terça-feira, 16 de novembro de 2010

NEGRITUDE, RELIGIÃO E SOCIEDADE


Neocolonialismo religioso e racismo no estado de Alagoas
“Os gregos estavam tão acima de nós como nós estamos acima da raça negra”
(Augustus H. Strong – Teólogo norte-americano que formou a primeira geração de pastores batistas no Brasil)
Quando participei, há dois anos, como palestrante no encontro da Fraternidade Teológica Latino Americana (Setor Nordeste), lembro-me muito bem de ter sido indagado, durante o debate, acerca da ausência em minha fala das questões relacionadas ao racismo no estado de Alagoas. Obviamente, a questão me fora dirigida por conta de minha condição como teólogo negro. Na oportunidade, eu fazia uma leitura teológica da economia alagoana capitaneada pela indústria canavieira, denunciando-lhe a selvageria com que se apropria dos recursos naturais e com que acumula os meios de produção e a riqueza material produzida nesse estado.
Agora, mais de dois anos depois, e instigado pela proximidade do Dia da Consciência Negra, a pergunta do meu interlocutor volta com toda sua força. Ela tem extrema pertinência. O silêncio com que tratamos o tema é constrangedor. Isso porque já não restam dúvidas de que, no Brasil, produzimos as formas mais sutis de racismo do mundo, invisibilizadas pelo discurso do “mito da democracia racial”, mas perfeitamente visíveis na nossa estrutura social excludente e segregadora.
A branquitude, enquanto estratégia político-ideológica para os fins da hegemonia de determinadas visões de mundo, é uma das marcas explícitas da história da formação do povo alagoano. Seu correlato dialético e antitético é a negritude. Dialético e antitético porque a branquitude tem na negrutide uma necessidade, a fim de afirmar sua superioridade. Sem esse referencial dialético e antitético não haveria suporte para o discurso ideológico da hegemonia branca. Mas essa dialética não serve apenas para sustentar os discursos. Tem servido muito mais para dar o suporte material feito de braços e pernas trabalhadoras, sem os quais nenhuma superioridade pode se efetivar. Padre Antonio Vieira, num de seus sermões, dizia que o negro, após a derrocada da escravidão do índio, viria a ser “os pés e as mãos do senhor [branco]”.
O processo de formação do estado de Alagoas confunde-se, como todos devem saber, com a história da consolidação da agroindústria canavieira. E a consolidação desta, depois de encerrado o processo de dizimação das culturas indígenas do estado (mormente dos Caetés e dos Potiguaras), teve exclusivamente no sistema escravocrata africano o seu suporte laboral. Fernando Lira nos informa que “ao contrário do ocorrido com os índios, nem a igreja nem a coroa se opuseram à escravidão do negro. As ordens religiosas, como as beneditinas, estiveram até mesmo entre os grandes latifundiários de terra, que exploravam o trabalho escravo”. Os negros trazidos para Alagoas procediam majoritariamente de Angola e Guiné. Lira ainda nos diz que “no final do período colonial, Alagoas tinha uma população de 111.973 habitantes, dos quais 42.879 eram livres e 69.094 eram escravos”. Semelhantemente ao ocorrido na maior parte dos estados do Nordeste onde o ciclo do açúcar deixou sua marca, os povos negros comparecem como povos instrumentalizados em favor dos interesses político-econômicos das elites locais.
Esses fatos, amplamente conhecidos de todos – e é isso que torna dispensável uma descrição exaustiva dos mesmos –, são quase sempre apresentados como dados históricos sem nenhuma vinculação com a presente (des)estrutura social do estado de Alagoas. E minha tese fundamental neste artigo vai na direção de afirmar que a terrível desestruturação social de Alagoas tem no racismo um companheiro necessário e perene.
Para ficar com apenas um exemplo concreto de como o racismo tem na nossa atual estrutura sócio-político-econômica um lugar privilegiado, gostaria de mencionar os dados de uma pesquisa de 2003, realizada pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Utilizando dados do Censo 2000 do IBGE, aquele instituto de pesquisas revelava a existência de 1.850.000 pobres em Alagoas. Naquela época Alagoas tinha uma população geral de 2.800.000 habitantes, ou seja, 66% dessa população era considerada pobre. Desses pobres, 1.450.000 tinham procedência negra e índia (pardos, na infeliz expressão do IBGE). Em outras palavras, 78,3% dessa multidão de pobres eram pertencentes às matrizes negra, indígena e mestiça em geral. Seria essa correlação entre miséria e negritude/mestiçagem mera coincidência?
Como teólogo batista, não deixaria de perguntar pelo papel dessas igrejas nesse contexto. É amplamente sabido, como mencionado acima, que a Igreja Católica consentiu abertamente com o sistema escravocrata, e até se fez protagonista do mesmo, possuindo escravos africanos em algumas de suas ordens religiosas. Também é amplamente conhecido o famoso Quebra de Xangô em 1912, ocorrido em Maceió, quando as religiões de matriz africana foram terrivelmente perseguidas e sufocadas pelas autoridades políticas da época, dando origem à tradição do Xangô Rezado Baixo. De fato, tenho bastante curiosidade em saber como nosso protestantismo alagoano –, à época, junto com o protestantismo em todo Brasil, fervoroso defensor da liberdade religiosa promulgada em 1890 –, reagiu ao ver sufocadas as expressões de religiosidade africana neste estado. Teria o protestantismo alagoano defendido a liberdade de culto do Povo de Xangô, ou teria este corroborado a perseguição e o silenciamento desse povo negro?
Se os posicionamentos históricos do protestantismo em Alagoas forem considerados como estáveis, contínuos, e sem muitas alternâncias, responder à questão acima não será muito difícil.
O protestantismo no Brasil é multifacetado. Por isso é preciso deixar claro a quem se está fazendo referência. Neste artigo, nossas perguntas estão relacionadas àquela face do protestantismo brasileiro que vigorou como hegemônica até meados da década de 1980: o protestantismo de missão (onde se encontram os batistas).
Em todo o Brasil, a inserção do protestantismo de missão batista fez-se majoritariamente por intermédio das missões norte-americanas na segunda metade do século XIX. Alagoas, no entanto, registra uma peculiaridade em relação aos demais estados da federação. Aqui entre nós, diferentemente de outros lugares, a dependência da intervenção norte-americana permanece até os dias atuais. Parece seguro dizer que em nenhum outro estado brasileiro mais da metade dos templos batistas tenham sido subsidiados diretamente pelos norte-americanos, como ocorreu em Alagoas. Se estiverem certos aqueles que defendem que as missões protestantes norte-americanas representaram o braço religioso do neocolonialismo no Brasil, em Alagoas ainda estamos numa curiosa relação de submissão neocolonial no campo da religião. O estado de Alagoas parece possuir como peculiaridade a dificuldade de se libertar de relações patronais, como se vê claramente no campo da economia do açúcar, por exemplo.
Paulo D. Siepierski defenderia a tese de que a aversão religiosa de cunho cristão às manifestações culturais afro-brasileiras é somente a versão teológica do preconceito milenar direcionados a esses povos. Uma vez que ninguém nega o fato de que tais missões norte-americanas provindas do Cinturão da Bíblia (sul dos Estados Unidos) são profundamente racistas, compete-nos perguntar:
Ø Em que medida nosso protestantismo de missão (particularmente o batista) tem sido um dos bastiões do racismo no estado de Alagoas? A teologia e a prática das igrejas batistas ajudam a confrontar ou aprofundar o racismo em nosso estado?
Ø Em que medida a teologia e a prática dessas igrejas, assim como de seus mecanismos de educação, demonizam as expressões da religiosidade africana em Alagoas?
Ø Em que medida nossa ideologia religiosa funciona como força de contenção diante das expressões da negritude na cultura e na religião?
Ø A cultura negra se vê representada em nossos cultos? Caso não, por quê?
Ø Que representações sobre o “negro” e o “branco” estão presentes em nosso discurso religioso? Como esses conteúdos estão presentes na nossa pedagogia religiosa?
Se as chagas estruturais que afligem por tanto tempo a sociedade alagoana, refletidas nos piores indicadores sociais do Brasil, têm no racismo um companheiro necessário e perene, que contribuição estariam dando as igrejas protestantes à esta sociedade, com o trato que dispensam à cultura e às religiões do povo negro? Que efeitos colaterais nosso preconceito religioso contra a cultura e a religiosidade de matriz africana ajuda a produzir e corroborar em Alagoas?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

