quinta-feira, 11 de junho de 2009

AS IGREJAS E A HOMOSSEXUALIDADE


Entre a lógica do Templo e a lógica de Jesus de Nazaré

ABRINDO

A ambigüidade que envolve a sexualidade humana reside no fato de que sendo ela uma realidade hiper-complexa, tenha sido tradicional e culturalmente tematizada de forma hiper-simplista. As contribuições da religião, da filosofia e da própria ciência, forjaram as representações mais arraigadas no senso comum, onde o binômio macho/fêmea e a hegemonia das relações heterossexuais foram elevadas ao status de naturalidade. Dessa forma, outras manifestações de sexualidade entre seres humanos, a despeito de sua milenar recorrência, ficaram circunscritas como fenômenos desviantes daquilo que é “normal”.

Todavia, nosso tempo vem caracterizado pela pluralidade discursiva que tem seus reflexos também nos discursos sobre a sexualidade. Nem de longe se pode dizer que experimentamos uma época de plenitude democrática. Mas devemos reconhecer que historicamente estamos num momento em que a construção dessa cultura democrática vem dando passos muito interessantes. Esses passos são o produto da luta árdua de certos grupos minoritários. Os exemplos estão nas pequenas conquistas dos negros, das mulheres, das crianças, e daqueles cuja identidade sexual foge das noções con-sagradas em nossas sociedades.

1. AS ATUAIS VARIANTES DEFINIDORAS DA SEXUALIDADE HUMANA

No que diz respeito a esses últimos, os avanços, apesar de muito pequenos, são tangíveis. Ainda que as representações mais comuns da sexualidade humana continuem circunscritas ao binômio macho/fêmea, já existe uma farta terminologia que busca dar conta minimamente da complexidade acerca desse tema. Eu gostaria de esboçar aqui uma rápida tipologia desse trabalho conceitual.

1.1 HSH e homossexualidade

HSH corresponde à sigla para homens que fazem sexo com homens[1]. Esse tipo remete à relações meramente copulares, mas sem implicações afetivas. Em outras palavras, esse tipo traduz a identidade sexual de pessoas que sustentam uma vida sexual com parceiros do mesmo sexo, porém não necessariamente a partir de um laço afetivo. Por isso não podem ser identificadas como homossexuais, uma vez que podem também copular heterossexualmente. O mais usual de todos esses termos descritores é o homossexual. As relações homossexuais implicam, além da atividade copular, a afetividade entre duas pessoas do mesmo sexo. A afetividade, nesse caso, tem mais valor definidor que a própria prática sexual. Assim, caberia perfeitamente o termo homo-afetivo nesses casos.

1.2 Bissexualidade e transexualidade

Bissexual, por sua vez, é o termo descritor para designar as pessoas para quem as relações sexuais e a afetividade são desejáveis e factíveis em relação tanto ao macho como à fêmea. Outro é o caso dos transexuais. Neste caso, a identidade sexual da pessoa se caracteriza pela profunda rejeição do seu sexo biológico, sendo que desde o nascimento se nota profunda repulsa à própria genitália. Concomitante a isto se dá a identificação com o sexo biológico oposto.

1.3 Travestismo e intersexualidade

Travesti é o termo descritor para denotar a identidade sexual das pessoas que apesar de sua condição fisiológica se relacionam com o mundo a partir da condição fisiológica oposta. Trata-se do homem que se relaciona com o mundo na condição de mulher e vice-versa. Essa relação com o mundo, todavia, não determina a prática sexual. Acrescente-se a isso o fato de que no travestismo a excitação sexual depende estritamente do uso de roupas culturalmente atribuídas ao sexo oposto. Em nenhum desses casos acima se presentificam alterações anatômicas nas pessoas, mas somente a variedade da identidade sexual. O designativo intersexualidade, no entanto, é aquele usado para se referir à pessoa que embora pertença aparentemente a um gênero, tem vários aspectos anatômicos e/ou psicológicos do sexo oposto.

Embora nosso artigo vá se concentrar na relação entre religião e homossexualidade, algumas perguntas gerais que derivam dessas observações são estas:

a) É possível manter as representações da sexualidade humana limitadas ao binômio macho/fêmea e continuar considerando as demais variações como comportamentos desviantes?

b) Sob a luz dos valores evangélicos, como as igrejas cristãs devem reagir frente a essa diversidade de identidades sexuais?

2. SEIS REPRESENTAÇÕES DA GÊNESE DA HOMOSSEXUALIDADE

São variadíssimas as representações sociais da gênese da homossexualidade. Eu gostaria de sistematizá-las sucintamente sob seis grandes formas discursivas, sem me preocupar muito com a seqüência cronológica de seus aparecimentos.

2.1 Opção sexual

Minha primeira referência diz respeito à representação da homossexualidade como uma opção sexual. Uma vez que a heterossexualidade é representada como condição natural da sexualidade entre os humanos, “desvios” como a homossexualidade são vistos como produtos de uma decisão deliberada, intencional e volitiva do ego. Tal representação sequer fomenta a suspeita de que a própria heterossexualidade não seja produto de uma opção deliberada da consciência. Tanto uma quanto a outra são, na verdade, impostas existencialmente aos seres humanos. É nesse sentido que os próprios homossexuais rejeitam veementemente a idéia de opção sexual, mas utilizam a expressão orientação sexual. Devido ao meu forte apego com a filosofia, tenho preferido usar a expressão condição existencial para representar a gênese tanto da heterossexualidade quanto da homossexualidade. Algumas questões instigantes nesse sentido são:

a) Sendo a homossexualidade uma opção sexual, por que muitas entre essas pessoas não optam pela heterossexualidade para evitar os terríveis preconceitos que enfrentam socialmente?

b) Se optam pela heterossexualidade, por que tal opção não se traduz numa instantânea mudança de comportamento sexual?

2.2 Devassidão moral

Outra representação da gênese da homossexualidade atrelada à primeira, se traduz na idéia de devassidão moral. Mais abaixo, quando estivermos discursando sobre as perspectivas bíblicas da homossexualidade, voltaremos a essa representação, uma vez que a mentalidade de boa parte dos escritores bíblicos se guia à luz dessa noção de devassidão moral, inclusive Paulo de Tarso.

