sábado, 26 de abril de 2014

TRIUNFALISMO


Todas as manhãs, invariavelmente, a minha vizinha põe no seu toca-discos a mesma coletânea de músicas religiosas, pertencentes ao mercado gospel brasileiro. Eu já ouvi tantas vezes a mesma coletânea que já memorizei a sequencia das canções, e talvez consiga cantar uma parte delas, por osmose. Eu não sei qual a religião dela. As músicas, como disse, são “evangélicas”, o que não quer dizer que minha vizinha também o seja.
Chamam atualmente de “nominais” – categoria antes restrita à maioria dos católicos brasileiros – a estas pessoas que consomem os elementos de uma espiritualidade evangélica sem que isso se traduza em compromissos institucionais e em frequência a cultos. Seriam os “evangélicos nominais”. Mas não é isso que me importa realmente.
O que há em comum nas diferentes canções religiosas ouvidas todas as manhãs pela minha vizinha é seu conteúdo triunfalista. Nenhum espanto para quem conhece um pouco esse ramo da indústria fonográfica. O triunfalismo talvez seja sua marca mais distintiva. As raízes desse triunfalismo estão nas teologias de prosperidade que caracterizam não só o neopentecostalismo, mas uma boa fatia dos atuais grupos evangélicos no Brasil.
O que é o triunfalismo? Em linhas gerais, é uma redução da complexidade do real e de seus dilemas. É uma forma de produção de sentido que busca reduzir a complexidade da vida a um esquema de causa e efeito vinculado ao sagrado e sua relação com o mundo. O mundo e seus dilemas se simplificam de forma maniqueísta entre bem e mal. Basta ao sujeito se integrar na economia simbólica do bem, mediada pela sua religião, e nenhum dilema, por mais cruel e interminável que pareça, terá a palavra final. Como se diz sempre nesse discurso: “a vitória é certa!”.
Que efeitos o triunfalismo produz?
Em termos subjetivos, psicológicos e emocionais, o triunfalismo produz certo tipo de quietude. O sujeito experimenta um tipo de “paz” que dificilmente experimentaria por outros meios. É por isso que Émille Durkheim dizia que o crente que se encontrou com o seu deus não é apenas um sujeito que encontrou verdades novas. Além disso, ele é mais forte para enfrentar as intempéries da existência, pois no fundo, ele está certo de que elas já estão vencidas. Experimenta-as apenas como provação à sua fidelidade. Assim, não há “tempo ruim” para minha vizinha! Ao menos aparentemente.
Em termos cognitivos, a redução triunfalista da realidade produz um infantilismo que, não raras vezes, acaba cedendo diante dos limites desse tipo de discurso. O sujeito se domestica a tal ponto numa leitura reduzida da complexidade da vida, a ponto de não desenvolver capacidades cognitivas importantes no processo de maturação pessoal. A inatividade quanto à resolução de seus problemas, e a transferência dessa responsabilidade a outrem (ao deus, à campanha, ao dízimo etc.) é o sinal maior dessa infantilidade. Esse é o pano-de-fundo da exploração religiosa que assistimos hoje. Infantilizada, a alma humana é capaz de todo tipo de sujeição voluntária.
Politicamente, o triunfalismo produz passividade, individualismo e apatia. Isso não quer dizer que não haja uma agenda política nas teologias triunfalistas. Há. Mas elas repetem à exaustão um dos dogmas do protestantismo no Brasil: converta-se o indivíduo e a sociedade mudará. No mais, resta ignorar (ou atualmente, criminalizar!) os movimentos sociais de matizes progressistas, identificados com tendências socialistas, que só podem ser concebidas como verdadeiros “pecados contra o Espírito Santo”, pois infringem o princípio fundamental de que é a felicidade individual que importa para os deuses.
Ópio do povo? Alienação? De fato, eu não me atreveria a opinar.
Mas, e a minha vizinha?
Continua em paz, ouvindo a mesma sequencia musical talvez pela milésima vez...

Um comentário:

Waldir disse...

Sempre cirúrgico, querido Paulo Nasccimento.