MANIFESTO CONTRA O EXTERMÍNIO DE MORADORES DE RUA EM MACEIÓ

MANIFESTO DE ENTIDADES CRISTÃS CONTRA O EXTERMÍNIO DE MORADORES DE RUA EM ALAGOAS


Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos
Mateus 5,6

Nós, representados pelas entidades cristãs que abaixo assinam este documento, desejamos nos dirigir a toda sociedade alagoana e a esta honrosa entidade, rogando-lhes que contribuam para uma intervenção contundentemente e comprometida com a apuração dos fatos envolvendo os assassinatos dos (até aqui) 31 moradores de rua em Maceió. Como entidades identificadas com o Evangelho da Vida (João 10,10), nos sentimos envergonhados por nosso estado estar sendo mais uma vez mencionado na mídia nacional como um lugar onde impera a cultura da morte. Entendemos, à luz de nossa fé, que cada pessoa humana, independente de sua condição de raça, credo, gênero, ou classe social, é imagem e semelhança do Criador (Gênesis 1,26-27), o que lhe confere total dignidade e valor. Ademais, cremos ainda que é dever dos estados democráticos fazer com que os Direitos Humanos sejam amplamente promovidos em favor de toda a sociedade.
Como entidades identificadas com o Evangelho de Jesus Cristo, desejamos manifestar nossa solidariedade às famílias dos 31 moradores de rua assassinados em Maceió, pois reconhecemos que a Boa Nova de nossa fé tem nos pobres um lugar privilegiado (Lucas 4,18-19). Neste sentido, unimos nossas vozes, em primeiro lugar, à Arquidiocese de Maceió na pessoa de seu Arcebispo Dom Antonio Muniz Fernandes, assim como a todas aquelas entidades e demais pessoas de boa vontade, para quem a vida é o dom mais precioso ofertado por Deus aos seres humanos. Reiteramos, portanto, nossa solicitação para que as entidades competentes não meçam esforços no sentido de oferecer à sociedade alagoana uma resposta rápida e uma intervenção urgente a fim de que cesse o clima de terror instalado nas ruas de nossa capital. Até quando nossas autoridades tratarão com parcimônia a cultura de morte que insiste em marcar o estado de Alagoas? Até quando os mais pobres, especialmente estes que agora são vítimas pontuais dos crimes de mando, permanecerão à mercê do Direito à Vida, que é o mais fundamental entre todos? Até quando nossas autoridades políticas tratarão o problema da segurança pública como um problema de poucos, em detrimento de todos os alagoanos e alagoanas?   
Com este manifesto, desejamos tornar público a toda sociedade alagoana nosso repúdio ao presente estado de coisas. Ele nos envergonha e nos enche de consternação. Os moradores de rua, vítimas dos presentes crimes na nossa capital, são filhos e filhas de Deus e nossos irmãos e irmãs. Todavia, tal vergonha e consternação com os últimos fatos decorridos não anulam nossa esperança numa mudança estrutural. A sede de justiça é uma marca do Povo de Deus (Mateus 5,6). Fomentados por ela é que concluímos este manifesto e esta petição, rogando mais uma vez a esta entidade para que, junto com as demais entidades competentes, contribuam para que “a justiça corra livre como um rio perene” em nossa querida Alagoas (Amós 5,24).