2.3 Doença

Por muito tempo foi vigente a explicação da gênese da homossexualidade ligada à noção de doença. Para que se tenha uma noção mais nítida disto, a homossexualidade deixou de ser considerada medicamente como doença no Brasil somente em 1985. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) isso se deu somente em 1991. Embora essa seja uma representação com tonalidade arcaica mesmo em nível do senso comum, é possível encontrar ainda manuais de Psicopatologia considerados paradigmáticos, onde tanto a homossexualidade como as demais variantes da sexualidade humana (exceto a heterossexualidade) são tratadas como transtornos da identidade de gênero[2].

2.4 Possessão demoníaca

Os círculos religiosos, por seu turno, são responsáveis pela representação da gênese da homossexualidade como produto de possessão demoníaca. Há uma milenar relação entre o discurso religioso e a tipificação espiritualizante de certos fenômenos considerados atípicos no comportamento entre os seres humanos. Michel Foucault, em sua História da Loucura[3], deixou claro como os transtornos mentais foram associados por muito tempo à possessão de demônios, e como derivaram daí as mais bizarras propostas psicoterápicas. Loucos, leprosos, epiléticos e também homossexuais, por muito tempo foram vítimas de representação que os associava à influência de forças misteriosas e demoníacas. Não é equivocado dizer que tal representação permanece incrivelmente vigente na mentalidade de muitos religiosos, majoritariamente entre cristãos evangélicos.

2.5 Transtorno de identidade sexual com fundo psicológico

Como produto de uma “psicanálise vulgar”, também vigora entre as representações da gênese da homossexualidade a idéia de que ela está atrelada a um transtorno de identidade sexual com fundo psicológico oriundo de uma criação familiar eminentemente materna. Minha hipótese, nesse caso, é que tal representação está atravessada pela cultura patriarcal que a circunda. A ausência da figura paterna e masculina seria responsável pelo transtorno de identidade sexual. Logo, a presença e a influência do pai está identificada com a “normalidade” e com a “regularidade” do comportamento. De outro modo, a entrega exclusiva à influência materna e feminina estaria ligada ao “transtorno” e à “irregularidade”. Esta representação, por outro lado, não consegue dar conta dos inúmeros casos de presença de homossexuais em famílias marcadas pela influência de ambos os gêneros. Nem consegue dar conta dos muitos casos de homossexuais entre irmãos heterossexuais, onde todos foram submetidos aos mesmos processos de formação humana familiar.

2.6 Influência de fatores hormonais

Por fim, resta-nos mencionar uma representação da gênese da homossexualidade presente em alguns setores biomédicos. Nestes, a questão está posta em termos de influências de fatores hormonais na gestação. Tal representação, aparentemente restrita à classe científica, tem sido divulgada sobretudo pelos popularizadores de uma nova modalidade editorial, que é a auto-terapia para casais. Este é o caso, por exemplo, do casal Allan e Bárbara Pease[4]. Esses autores pertencem a uma tradição de intelectuais que vivem do pseudo-cientificismo. A lógica presente aí consiste em traduzir e sintetizar para o senso comum hipóteses científicas, com o intuito de se apoiar em sua suposta suficiência argumentativa. Para fundamentar cientificamente a diversidade comportamental de homens e mulheres, os autores mencionados lançam mão de um discurso pretensamente científico, atrelado ao paradigma evolucionista e biologicamente reducionista. Logo, ainda que expressões da sexualidade humana como a homossexualidade não sejam taxadas como desviantes comportamentais, são explicadas a partir de esquemas estritamente biológicos identificados com a influência hormonal em certas circunstâncias gestacionais.

3. PERSPECTIVAS BÍBLICO-LITERAIS DA HOMOSSEXUALIDADE

Apesar da representação que identifica a gênese da homossexualidade com a possessão demoníaca ser estritamente religiosa, ela não encontra respaldo no texto da Bíblia. Antigo e Novo Testamento não conhecem essa representação. Na verdade, apenas um dos autores bíblicos (Paulo de Tarso) tematiza muito ligeiramente o problema da gênese da homossexualidade, e essa gênese, como dissemos antes, está identificada como a noção de devassidão moral. Revisemos sucintamente a presença do tema no Antigo e no Novo Testamento, nesta ordem. Depois faremos um brevíssimo balanço dessa perspectiva bíblica.

3.1 No Antigo Testamento (AT)

a) Gênesis 19,1-29

Em todo o AT não se encontra sequer uma única palavra sobre a gênese da homossexualidade. Para os autores do AT ela é algo que está dado sem referência às suas origens. Tradicionalmente postulou-se que o episódio da visita de Ló a Sodoma, conforme narrado em Gênesis 19,1-29, represente uma negação frontal e estrita à homossexualidade. Sem entrar na discussão acerca da plausibilidade histórica desse(s) relato(s), é mister afirmar que a respectiva narrativa realce, na verdade, uma condenação a todo um conjunto de práticas sexuais consideradas degradantes da dignidade humana. Em outras palavras, o que se condena em Sodoma (e em Gomorra) é a completa degeneração da sexualidade humana, e não uma identidade sexual em particular. É certo que esta degeneração total esteve representada não só por práticas homossexuais, mas também por outras que igualmente podem agredir a dignidade da pessoa humana.

b) Levítico 18,19-30 e 20,10-27

No AT nosso tema também aparece nos códigos levíticos de Israel. No livro de Levítico, pela primeira vez no texto Bíblico, as uniões homossexuais estão explicitamente rejeitadas, pois são vistas como “abominações”: “Um homem não deverá se deitar com outro homem, como se fosse mulher, pois isto é abominação” (Lv 18,22); “se um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv 20,13).

O que se necessita esclarecer sobre essas passagens é o fato delas se situarem num contexto de negação a uma série de outros comportamentos considerados reprováveis e abomináveis. Entre esses comportamentos estão as uniões heterossexuais ilegais e imundas, como as mantidas durante o ciclo menstrual da mulher (Lv 18,19) e os adultérios (18,20), assim como as zoofilias (18,23). Na continuação desse texto do Levítico (18,24-30), o tratamento de “abominação” dispensado estritamente à homossexualidade no verso 22, é atribuído a todos os outros comportamentos mencionados: “porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra [de Canaã] que nela estavam antes de vocês, e a terra se contaminou” (v. 27). Portanto, semelhantemente à passagem de Ló em Sodoma, também os códigos levíticos não se posicionam contra uma identidade sexual em particular. Seu posicionamento se direciona contra uma situação de degradação geral da sexualidade humana, que podem se exacerbar tanto em práticas homossexuais quanto em heterossexuais. Neste caso, até mesmo em zoofilias.

