais requisitado era a cantar em diferentes lugares. Não sem méritos! Seu canto era mesmo diferente daqueles que se costumavam ouvir pelos terreiros afora. Era um canto cheio de vida, de coragem, de vontade de justiça, de paixão pela liberdade. E por mais que seu canto encontrasse também a incompreensão de muitos entre os galos pobres, acostumados àquela vida sem autonomia, havia sempre galos em todo lugar dispostos a ouvir seu canto diferente.

Um dia, quando ninguém esperava, uma coisa inusitada e inesperada aconteceu no terreiro. Outros galos começaram a querer cantar com a mesma intensidade e beleza daquele galo corajoso. Foram se dando conta de que se “uma andorinha só não faz verão”, um galo só também não. Afinavam todos os dias o gargalo, e iam ensaiando cantos diferentes, cheios de vida, de paixão pela liberdade, e de vontade de reverter aquela triste situação de dominação de uns poucos galos sobre a maioria do terreiro. Juntaram-se, e foram compondo canções em conjunto. Queriam formar um coral de galos corajosos. Não eram muitos, mas queriam que seu canto fosse forte, a ponto de ser ouvido por aqueles galos que se consideravam os únicos donos do terreiro.

Surpreendentemente, aquele primeiro galo corajoso, destemido, de canto firme e forte, se ufanou. Nunca quis fazer parte do coral daqueles novos galos, dispostos a cantar novas canções de liberdade. Queria continuar a cantar seu canto sozinho. Ninguém entendeu direito o porquê daquilo, mas era triste que aquele galo corajoso, motivo de inspiração para todos os demais que vieram depois dele, não quisesse se juntar ao coral para engrossar os cantos de liberdade.

- “Meu canto forte e estridente não pode se misturar ao de ninguém”. Dizia ele.

E o terreiro permaneceu daquele mesmo jeito. Uns poucos galos viviam no maior conforto, mandando e desmandando na vida dos demais. Tristemente, todos se deram conta de que o canto daquele galo corajoso, mais do que o canto da liberdade, era o canto da vaidade de ser o único defensor dos galos pobres e oprimidos.

Houve um galo, Qoelet, que num de seus cantos dizia que “tudo é vaidade”. É curioso que a defesa da justiça seja também ração para a vaidade de galos. 

Um comentário:

Valdeir Almeida disse...

Paulo,

Vim até seu blog, após ler um comentário seu no blog do Marcos Monteiro. Gostei do seu comentário lá e agora vim conhecer o "Ópio Coisa Nenhuma".

Parabéns da forma como você escreve, original, crítica e inteligente.

Abraços.