Solidariamente,

Fraternidade Teológica Latino Americana (FTL) – Núcleo Alagoas
Convenção Batista Alagoana
Ordem de Pastores Batistas do Brasil - Seção Alagoas
Aliança de Batistas do Brasil
Igreja Batista na Forene (Maceió)
Igreja Batista do Pinheiro (Maceió)
Igreja Batista em Penedo-AL
Igreja Batista Alvorada (Campo Alegre-AL)
Seminário Teológico Batista de Alagoas (SETBAL)
Evangélicos Pela Justiça (EPJ)
Madrugada do Carinho com Deus em Belo Horizonte
Ministério Vida (Guaratinguetá-SP)
Congregação Batista em Chã Preta-AL
Aliança Bíblica Universitária - Maceió

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!


Sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião
“Quem vê um pântano à luz da lua pode enganar-se: aquela lhe parecerá uma visão de paz. Mas, por baixo, não passa de podridão e lama em fermentação. Nós não queremos a paz dos pântanos, a paz enganadora que esconde injustiças e podridão”
(Dom Helder Câmara)
Marcos Monteiro havia dito em Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades, que Maceió nos permite visualizar o que está acontecendo em nosso planeta. Nessa cidade – segue Marcos – encontramos todos os problemas do nosso século, da prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência institucional. Se não me engano, Marcos Monteiro morou aqui na década de 1990. No entanto, sua intuição segue bastante atual. Maceió continua sendo uma vitrine interessante para se ver o mundo. Mais ainda para se ver o Terceiro Mundo! Ao modo de um ponto do holograma, Maceió hospeda em si toda a complexidade das lutas que se travam em muitas partes do mundo hoje.
Na manhã de hoje (03/11) as mulheres dos presidiários do Baldomero Cavalcante (o “Cadeião”), próximo à UFAL, voltaram a interditar a BR-104, com piquetes de pneus queimados, impedindo o trânsito nos dois sentidos. Eu saía da UFAL para casa. Para não ficar preso no congestionamento, tomei um desses transportes alternativos e perambulei por duas horas pelas ruas e vielas não pavimentadas do bairro Santos Dummont. O motivo da manifestação, segundo o noticiário, havia sido a suspensão da entrada de objetos suspeitos no presídio e a restrição das visitas.
A manifestação das mulheres dos presidiários do Cadeião pode ser vista por muitos ângulos diferentes. Para o cidadão ordinário que já anda meio ressentido com protestos desse tipo, e só deseja voltar para casa depois do trabalho, da escola ou da universidade, a manifestação das mulheres quase sempre é vista como um vandalismo disfarçado de reivindicação, que penaliza quem não nada tem a ver com o problema. Para a polícia (epifania do poder repressor do Estado!), obviamente, ali está uma possibilidade de perigo à ordem pública a ser reprimido até que a ordem se refaça. Para a imprensa, o piquete das mulheres dos presidiários é somente mais um fato corriqueiro a merecer poucas linhas num editorial da seção “cotidiano” e poucos minutos no jornal das seis.
Pois de minha parte penso que a “desordem” dessas mulheres é tão legítima quanto necessária. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que aquilo que chamamos de “ordem” é caos, e aquilo que chamamos de “caos” é útero de uma ordem nova, diferente, justa e mais humana. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que nossa paz é uma “paz de pântanos” (Dom Helder), que esconde injustiças e podridão.
Essas mulheres são todas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. O encarceramento de seus companheiros agrega a isso um fardo que nenhum “sexo frágil” suportaria carregar. Já pude conversar com algumas delas, e descobri como seu cotidiano é transformado pela prisão de seus companheiros. São elas que se encarregam da administração da casa, duplicando a jornada de trabalho. Sobre elas duplica o cuidado dos filhos, e a elas compete a batalha no campo judicial para fazerem valer os direitos que seus companheiros têm perante a lei. Não podendo pagar os serviços dos melhores advogados, recorrem à Defensoria Pública, que, como todo órgão do Estado, convive com a morosidade e com uma maneira peculiar de tratar as pessoas mais pobres de nossa cidade, marcada sempre por um semi-descaso. Nos dias de visita, dormem nas filas, sempre ao relento. O piquete, portanto, é para elas a única forma de fazerem-se ouvir perante a sociedade. Como mulheres que se sabem sujeitos de certos direitos, não podem fazer como as feministas mais sofisticadas, que atuam no campo da ciência e da ideologia. De que outra forma essas mulheres invisíveis poderiam fazer ouvir a sua voz?
O que é caos? O que é ordem? O que é paz? O que é desordem? São as questões suscitadas pelo piquete de pneus das mulheres dos presidiários do Cadeião. Caos e ordem são apenas uma questão de perspectiva? Se for, assumo a perspectiva dessas mulheres baderneiras, incontidas, desordeiras, rebeldes, quase sempre negras e sempre pobres. Algumas delas foram presas, acusadas de apedrejar os ônibus que tentaram atravessar seu piquete. Duvido que tal atitude da polícia, que mais do que uma ação contra indivíduos é uma tentativa de intimidação do movimento, sirva para anular a força dessas mulheres.
Assim, já sei que destino dar aos pneus velhos no fundo do meu quintal. Vamos impedir a proliferação do mosquito da Dengue!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