3.2 No Novo Testamento (NT)

a) Romanos 1,18-32

Paulo de Tarso é o único autor dos textos bíblicos que propõe uma avaliação da gênese da homossexualidade. Isso Paulo o faz no texto de Romanos 1,18-32. Como já sinalizamos acima, a avaliação de Paulo está ligada à idéia de degeneração moral. No entanto, para Paulo a degeneração moral que desemboca na homossexualidade está ligada a outro problema, que é o não reconhecimento dos atributos de Deus impressos na natureza, e, conforme Paulo, obviamente reconhecíveis (Rm 1,20). Esse não reconhecimento da existência de Deus e de suas relações com o mundo traz uma série de conseqüências sumarizadas por Paulo em Rm 1,21-32:

1) as atitudes de ingratidão e incontinência (1,21);

2) de soberba intelectual (1,22);

3) e de idolatria e perversão cúltica (1,23-25).

A homossexualidade, portanto, é vista por Paulo nesse conjunto de conseqüências provenientes da rejeição do ser humano em relação à Deus (1,26-27). É uma devassidão moral com fundo religioso e teológico.

b) 1 Coríntios 6,9 e 1 Timóteo 1,10

Paulo também se utiliza do termo “efeminados”: “(...) Não enganem a si mesmos: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados... herdarão o Reino de Deus” (1Co 6,9). Minha suspeita é que essa expressão seja de fato uma referência direta à homossexualidade. Nas epístolas pastorais aparece a expressão “sodomita” para fazer referência pejorativa à sexualidade humana: “impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos...” (1Tm 1,10). Como vimos, essa expressão é de difícil definição, sendo melhor utilizada quando referida à degeneração total da sexualidade, e não a uma identidade sexual em restrito. Em ambos os casos – efeminados e sodomitas – está postulada convicção de que estes estão excluídos do símbolo escatológico Reino de Deus. O que não nos pode escapar nas duas passagens sobre os “sodomitas” e os “efeminados” é o fato dessa exclusão pontual estar ligada a uma exclusão geral que rejeita toda a degeneração do comportamento humano.

3.3 Um breve balanço das perspectivas bíblicas sobre a homossexualidade

Literalmente, as passagens que mencionamos são taxativas em sua rejeição à homossexualidade. O AT justifica essa postura taxando religiosa e moralmente a homossexualidade como uma das abominações do comportamento humano. Indicamos indiretamente que essa posição do código levítico de Israel também tem relação com fatores culturais. A negação da homossexualidade e de outros comportamentos sexuais se fundamenta também no fato delas terem sido amplamente praticadas nas culturas cananéias. A construção de todos os elementos superestruturais – isto é, de toda ideologia moral, política e religiosa – em Israel, como sabemos, nasce desse intercâmbio cultural que assimila certos elementos dos povos do entorno e rejeita outros como abominações.

Literalmente, também as passagens do NT às quais fizemos menção rejeitam taxativamente a homossexualidade. É difícil determinar o quanto dessa rejeição tem relação com os elementos da cultura do entorno. Não obstante, podemos arriscar a hipótese de que tenham relação com a cultura pessoal do próprio Paulo de Tarso, fortemente marcada pelo código levítico, que, como vimos, situa a homossexualidade no conjunto das demais abominações do comportamento humano.

Nosso último passo nesse artigo consistirá em nos perguntarmos pelo seguinte:

a) Seria a Bíblia um livro homofóbico, ou sua interpretação literal?

b) Em que medida o tema da homossexualidade na Bíblia está atravessado por condicionamentos sócio-históricos?

b) Quais critérios bíblico-hermenêuticos os cristãos dispõem para tratar esse tema?

4. JESUS DE NAZARÉ E A INCLUSIVIDADE DA DIVERSIDADE SEXUAL

Para nós, cristãos, é mister reconhecer de uma vez por todas que Jesus Cristo é o princípio interpretativo de toda Bíblia, assim como de toda a existência. Em linguagem teológica dizemos que Jesus Cristo é o princípio hermenêutico de acesso à Bíblia e à existência. Ele é a Palavra que julga toda palavra. Para nós, cristãos, ele é o critério último pelo qual discernimos todas as coisas.

E não há nada novo sendo afirmado aqui. “No princípio era a palavra... e a palavra era Deus... e a palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós...”, escreveu a comunidade joanina (João 1,1.14). A própria tradição da Reforma tem em Lutero esse mesmo posicionamento de ver em Jesus Cristo o princípio hermenêutico de acesso a toda Escritura e a toda vida. Foi à base disso que Lutero rejeitou certas partes do AT e quis excluir Tiago e Apocalipse do NT, os quais, conforme ele, destoavam totalmente da mensagem e da vida de Jesus Cristo. Também grandes teólogos protestantes do século 20 como Karl Barth e Paul Tillich asseveraram o mesmo – o “Novo Ser em Jesus Cristo” como critério de discernimento de toda teologia e de toda a vida. Essa decisão de fé tem implicações diretas no tratamento cristão frente à homossexualidade.

A primeira dessas implicações é a declinação do uso tanto do AT quanto da perspectiva paulina para enfrentar a questão. Tanto uma quanto a outra, se submetidas à luz da mensagem e da vida de Jesus Cristo, devem ser rejeitadas como construções contextuais provisórias, incompatíveis como a maneira com a qual Jesus Cristo tratou problemas análogos. De outra maneira, o próprio AT e a perspectiva paulina anulam a si mesmos como meios de se lidar com a homossexualidade. Ambos postulam sobre outras situações que seletivamente ninguém estaria disposto a assumir hoje. Por exemplo, o mesmo código levítico que condena a prática homossexual com a pena de morte, condena da mesma maneira o adultério (Lv 20,10), além de considerar imundo o homem depois de sua ejaculação (Lv 15,1-18) e a mulher imunda durante o ciclo menstrual (Lv 15,19-33). Quantas igrejas continuam aplicando ipsis literis essas determinações todas? De forma semelhante, a mesma perspectiva paulina (ou dêutero-paulina) que representa a homossexualidade como um dos produtos da rebelião frente a Deus, restringe a mulher aos papéis domésticos e condiciona a salvação destas à capacidade de concepção e de maternidade (1Co 14,34; 1Tm 2,8-15). Quantas igrejas fazem ainda as mesmas restrições eclesiais e soteriológicas às mulheres?