SOBRE A MORTE DE MORADORES DE RUA EM MACEIÓ

Olá Pastores do campo alagoano, e especialmente de Maceió!

O que se poderia fazer enquanto Ordem de Pastores Batistas e Convenção Batista Alagoana no que tange ao problema abaixo citado? Me ponho à inteira disposição de todos vocês para servir no que estiver ao meu alcance. Pensem na questão!



"O que me incomoda não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons" (Martin Luther King Jr. - Pastor Batista)

Paz a todos!

Pr. Paulo Nascimento 


NOTA DA ARQUIDIOCESE DE MACEIÓ SOBRE AS MORTES DOS MORADORES DE RUA
 
“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João 10,10)
 
O Arcebispo de Maceió, comovido diante das inúmeras mortes dos moradores de rua sente a responsabilidade de declarar o que se segue:
É do conhecimento público que 30 (trinta) moradores de rua foram assassinados este ano em Alagoas – 29 (vinte e nove) em Maceió e 1 (um) em Arapiraca – e que até agora as investigações não deram nenhum resultado. A Arquidiocese de Maceió não pode deixar de erguer sua voz e denunciar energicamente esta situação.
A Igreja acompanha este longo e doloroso calvário de nossos irmãos e irmãs que vivem nas ruas. Inúmeras vezes, de forma pública e privada, dirigindo-se às autoridades sem obter resposta.
A Igreja Católica ergue sua voz porque se sente ferida em sua missão de proteger a dignidade humana que considera sagrada, porque procede de Deus, sua Testemunha e Juiz.
Consterna-se, ademais, por essa forma de extermínio que sofrem os povos da rua, o que é uma ofensa à sensibilidade dos que amam este Estado e desejam caminhos de respeito e justiça que conduzam a uma convivência fraterna. Essas mortes, lamentavelmente, contribuem para deteriorar a imagem de Alagoas diante do país e do mundo.
Estas mortes nos devem fazer tomar consciência de tantas violações, agressões e ameaças que os moradores de rua sofrem. Com que freqüência se ofende a dignidade humana! Todo ser humano é filho de Deus. E nenhuma organização, nenhuma pessoa tem o direito de perseguir, maltratar, violentar ou matar alguém.
Partilhando da dor destes irmãos que vivem e sobrevivem nas ruas, pedimos:
1.      Que em nome de Deus respeitem a vida e a integridade física de nossos irmãos moradores de rua.
2.      Que as autoridades, encarregadas de velar eficazmente pela segurança das pessoas e do bem comum, que investiguem com seriedade estes fatos tão dolorosos, evitando que os autores permaneçam na mais absoluta impunidade.
3.      Que os católicos de nossa Arquidiocese e as pessoas de boa vontade contribuam, com suas atitudes, a criar um clima de verdadeira fraternidade e de efetiva justiça, pois acreditamos que ainda é tempo de reiniciar um novo caminho rumo à convivência social justa e fraterna e rumo à paz que todos nós almejamos.
 
Exortamos todos a defender a vida. A fé em Jesus Cristo nos impele a criar com nosso esforço, nossa união e nossa capacidade de luta, condições de vida em que o respeito, a participação e a justiça sejam algo mais do que palavras. A VIDA É UM DOM DE DEUS. DEVEMOS DEFENDÊ-LA!
 
Maceió, 28 de outubro de 2010
 
Dom Antônio Muniz Fernandes, O.Carm
                                                                                               Arcebispo Metropolitano de Maceió

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

NOTAS SOBRE O PNDH-3


Para quem não leu o PNDH-3, e prefere formar opinião com base no que os outros dizem, vão essas breves notas.