A tese do Paul Lehmann de que a tarefa das igrejas é “tornar a vida humana mais humana ainda”, traduz com exatidão a maneira como Jesus de Nazaré lidou com temas análogos à homossexualidade. Esta analogia diz respeito ao trato dispensado por ele aos leprosos, “endemonhiados”, mulheres, impuros de toda sorte, pobres, estrangeiros, pecadores, prostitutas, cobradores de impostos, dissidentes religiosos e inimigos políticos – todos fortemente segregados pela estrutura do Templo. Para o Templo, aquelas pessoas eram tidas como “abominações” semi-humanas, para quem a única saída deveria consistir numa rendição à lógica dominante das imposições do próprio Templo. Para Jesus de Nazaré, pelo contrário, as mesmas pessoas eram vistas como “seres humanos vitimados pela história”, em quem pulula intensamente a imagem de Deus.

As formas com as quais a maior parte das igrejas cristãs atualmente se relaciona com os homossexuais não são análogas às formas com as quais o Templo se relacionava com os sujeitos acima citados? Não são duas formas de exclusão em estreita analogia?

A suma de tudo isso é que a relação das igrejas com os homossexuais segue a lógica excludente do Templo, e rejeita a lógica inclusiva de Jesus de Nazaré.

FECHANDO

Toda mudança operada pela Graça de Deus inicia numa aceitação incondicional do ser humano. As igrejas deveriam se guiar à base desse princípio anunciado e vivenciado por Jesus de Nazaré, que acolheu os proscritos de toda espécie e disse enigmaticamente que “os pagãos se assentariam na mesa com Abraão, Isaque e Jacó, enquanto os filhos do reino rangeriam os dentes nas trevas” (Mt 8,11-12), que “os Grandes Teólogos da época não seriam salvos (Lc 11,52) e que “os cobradores de impostos e as prostitutas entrariam no reino de Deus antes que os sacerdotes” (Mt 21,31).

Não há em Jesus Cristo nenhuma busca pelas raízes dos comportamentos acima mencionados. Tudo o que nele encontramos é o acolhimento em amor incondicional, que proporciona às pessoas uma reflexão sobre os próprios passos (Lc 19,8) e torna a vida humana mais humana (Jo 8,11).

Infelizmente, diante das expressões múltiplas da diversidade sexual assumida em nossos dias pelos muitos grupos minoritários, a maior parte das igrejas cristãs permanece optando pela lógica excludente do Templo. Felizmente, diante da mesma diversidade sexual, inúmeros atores sociais sem nenhuma vinculação cristã e religiosa têm optado pela lógica inclusivista de Jesus Cristo.

BIBLIOGRAFIA CITADA

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2ª edição, São Paulo: Artmed, 2008

FOUCAULT, Michel. História da Loucura – Na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008

PEASE, Allan, PEASE, Barbara. Por que homens fazem sexo e mulheres fazem amor. São Paulo: Sextante, 2003


[1] “Homem”, nesse caso, precisa ser entendido genericamente como sinônimo de “pessoa”. Esse é um exemplo do nível de entranhamento da cultura patriarcal. Mesmo a linguagem dos movimentos sociais articulados com a homossexualidade está atravessada pelo primado do masculino. A relação que a sigla HSH quer denotar poderia ser igualmente cunhada como MSM, isto é, “mulheres que fazem sexo com mulheres”.

[2] Este é o caso de DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2ª edição, São Paulo: Artmed, 2008, p. 358-359.

[3] Cf. FOUCAULT, Michel. História da Loucura – Na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

[4] Cf. PEASE, Allan, PEASE, Barbara. Por que homens fazem sexo e mulheres fazem amor. São Paulo: Sextante, 2003.

sábado, 30 de maio de 2009

A ESTRANHA CONVERSÃO “GLOBAL”


Uma suspeita acerca da aproximação da Rede Globo junto aos evangélicos no Brasil

Podem me chamar do que quiser! De pessimista a radical. Mas nada me convence de que as últimas matérias sobre a ação social evangélica no Brasil, veiculadas no Jornal Nacional da Rede Globo, tenham um fundo de boas intenções. Não! Minha posição de rejeição ao jornalismo da Rede Globo é a priori e incurável. E minha convicção de que religiosamente ela é antievangélica segue na mesma linha. Nem a simpatia do William Bonner e da Fátima Bernardes muda isso!

É desejo de todos nós que pertencemos a estas tradições de difícil tipologização – evangélicas, protestantes, pentecostais, neopentecostais, e etc. – que todas elas exalem pertinência social. Para muitos de nós essa é a grande luta interna. É verdade a assertiva de que o protestantismo ainda deve muito em termos da construção de uma sociedade justa e fraterna no Brasil. Não que nunca tenhamos ensaiado isso historicamente. Mas quando o fizemos, os poderes reacionários de nossas igrejas sempre impuseram sua força abafando os novos brotos aí presentes. Todavia, permanece a luta e o empenho para que essas tradições contribuam na gestação de algo novo em termos estruturais, e dêem sua contribuição no aparecimento de comunidades e sociedades com feições mais humanas.

A Rede Globo deveria veicular o fato de que a ação social sempre foi uma prática presente entre os evangélicos do Brasil. Além disso, deveria também veicular o fato histórico de que a própria Teologia da Libertação (TdL) teve seus primeiros brotos no Brasil sobretudo em círculos evangélicos. Quem investigar, por exemplo, o pensamento e a práxis de Richard Shaull entre as décadas de 1950 e 1960 no Brasil, se surpreenderá com aquilo que poderíamos chamar tranquilamente de “antecipações” ao que mais tarde se formalizaria como TdL. Além disso, o texto acadêmico considerado fundante da TdL, para quem o enfrentamento da pobreza e da opressão tem dimensões paradigmáticas, foi The Theology of a Human Hope, escrito por Rubem Alves ainda em 1969.

É bem verdade que foram poucos os grupos evangélicos que chegaram a desenvolver uma teologia onde a ação social fosse o elemento paradigmático. Também é verdade que os evangélicos sempre tiveram extrema dificuldade de discernir entre ação social e assistencialismo, quase sempre tomando o segundo pelo primeiro. Em muitos casos esse assistencialismo aparecia (e ainda aparece) como mero adendo da missão cristã no mundo, sobretudo como isca para os fins proselitistas. Mas como valor reconhecidamente cristão – para saber se ele o é basta que se pergunte a quem tem fome –, o assistencialismo sempre constou na dinâmica de uma fração majoritária das igrejas evangélicas no Brasil.

A Rede Globo, por sua vez, nunca fez questão de ocultar o substrato católico que lhe subjaz religiosamente (o que não é nenhum problema, ao menos para mim!). Aos evangélicos sempre foi vedada a notoriedade, e a invisibilidade destes sempre foi a tônica nas relações com esta televisão. Em meados da década de 1990, nos embates com o Bispo Macedo e sua igreja, lembro do tratamento indiscriminado dados aos “evangélicos” pela Rede Globo, como se Macedo fosse uma espécie de representante de um grupo homogêneo que envergonhava o Brasil com sua astúcia. Só muito depois tomei conhecimento das batalhas travadas pela AEVB (Associação Evangélica Brasileira) para desvincular a figura e a práxis de Macedo da imagem dos demais evangélicos, sobretudo dos pastores.

Por tudo isso, essa guinada radical da Globo em face dos evangélicos brasileiros não é pra levantar nossos cabelos? O que explicaria essa “conversão” tão súbita?

Será que a atual visibilidade dessas ações só se tornou um fato em função do crescimento evangélico que segue acima da média da população nacional? Por que será que as práticas sociais pregressas, relativas a mais de 150 anos de presença evangélica no Brasil, nunca puderam ser alcançadas pelas câmeras “globais”? Quais elementos desse momento histórico poderiam ser pistas para entendermos uma guinada tão aguda na atitude da Globo quanto aos evangélicos? Que relações podem existir entre essa guinada e o projeto de hegemonia midiática da Rede Record gerenciada pela Igreja Universal do Reino de Deus? Seriam os evangélicos brasileiros de hoje um seguimento social com poder suficiente para determinar o resultado de um processo eleitoral presidencial? [vote Dilma 2010!] Enfim, o apreço e a simpatia “globais” dirigidos aos evangélicos brasileiros se devem a quê?

Como sei que logo alguns pastores midiáticos saltarão de alegria e exultarão esse vislumbre “global”, me adianto com essas questões que nascem como síntese do meu pessimismo e do meu radicalismo em relação ao jornalismo da Globo.

Sim, os evangélicos cresceram e apareceram! Saltamos de 5 ou 7 por cento no início da década de 1990 para mais de 15 por cento em dez anos. Em 2000 o IBGE dizia que éramos uns 26 milhões de crentes tupiniquins. Talvez beiremos os 30 milhões atualmente. Tamanho crescimento religioso é um dado sociológico impossível de passar despercebido por quem quer que seja. Já que crescemos tanto e já estamos aparecendo positivamente até na Rede Globo, seria também o momento de não entrarmos num jogo cuja regra maior parece evidente: fazer-nos massa de manobra! Afinal, gente crescida é gente que deve aprender a cuidar bem de si!


domingo, 17 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA [2]


A “violência cristã sofisticada” como violência simbólica

A História é testemunha de que existe uma estreitíssima relação entre os conceitos de religião e violência. Sobretudo na História do Ocidente, entre Cristianismo e violência.

Os cristãos, em princípio, foram vítimas de uma violência desproporcional às suas forças, perpetrada pelo Império Romano. Sobretudo nas comunidades do primeiro e segundo séculos sobejam os mártires. A condenação da Besta e da Babilônia prenunciada no Apocalipse é o subproduto teológico-reativo a essa violência imperial. No entanto, ocupando posteriormente o lugar privilegiado Religião Oficial do Império Romano, os cristãos foram os protagonistas de terríveis violências e cruzadas em nome de Deus. Em caso de dúvidas, consultem os árabes.

Primeiro, os “pagãos” violentam os cristãos. Depois os cristãos violentam os “pagãos”. Por fim, os cristãos violentam a si mesmos. Ou já nos esquecemos da inesquecível Noite de São Bartolomeu? Este episódio é só um fragmento do grande caldeirão de sangue no qual se tornou a Europa no período pós-reformatório. Quem tiver dúvidas que leia Tratado sobre a tolerância, do Voltaire.

A violência no âmbito de gênero, tão presente ainda hoje, já teve nos cristãos requintes de especialidade irrepetíveis. Ninguém cometeu maiores atrocidades contra as mulheres do que os cristãos encarregados do Santo Ofício. Quem pode esquecer tudo os cristãos fizeram com o Malleus Maleficarum debaixo do braço? Também a repressão violenta às manifestações de trabalhadores, absurdamente atual, teve nos cristãos episódios vergonhosos. Lutero amaldiçoou a matança de cinco mil camponeses revoltos em Frankenhausen no ano de 1525 [perdoemos a Lutero: Não matarás não constava nas 95 Teses]. O velho Calvino também não deixou de caçar bruxas e hereges na sua calvinocrática Genebra. A expansão colonial que vitimou por inteiro as civilizações pré-colombianas – há quem calcule em torno do desaparecimento de 88 milhões de seres humanos durante a invasão das Américas – também se deu fomentada religiosamente pelo Cristianismo. Havendo dúvidas aqui, eu indico As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano.

Mas chega de sangue.

Deixemos para depois os casos da colonização protestante na América do Norte e o extermínio dos ameríndios ianques, siouxes, apaches, navajos, cheroquis, e tantos outros pele-vermelha. Deixemos para depois as cruzadas cristãs nos regimes coloniais (principalmente no Brasil), responsáveis pela “higienização religiosa” desses países e pelo expurgo de judeus, maçons, candomblecistas, e etc. Deixemos para depois as intriguinhas ainda vigentes entre os irmãos lá da gelada Irlanda do Norte, católicos e protestantes.

Não, não sou eu quem diz “chega de sangue”. Quem diz isso são os cristianismos ocidentais. Isso não quer dizer, todavia, que estão dizendo “chega de violência”. Porque violência não se faz somente com arcos e espadas, ou com paus, pedras e armas de fogo. Num tempo onde o derramamento de sangue em nome de Deus se tornou politicamente incorreto e socialmente indecoroso, a violência sofisticada é aquela que se especializou no reino do sentido, com o símbolo e com a palavra. Mais ou menos aquilo que o Pierre Bourdieu vem chamando aí de violência simbólica.