(1) O PNDH-3 não é uma inciativa do Governo Lula, mas é uma iniciativa de porte global, iniciada na década de 1940, por conta dos efeitos da 2ª Guerra Mundial. A Conferência de Viena, em 1993, é o momento base dessa iniciativa. Veja o que diz o prefácio do próprio documento:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, lançada em 10 de dezembro de 1948, fundou os alicerces de uma nova convivência humana, tentando sepultar o ódio e os horrores do nazismo, do holocausto, do gigantesco morticínio que custou 50 milhões de vidas humanas em seis anos de guerra. Os diversos pactos, tratados e convenções internacionais que a ela sucederam construíram, passo a passo, um arcabouço
mundial para proteção dos Direitos Humanos.

Em 1993, a comunidade internacional atualizou a compreensão sobre os elementos básicos desses instrumentos na Conferência de Viena, da ONU, fortalecendo os postulados da universalidade, indivisibilidade
e interdependência. Universalidade estabelece que a condição de existir como ser humano é requisito único para a titularidade desses direitos. Indivisibilidade indica que os direitos econômicos, sociais e culturais são condição para a observância dos direitos civis e políticos, e vice-versa. O conjunto dos Direitos Humanos perfaz uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada. Sempre que um direito é violado, rompe-se a unidade e todos os demais direitos são comprometidos.

A Conferência de Viena também firmou acordo sobre a importância de que os Direitos Humanos passassem a ser conteúdo programático da ação dos Estados nacionais. Por isso, recomendou que os países
formulassem e implementassem Programas e Planos Nacionais de Direitos Humanos.

(2) No Brasil, o primeiro Governo a implementar essas diretrizes foi o de FHC, em 1996, sendo que o atual PNDH-3 é somente a continuidade de um movimento que se inicia muito antes do Governo Lula. Veja se não é isso que diz o prefácio do próprio documento:

As diretrizes nacionais que orientam a atuação do poder público no âmbito dos Direitos Humanos foram desenvolvidas a partir de 1996, ano de lançamento do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH I. Passados mais de dez anos do fim da ditadura, as demandas sociais da época se cristalizaram com maior ênfase na garantia dos direitos civis e políticos. O Programa foi revisado e atualizado em 2002, sendo ampliado com a incorporação dos direitos econômicos, sociais e culturais, o que resultou na publicação do segundo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH II.

A terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 representa mais um passo largo nesse processo histórico de consolidação das orientações para concretizar a promoção dos Direitos
Humanos no Brasil. Entre seus avanços mais robustos, destaca-se a transversalidade e inter-ministerialidade de suas diretrizes, de seus objetivos estratégicos e de suas ações programáticas, na perspectiva da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos.

(3) Quem quer assuma a presidência vai ter que lidar com essa demanda, que, repito, não é parte da ideologia política do PT, mas é parte de uma consciência global, peculiar aos Estados laicos do Ocidente, assentada numa visão totalmente secularizada dos seres humanos e de suas comunidades.

(4) É óbvio que o texto tem pontos de choque com a sociedade. Apesar de representar, como eu disse, uma perspectiva totalmente laica da vida, o texto se dirige a uma sociedade plural, onde a religião ainda tem poder de influência. Acho que nós, religiosos, enquanto cidadãos, temos direito de contestar o documento em muitos de seus pontos. Não é esse o problema. O problema é a forma ideologizada com que a coisa tem sido feita. Quantos crentes conheciam o PNDH-3 antes de Pirajine e Malafaia começarem sua campanha anti-PT?

(5) Eu vos rogo (como meu homônimo Apóstolo Paulo) pelas compaixões de Deus, que acabemos com essa mentalidade de rebanho manso, cuja tática principal é lançar mão do famoso "argumento de autoridade". Ives Gandra, por exemplo, embora seja um jurista virtuoso e renomado, não é Deus! Ives Gandra é um ser tão condicionado e ideologicamente posicionado como qualquer um de nós! Sua interpretação do PNDH-3 é somente "uma interpretação", ideologicamente situada. Vejam no vídeo em anexo quantos outros ótimos juristas interpretam o PNDH-3 de forma bem diversa.


Abraços!

sábado, 23 de outubro de 2010

ONDE ESTÁ A “OUTRA IGREJA POSSÍVEL”?


O Evangelho e suas topologias alternativas

Não me interessa o estudo das utopias, mas sim das heterotopias de nosso tempo

(Michel Foucault)

Em agosto de 2005, por conta de circunstâncias da época, eu chegava à conclusão num artigo não divulgado de que não queria mais ser identificado como “evangélico”. Hoje eu gozo o privilégio da proximidade de muita gente que divide angústias semelhantes. Naquela época, entretanto, eu experimentava uma espécie de exílio geográfico, pastoral e teológico. Em 2005 as mídias digitais ainda não eram, para mim, um espaço cotidiano de consumo de informação. Portanto, eu chegava à tal conclusão sozinho.

Eu dizia que o termo “evangélico” havia se tornado uma alcunha religiosa sem sentido. Melhor, dizia que o seu sentido atual destoava totalmente daquilo que se poderia depreender dos Evangelhos da Bíblia. E se eu discordava de Nietzsche quando ele dizia que o único cristão havia morrido na cruz, concordava com ele quando dizia que depois da cruz, a boa nova entre nós havia se tornado uma “má nova”, e o Evangelho um “desevangelho”.