A violência simbólica – que no fundo deixa cicatrizes bastante concretas em suas vítimas – é aquela que se dá no campo do sentido. Seu ardil consiste em arruinar a legitimidade do ser do outro. É o terrorismo que se faz com a palavra, alvejando o outro naquilo que ele tem de mais íntimo, que é a sua própria percepção como gente no mundo. A mútua violência simbólica que as religiões cristãs deflagram entre si nem precisa ser assunto de discussão. É um escândalo quase natural, como natural é o ar que respiramos.

A violência cristã sofisticada como violência simbólica segue pleno curso nos nossos dias. A fobia das culturas locais é um desses casos, embora não seja nada novo. A evangelização no Brasil, mormente nos círculos protestantes e evangélicos, não tem consistido num violento atentado contra a cultura tupiniquim? A ética pessoal dos evangélicos, pretensamente deduzida da Bíblia, não coincide com um certo american way of life? Nossa musicalidade cristã, tanto aquela ainda marcada pelo tradicionalismo dos primeiros missionários protestantes, quanto essa influenciada pelo mercado gospel, não são importações norte-atlânticas? É da Bíblia que procede nosso trato aversivo e violento diante de determinados elementos de nossa própria cultura? Em caso de dúvida confira A gestação do futuro, onde Rubem Alves declararia que “levaria um grande tempo até que aprendesse a dançar e a gostar de samba, pois a única coisa que sabia era cantar as gospel songs norte-americanas”.

Nesse ínterim, vale a pena dizer alguma coisa rápida sobre a violência simbólica deflagrada contra a cultura e a religiosidade afro-brasileira.

Também aqui não estamos diante de nada novo. O professor Paulo D. Siepierski defenderia a tese de que a aversão religiosa de cunho cristão às manifestações culturais afro-brasileiras é somente a versão teológica do preconceito milenar direcionados a esses povos. Eu diria que se o Apartheid (“vida separada”) consistiu num movimento histórica e geograficamente circunscrito a um país, o apartheid teológico consistiu na maneira como os grupos cristãos se relacionaram com a cultura e com a religião africanas em todo tempo e em todo lugar. No Brasil, essa forma de violência simbólica se exacerba no neopentecostalismo. Enquanto os protestantes históricos elegeram a Igreja Católica como antítese, aqueles elegeram a religiosidade afro-brasileira. É a esta que dirigem sua violência discursiva, fora os casos de verdadeiras jihads com implicações físicas, dada as invasões de terreiros e os confrontos concretos com esses religiosos negros.

Para não alongar demasiadamente esse pequeno artigo, eu fecho dizendo alguma coisa sobre a violência cristã sofisticada como violência simbólica deflagrada contra certas minorias articuladas em torno da legitimidade de sua experiência sexual. E eu desejo me ater somente à homossexualidade, para não fazer referência às dezenas de outras possibilidades de sexualidade catalogadas hoje no âmbito das ciências do comportamento: bissexualidade, transexualidade, etc.

Não resta dúvida de que todo discurso homofóbico é simbolicamente violento. Também ele arruína a legitimidade da auto-percepção do outro. Ao se dizer isso, não se está legitimando a hossexualidade em si mesma. Mas já deveríamos ter aprendido que é preciso legitimar essa auto-percepção que o outro carrega. E aqui eu não me refiro à inclusão dos homossexuais nas comunidades cristãs. Pessoalmente sou todo pessimismo quando se trata de acreditar que um dia nossa teologia alcance tal nível de consciência e humanidade. Não! Estou me referindo ao próprio direito e o reconhecimento que o homossexual exige de ter legitimada sua auto-percepção existencial. Porque até contra isso temos assistidos cruzadas político-religiosas promovidas sobretudo por evangélicos brasileiros. Para quem duvidar, assista com mais assiduidade os programas evangélicos das manhãs de sábado.

Fechando.

Ao menos entre nós, cristãos ocidentais, é patente essa parceria histórica entre religião e violência. Pelo que vimos, os cristianismos não têm se docilizado em nada nessa caminhada. O que eles têm feito é sofisticarem as formas com as quais encarniçam as sociedades com o odor de sua violência. Nesses dias, politicamente correto é ser violento simbolicamente, por meio da palavra e do sentido. Como eu disse, as marcas dessa violência sofisticada são tão dolorosas e cruéis quanto eram os instrumentos de tortura da Santa Inquisição. Em caso de dúvida, perguntem às vítimas.


quinta-feira, 14 de maio de 2009

RELIGIÃO E VIOLÊNCIA


Contra certas formas discursivas sobre a destrutividade humana

Talvez uma das maiores contradições potenciais da ideologia religiosa – também do nosso velho protestantismo – consista no fato de que ao confessar um conhecimento revelado, e, portanto, supostamente autêntico em relação ao sentido profundo do mundo e da vida, ela opere a construção da falsa consciência, naturalizando relações assimétricas de poder e sacralizando comportamentos humanos reprováveis e indesejáveis. Para usar uma ilustração, isto corresponderia ao cego que insiste no exercício da oftalmologia.

Um exemplo disso está num tipo de discurso religioso perante as múltiplas modalidades da violência humana.

O discurso de alguns grupos religiosos sobre a violência está entre aqueles que poderíamos chamar de discursos negados ao nível público. Esses discursos negados são aqueles que circulam somente no nível interno das comunidades, sendo aceitos somente depois do pesado trabalho de formação ideológica ali. Caso contrário, isto é, sem esse processo de formação na ideologia religiosa, nem mesmos os crentes seriam capazes de aceitar e reproduzir tais discursos. Se eles são negados ao nível público, é porque se tem consciência de que, no fundo, são absurdos, e só podem fazer sentido para sustentar uma cosmovisão caduca, arbitrariamente tirada da Bíblia.

Essa é uma realidade íntima de toda religião: ocultar certas convicções do nível público, sobretudo do discurso evangelizador, a fim de não escandalizar.

Vamos ao exemplo de um tipo discurso religioso sobre a violência humana.

Parafraseando Paulo Freire eu diria que o problema central de um certo discurso da religião sobre a violência é a produção da desproblematização do presente[1]. Em termos práticos, a desproblematização do presente se traduz numa atitude passiva e por vezes cínica em face de realidades brutais de violência. O caso alagoano é dos mais eloqüentes.

Se levarmos em conta os diversos constructos teóricos em torno desse fenômeno – a violência política, policial, midiática, simbólica, concreta, urbana, estatal, institucionalizada e etc. –, poderíamos dizer que Alagoas teve sua construção civilizatória feita à base de violências múltiplas, quase sempre como instrumentos de manutenção de um poder oligárquico e impiedoso. Em casos como esse, o silêncio, se não é filho da alienação, é o fruto de um profundo e reprovável cinismo. Jung Mo Song[2] tem razão quando afirma que o cinismo de certas ideologias (e teologias) não está naquilo que elas dizem, mas naquilo que elas não dizem.

Esse discurso sobre a violência que certos grupos religiosos negam ao nível público é justamente aquele que liga o recrudescimento desse fenômeno aos esquemas escatológicos fundamentalistas. Dito peculiarmente, a violência é interpretada aí como sinal dos tempos em sentido estritamente teológico. A meu ver, essa representação da violência enquanto sinal dos tempos seria teologicamente legítima se tivesse fundo crítico. Relações sociais pensadas teologicamente, sobretudo à luz símbolo Reino de Deus, exigem, entre outras coisas, que aquelas violências acima citadas sejam rejeitadas. Nesse sentido, a violência pode ser perfeitamente interpretada teologicamente como sinal dos tempos, desde que o fundo crítico subjaza essa leitura.

Infelizmente, não é o que ocorre na forma dos discursos religiosos mais comuns sobre esse fenômeno humano. Sinal dos tempos, nesses casos, é o mesmo que sinal escatológico para a Igreja. Isso é possível porque as Igrejas vivem do mal incurável de se auto-proclamarem como concretizações do Reino de Deus. Assim, todos os elementos da História que deveriam apontar para a irrupção do Reino de Deus são entendidos como sinalizações para as próprias Igrejas. O recrudescimento da violência humana seria um desses elementos. Quanto mais elementos “sinalizadores” desse tipo se manifestam, mais se afirma a atitude escapista e apolítica desses grupos.

Nilo Odalia[3] tem razão quando diz que o ato violento não traz em si uma etiqueta de identificação. Quase sempre desconhecemos as raízes profundas da violência com que temos contato, mormente por meio da mídia. Além disso, às vezes são múltiplas as interpretações sobre o mesmo ato violento. Todavia, isso não quer dizer que as raízes da violência em suas diversas faces nos sejam inacessíveis, inatingíveis e inapreensíveis. Erich Fromm chamou de análise da destrutividade humana o labor de compreender as razões profundas da violência. No seu caso, o trabalho consistiu numa etiologia psicológica desses impulsos destrutivos.

O discurso que representa a violência e seu recrudescimento como sinalização escatológica para as Igrejas, pelo contrário, não esclarece nada. Do contrário, obnubila a realidade e engendra a falsa consciência. Além disso, sacrifica no altar da alienação toda possibilidade de contra-ofensiva, corroborando, assim, condições sociais onde a violência pode continuar campeando.

Há, por sua vez, outro sério problema ainda ligado a este tipo de discurso representacional da violência.

É amplamente sabido que a hermenêutica fundamentalista é politicamente conservadora. Historicamente esse conservadorismo político dos religiosos conservadores se traduziu não somente em simples identificação ideológica, mas em freqüentes adesões e cooperações ativas em práticas “purgatórias” ou “inquisitoriais” direcionadas a elementos considerados subversivos: comunistas, revolucionários, liberais, e etc.

Na prática, essa falsa consciência leva a outros três terríveis equívocos: (1) sacraliza o Estado como instituição maior de gerência social; (2) identifica o “espírito legítimo” desse Estado com as ideologias políticas conservadoras; (3) e se torna cega para uma das piores formas de violência, que justamente a institucionalizada pela via estatal.

***

Não dizer não é o mesmo que não comunicar. O silêncio comunica, e comunica eloqüentemente, conforme a situação. Por outro lado, certas religiões são tristemente verborrágicas. Vivem da ânsia de tudo saber e de tudo vaticinar. Enchem de palavras vãs realidades inefáveis da existência. A violência humana, embora possa ser perfeitamente discernível, tem o seu quê de inefabilidade em função de sua ancestralidade. Resiste triste e recorrentemente a todo progresso do espírito.

É muito dizer que a violência tem suas raízes na alienação humana, que biblicamente chamamos de pecado? Sim, é muito! É uma espécie de resumo do assunto. Mas suas formas, motivações, modalidades, sutilezas e ardis são desdobramentos que talvez a religião não possa dar conta. Nesse caso, silenciar é melhor que embotar a realidade com palavras falsas e ilusórias. Se couber algum discurso religioso nessas horas, será aquele autenticamente identificado com a vida.




[1] Freire falava em desproblematização do futuro como fruto das concepções mecanicistas e fatalistas da história. Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

[2] SONG, Jung Mo. Cristianismo de libertação: Espiritualidade e luta social. São Paulo: Paulus, 2007.

[3] ODALIA, Nilo. O que é violência. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1985.




domingo, 10 de maio de 2009

A FACE MATERNA DE DEUS


Um elogio das formas não-patriarcais da experiência religiosa

Quis a vida que minha formação humana de base fosse privada de uma influência materna conforme os padrões. Aos quatro anos de idade meus pais se separaram. Minha criação coube a meu pai. Isso era 1981. Hoje, 2009, eu completo um ciclo de 12 anos sem qualquer tipo de contato com a mulher que me concebeu.

É bem verdade que quer tenhamos sido criados pelo pai, quer ela mãe, nossa formação humana está perpassada significativamente pela cultura patriarcal. Assim como com o nascimento biológico trazemos inscritas em nossa constituição genética as predisposições biofísicas de nossa genealogia, com o nascimento cultural vão sendo impostas a nós as marcas de uma cultura onde vige o primado do macho. Então, ainda que em nossa criação familiar tenha prevalecido a figura da mãe, as demais instituições sociais – escola, igreja, mídia, etc. – permanecem como bastiões da cultura patriarcal. A internalização desses valores é, portanto, algo de que não podemos escapar.

Não obstante, tudo indica que a maternidade se configure como um dos símbolos mais adequados quando se trata de forjarmos nossas representações da existência humana, sobretudo quando se trata de nossa relação com a terra. Em contrapartida, a cultura ocidental – mormente o cristianismo – fez do pai a figura arquetípica por excelência. O que perdemos com isso?