Por outro lado, eu também já estava bem consciente de algumas coisas importantes: (1) que a diferença qualitativa entre os “evangélicos” e o Evangelho não iria mudar, mas iria aumentar gradativamente conforme tais grupos fossem conquistando mais adesões e mais poder de influência na sociedade brasileira; (2) que o aumento numérico dos “evangélicos” traria mudanças significativas à sociedade brasileira, ainda que essas mudanças fossem contrárias àquelas com as quais eu sonhava; (3) que a despeito de tudo isso, havia entre os “evangélicos” uma espécie de “minoria abraâmica” (para usar uma expressão de Dom Helder), progressista, ecumênica, libertária, reflexiva, atuante, que poderia ser um caminho interessante de militância cristã.

Me converti no fim de 1997. No início de 1999 fui para o seminário, que concluí em 2002. Desde cedo eu quis conhecer e me aproximar daquelas minorias abraâmicas. Do ponto de vista da reflexão teórica, ainda no seminário a Teologia da Libertação me aparecia como um vislumbre, embora fosse para mim, desde sempre, uma coisa distante e impraticável no meu círculo eclesial batista. O encontro com a Fraternidade Teológica Latino Americana (FTL), sobretudo pela via dos fóruns de reflexão em Paripueira-AL, chegaram depois disso como um renovo, testemunhando e sinalizando concretamente para a possibilidade de efetivação de toda aquela visão evangélica progressista, politizada, inclusiva e reflexiva.

Mas aos poucos eu ia descobrindo que muitos entre os “evangélicos”, antes identificados com essas minorias abraâmicas, haviam decidido fazer outros caminhos, para além dos grupos progressistas que existiam entre nós. Eu ia descobrindo que alguns deles, sem perder a consciência identitária do Evangelho, haviam decidido trocar de trincheira. Três campos pareciam ser as alternativas preferidas para essas pessoas: a política partidária, as ciências humanas e a educação. Estes foram três os movimentos feitos por muitos pastores/as e professores/as de seminários evangélicos, sobretudo durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Apesar de esse ter sido o caminho de muitos/as, alguns casos são emblemáticos por conta da divulgação que ganharam. Entre eles estão casos de Rubem Alves, Júlio de Sant’ana, Hugo Assmann e Paulo S. Wright.

Nos últimos dias tenho conversado com muitos “evangélicos” no ambiente universitário, e embora a diversidade de opiniões seja uma marca indelével entre nós, pode-se notar um clima predominante de decepção em face das últimas convulsões envolvendo as igrejas e as eleições presidenciais no Brasil. O grosso da decepção gira em torno de poucos tópicos: (1) a infantilidade e a parcialidade dos argumentos usados na campanha anti-PT pelas igrejas; (2) a facilidade com que boatos e difamações encontram espaço e se propagam entre/através dos “evangélicos”; (3) a identificação dos “evangélicos” com as ideologias políticas conservadoras da direita.

A maioria dessas pessoas com quem converso é muito jovem. A maioria delas não vê possibilidades de que algo criativo surja de entre a massa “evangélica” no Brasil nos próximos anos. Uma boa parte desses jovens não conhece os caminhos que aqui estamos chamamos de “minorias abraâmicas”, e entre aqueles que os conhecem, vigora bastante descrença. Muitos desses jovens, encantados com as possibilidades da vida acadêmica, pensam em deixar suas igrejas para se embrenhar nas causas humanas pela via única dos meios seculares. Para os tais, o caminho do Evangelho se confunde exclusivamente com o caminho das igrejas, de tal maneira que se estas se corrompem, aquele também.

Por outro lado, há pouquíssima gente com a consciência de que o caminho do Evangelho é multiforme, e ultrapassa a ação das igrejas. Pouca gente sabe que a política partidária, as ciências humanas e a educação podem ser alguns dos veículos legítimos a serem trilhados com a consciência do Evangelho. Afinal, “toda boa dádiva e todo dom perfeito procedem de uma única fonte, que é Deus” (Tg 1,17). Pouquíssima gente tem a consciência de que tais caminhos não precisam ser alternativas que excluam a caminhada institucional das igrejas. É perfeitamente possível conjugá-las, desde que a atitude de crítica e autocrítica recíprocas estejam presentes.

Eu estou entre aqueles que insistem em crer que “outra igreja é possível”. Mas, com toda honestidade, eu não ficaria triste se a presente desilusão com os “evangélicos” produzisse novos Rubems Alves, novos Júlios de Sant’ana, novos Hugos Assamann, novos Paulos Wright. Eu não ficaria triste se a presente decepção com nossas igrejas produzisse mais gente que, com a consciência identitária do Evangelho, invadisse o seio do mundo por novas trincheiras: da política, da ciência ou da educação. Eu não ficaria triste se essas pessoas, por meio desses meios ditos seculares, contribuíssem na afirmação da vida, na promoção da justiça social, na inclusão dos neo-impuros, na promoção da alegria e da beleza.

Porque se o papelão que igrejas, líderes e crentes “evangélicos” estão produzindo nessa campanha presidencial é decepcionante, também é decepcionante não reconhecer que os caminhos do Evangelho são maiores que os caminhos dessas igrejas.

Não penso que isso seja uma regra geral, mas há casos em que é necessário desertar das igrejas para ser fiel ao Evangelho, que é promoção de vida com abundância (Jo 10,10). Temos nos dedicado por muito tempo à construção de nossas utopias, de nossos sonhos, que são mais do que legítimos. Mas acho que seria a hora, seguindo uma dica de Foucault, de pensarmos tanto nas utopias quanto nas heterotopias, isto é, de darmos atenção a esses “lugares estranhos” por onde Deus também vai deixando suas pegadas, porém sem os carimbos eclesiais.

sábado, 2 de outubro de 2010

CRESCER, APARECER... E AMADURECER


Sete teses sobre a teo-ideo-logia evangélica no Brasil
Há mais de ano atrás, em maio de 2009, eu havia escrito o seguinte sobre os evangélicos e a política no Brasil: Sim, os evangélicos cresceram e apareceram! Saltamos de 5 ou 7 por cento no início da década de 1990 para mais de 15 por cento em dez anos. Em 2000 o IBGE dizia que éramos uns 26 milhões de crentes tupiniquins. Talvez beiremos os 30 milhões atualmente. Tamanho crescimento religioso é um dado sociológico impossível de passar despercebido por quem quer que seja. Já que crescemos tanto e já estamos aparecendo positivamente até na Rede Globo, seria também o momento de não entrarmos num jogo cuja regra maior parece evidente: fazer-nos massa de manobra! Afinal, gente crescida é gente que deve aprender a cuidar bem de si!
Ao que parece, até o momento continuamos a crescer e a aparecer, mas ainda não amadurecemos.
Admito que as últimas convulsões no mundo evangélico brasileiro, relacionadas ao futuro político de nosso país, ajudaram a reforçar a incômoda tese acima. Vou tentar expor minhas razões em forma de sete pequenas teses (hipo-teses), bem no estilo de Karl Popper.
Minhas hipo-teses são as seguintes:
1. Não aprendemos com nossos próprios equívocos históricos.
2. Não ultrapassamos a mentalidade de gueto.
3. Preferimos os conteúdos prontos da difamação ao debate franco e aberto de idéias.
4. Continuamos a ver na iniqüidade social um fato natural.
5. Desprezamos o fato histórico de que já fomos minoria desprivilegiada.
6. Tememos as conseqüências de um Estado totalmente laico.
7. Confundimos crítica com desunião, sectarismo e desamor.
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1. Não aprendemos com nossos próprios equívocos históricos. Não amadurecemos ainda porque desprezamos o fato de que a estratégia de demonização de partidos de esquerda no Brasil não é nova. Na verdade, tanto a demonização quanto a criminalização de partidos e movimentos de esquerda – dos quais o MST é só um exemplo – têm sido uma constante no nosso país. O campo religioso evangélico brasileiro parece extremamente fértil aos conteúdos desse tipo de ardil ideológico. Em 1989 e em 2002 tais conteúdos se apresentavam sob a ameaça do fechamento das igrejas e do cerceamento da liberdade religiosa, por conta de uma suposta ideologia comunista defendida por Lula. Àquela época, tal como se vê agora, a mobilização anti-Lula e anti-PT tornou-se amplamente aceita por nossas igrejas. Duas coisas poderiam ser ditas em função disso: a) ou a falta de memória histórica permanece sendo um mal incurável entre nós, ou,b) de fato, não estamos dispostos a interpretar aqueles fatos como um terrível equívoco histórico com o qual deveríamos aprender a corrigir nossos procedimentos atuais.
2. Não ultrapassamos a mentalidade de gueto. Não amadurecemos ainda devido ao fato de que não desejamos romper com a mentalidade de gueto. A mentalidade de gueto se caracteriza, entre outras coisas, pelo fenômeno grupal da formação de uma consciência de status de superioridade em relação a outros grupos sociais. Em decorrência disso, aparece a dificuldade de relacionamento com grupos diferentes. Erich Fromm chamava a esse fenômeno de “narcisismo de grupo”. No entanto, quando tais grupos sentem que seus valores estão sendo ameaçados, e tais valores coincidem com os de grupos outrora antagônicos, “os inimigos fazem as pazes”. Nós gostaríamos muito de ver ocorrer no Brasil, por exemplo, uma aproximação sincera entre evangélicos e católicos. Além de ser um grande sinal de fraternidade para a sociedade, muita coisa interessante em termos missionários poderia aparecer daí. Mas a aproximação que se assiste agora, fundamentada somente na necessidade de proteger interesses particulares, demonstra o quanto ainda somos marcados pela mentalidade de gueto. O “ecumenismo interesseiro” que a gora se vê, e que certamente se dissolverá após a eleição, deve ser visto por nós com profunda vergonha.
3. Preferimos os conteúdos prontos da difamação ao debate franco e aberto de idéias. Não amadurecemos ainda porque continuamos, como povo evangélico, avessos ao pensamento e à reflexão. É lamentável que pacotes ideológicos profundamente questionáveis sejam aceitos entre nós com base unicamente no “poder pastoral” (Michel Foucault). Digo isso não somente em relação às informações recentemente veiculadas pela campanha anti-PT nas igrejas evangélicas. Essa postura se estende a muitos outros pacotes teo-ideo-lógicos que encontram fácil adesão no campo religioso evangélico brasileiro, sem qualquer reflexão crítica. Pastores e pastoras estão sujeitos aos mesmos condicionamentos histórico-sociais que qualquer pessoa. Disso deriva o fato de que eles também erram. A verdade de suas declarações, portanto, não deve repousar apenas em seu status de líderes religiosos. Junto com a confiança que devemos àqueles e àquelas que se dedicam aos cuidados de nossas almas, deveríamos deixar de prontidão o nosso senso crítico. Por exemplo, quantos pastores e pastoras que encabeçaram mobilizações anti-PT de fato discutiram o PNDH-3 ou a PL-122/2006 com suas igrejas? João Alexandre parece ter toda razão quando canta “É proibido pensar!”.