É verdade, Jesus de Nazaré disse que Deus era Pai. Mais especificamente disse que Deus era Abba, que era a forma como as criancinhas diziam paizinho em aramaico. Mas também isso deve ser visto à luz do horizonte de seu tempo. Afinal, que afirmação humana sobre Deus tem o poder de ser unívoca? Deus é o mistério que transborda toda compreensão humana. Portanto, toda fala sobre Deus é uma espécie de golpe analógico. Só é possível dizer que Deus é Pai porque existe uma ínfima intersecção entre a paternidade divina e a paternidade humana. No entanto, elas não se confundem. A diferença qualitativa entre Deus Pai e o Homem Pai permanece infinita (Karl Barth).

Com efeito, se a possibilidade daquela analogia está atrelada na intersecção da experiência da paternidade divina e humana, temos muito mais motivos para dizer sem medo de cometer sacrilégio: Deus é Mãe. Porque essa intersecção é muito maior que aquela!

O recalque à maternidade e à feminilidade em Deus cresce com o desenvolvimento do ocidente. Em contrapartida, já a Torah sinalizava esse traço feminino e materno da divindade. Ruah, que é a palavra hebraica para Espírito, é uma palavra feminina. Segundo Antonio Magalhães, o relato mítico do Gênesis (pontualmente Gn 1,2) dá a entender que a ruah tenha sido uma espécie de útero da criação, isto é, o espaço vital que possibilitou o surgimento da vida. Calvino teria intuição semelhante ao adjetivar o Espírito Santo de fons vitae – fonte da vida –, o que lhe faculta a maternidade de todas as coisas.

Mas se o desenvolvimento teológico no ocidente – sobretudo em função das demandas da sociedade Greco-romana onde o Novo Testamento foi composto – consistiu num recalque à feminilidade e à maternidade na fala sobre Deus, é mister fazer menção a algumas tradições pouco conhecidas que expressaram essa sensibilidade. Jürgen Moltmann* em sua pneumatologia nos oferece inúmeros desses casos. No Evangelho dos Hebreus, por exemplo, se lê Jesus dizendo: “Logo tomou-me minha mãe, o Espírito Santo, por um de meus cabelos e transportou-me para o grande monte Tabor”. No escrito gnóstico-cristão Cântico das Pérolas a Trindade consiste em Deus como Pai, o Espírito Santo como Mãe, e no Cristo como Filho.

Para mim, o caso mais especial é o do Conde Zinzendorf, grande patriarca dos Irmãos Moravianos, para quem a Trindade, concebida segundo a imagem de uma família, era uma espécie de modelo da comunidade fraterna sobre a terra: “Como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é nosso verdadeiro Pai / e o Espírito de Jesus Cristo nossa verdadeira Mãe; porque o Filho do Deus vivo... é o nosso verdadeiro irmão. O Pai tem que nos amar e não pode fazer de outra maneira, a Mãe tem que nos guiar pelo mundo e não pode fazer de outra maneira, o Filho, nosso irmão, tem que amar as almas como sua própria alma, o corpo como seu próprio corpo, porque somos carne de sua carne e ossos de seus ossos, e não pode fazer de outra maneira”.

Moltmann conclui dizendo que “uma certa despatriarcalização da imagem de Deus tem como conseqüência também uma despatriarcalização e desierarquização da Igreja”. O dado triste disso tudo é o fato de que essas tradições estão entre aquelas que foram vencidas na história das Igrejas.

Sem dúvida o Deus estritamente patriarcal corresponde à uma hipostatização, no sentido de Feuerbach. Corresponde à projeção do desejo infinito de supremacia do masculino. Não há melhor fundamento que tal Deus para justificar as estruturas patriarcais tanto dentro das igrejas quanto fora delas. Nesse sentido Feuerbach, a meu ver, tem mais razão que Freud. Para o psicanalista vienense, Deus consistia numa produção do psiquismo universal a fim de socorrer os homens diante do seu infantilismo perante as intempéries da existência, perante as forças da natureza e, sobretudo, perante a realidade inescapável da morte. Mas Freud esqueceu que nesses casos é à mãe que suplicamos auxílio, e não ao pai.

Como eu disse mais acima, a intersecção entre a experiência materna-humana e a experiência materna-divina é muito maior que no caso masculino. Sim, Deus também é nossa Grande Mãe. Essa analogia também lhe cai muitíssimo bem!

Mãe, que como todas as mães, é fons vitae. Mas não é somente fonte da vida. É também vita vivificans. Mãe que, conforme Jesus de Nazaré, acolhe seus filhos e filhas tal como uma galinha acolhe seus pintos debaixo de suas asas (Lucas 13,34). Mãe que, conforme Isaías, consola como qualquer outra (Isaías 66,13).

Para mim já não há mais problema em pensar que o meu Deus (a minha imagem de Deus) é somente um produto de minhas projeções. Porque considero isso inescapável. Não há ato de fé e de crença em deuses e demônios, céus e infernos, que não se faça à base de projeções daquilo que nós somos. Nossa relação com Deus se dá sempre pela mediação da imagem que dele fazemos. Quem de nós põe em suspenso o turbilhão de pulsões, experiências, ambigüidades, memórias e desejos no ato de crer? Cremos com tudo isso. Melhor, cremos a partir de tudo isso. Nossa imagem de Deus quase sempre cumpre a função psicológica de aplacar os monstros e tapar buracos de nosso ser.

No meu caso, portanto, Deus é mais Mãe do que pai. Abaixo daquilo que Deus é em si mesmo, minha imagem dele me cura da ausência do amor materno-humano. Todas essas coisas, por sua vez, dizem respeito somente a nós mesmos. Deus permanece sendo o que é, a despeito de nossa fala sobre ele/ela e de nossas projeções ao seu respeito.

Ademais, reconhecer esse “rosto materno de Deus” (Leonardo Boff) seria uma forma sui generis de homenagear essa miríade de mulheres que sozinhas criam seus filhos, e por vezes anulam sua existência em função dos mesmos. Seria uma forma de homenagear esses seres que, assim como o Cristo, oferecem da própria carne para que seus filhos tenham vida.



* Cf. MOLTAMNN, Jürgen. O Espírito da Vida: Uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 152-155.