4. Continuamos a ver na iniqüidade social um fato natural. Não amadurecemos ainda, pois os novos fatos que circulam entre nós, sobretudo aqueles ligados às advertências contra a “legalização da iniqüidade” via PT, evidenciam o quão pobre permanecem as nossas análises sociais. É quase inacreditável que nossas melhores lideranças aceitem e divulguem a idéia de que somente agora corremos o risco da legalização da iniqüidade. E é vergonhoso que isso encontre ampla aceitação em nossas igrejas. Os crimes contra a liberdade de expressão cometidos durante a Ditadura Militar entre 1964 e 1985 não foram expressões de iniqüidades legalizadas? A desigualdade social de nosso país não é produto de uma iniqüidade historicamente legalizada? O tratamento desigual dado pelo nosso Código Penal aos magistrados, parlamentares e portadores de curso superior no Brasil, não é expressão de iniqüidade legalizada? A coexistência de latifúndios e favelas não é expressão de iniqüidade legalizada? Ou nada disso seria iniqüidade? Ou são fatos naturais da vida social, de tal maneira que sequer pensamos neles como problemas? Será que nossa falta de percepção desses fatos como iniqüidades não está ligada com nossa visão de mundo tacitamente burguesa? Sei que não há quem falte, entre nós, quem enxergue tudo isso como “vontade de Deus”. Lamentavelmente.
5. Desprezamos o fato histórico de que já fomos minoria desprivilegiada. Ainda não amadurecemos porque nos falta memória histórica. Sabemos quase tudo sobre a Bíblia, mas quase nada acerca de nossa própria História como grupos religiosos no Brasil. Hoje, achamos ruim que grupos minoritários se articulem em função dos seus interesses. Mas esquecemos que já passamos pelo mesmo estágio quando éramos minoria desprivilegiada. Hoje, trememos de medo perante os desafios de um Estado laico. Mas esquecemos que fomos uma das principais forças históricas para a construção do Estado laico brasileiro. Como pastor batista, eu desejo muito que um dia possamos ter uma Nação cristã. Mas também afirmo sem medo de ser mal compreendido: Deus nos livre de um Estado cristão! Uma Nação cristã não necessita de um Estado cristão. A História já mostrou o quão perigosos, sanguinários, perseguidores e anticristãos são todos os Estados cristãos.
6. Tememos as conseqüências de um Estado totalmente laico. Nosso pavor diante de um Estado radicalmente laico prova que não amadurecemos ainda. Afinal, onde se radica nosso desejo por parlamentares evangélicos? Onde se radica nosso desejo por leis estatais que reflitam nossa visão de mundo? Onde se radica nossa rejeição aos projetos de Lei e às políticas públicas de inclusividade de certas minorias? Em nosso apreço pela família? Em nosso zelo pela herança doutrinária cristã? Talvez seja, em parte. Mas eu acrescentaria mais uma razão. A campanha anti-PT entre os evangélicos, sua defesa por leis que reflitam seus valores religiosos, e sua recusa a um Estado totalmente laico, refletem também seu desejo por seguridade. Não queremos enfrentar, como os primeiros cristãos, as conseqüências de um Estado que nos desafie com sua visão secularizada do ser humano. Queremos seguridade e conforto. Nossa honra seria muito melhor afirmada no enfrentamento corajoso das conseqüências de um Estado totalmente laico, do que com a influência da religião sobre nossas Leis. Conforto e seguridade são itens da teo-ideo-logia evangélica média que quase ninguém está disposto a negociar.
7. Confundimos crítica com desunião, sectarismo e desamor. Não amadurecemos ainda porque não sabemos lidar bem com a crítica, confundindo-a com desunião, sectarismo e desamor. Na contramão dessa postura, Paul Tillich dizia em sua Teologia Sistemática que “a crítica é também uma forma de comunhão”. Um dos conceitos mais caros da obra tillicheana é o conceito de “princípio protestante”. No que isso consiste? Consiste no fato de que deveríamos, como grupo religioso, estar sempre abertos à crítica e sempre prontos para a autocrítica. Conforme Tillich, mais do que qualquer confissão doutrinária, é essa honestidade crítica aquilo que mais deveria caracterizar as igrejas protestantes. Mas, na prática, os debates envolvendo o futuro político do Brasil revelam o quanto a crítica é um demônio contra o qual não sabemos lidar. Entre as táticas mais imundas encontradas nessas discussões está a rotulação do outro como “fundamentalista”, “reacionário”, “...ólogos espirituais”, “marxistas”, “liberais” etc. Quase sempre a rotulação é produto de quem se considera acima da crítica. Quase sempre ela é a forma covarde de se furtar a um exame sério das idéias em jogo.