O protestantismo brasileiro em debate à luz de Max Weber e Paul Tillich
Abrindo a conversa
Rubem Alves tinha razão quando nos lembrava que “protestantismo” é uma palavra que nunca deveria ser pronunciada no singular. São tantas as suas faces – mormente no Brasil – que deveríamos sempre pronunciá-la no plural. Isso ele escreveria em 1978, em Protestantismo e repressão. O que ele não teria dito acerca desses mesmos grupos religiosos depois de decorridos mais de 30 anos que acumularam uma hiper-fragmentação certamente incalculável?!
A sociologia da religião no Brasil tem tido que enfrentar o dilema da hiper-complexidade e da hiper-fragmentação quando se trata de estudar esses grupos religiosos. Em função de tamanha diversidade, não se pode falar em uma teologia do protestantismo brasileiro, ou nas implicações sociais do protestantismo no Brasil, simplesmente porque são múltiplas e diversas suas faces, suas teologias e suas implicações sociais. Somos heterogeneidade pura!
Seguindo a linha de um dos aspectos metodológicos adotados por Max Weber em seu trabalho intelectual, a sociologia religiosa no Brasil tem recorrido aos tipos ideais para tornar mais leve a tarefa de entender os segredos das igrejas protestantes brasileiras. São muito conhecidas algumas dessas tipologias do protestantismo brasileiro, sobretudo as de Rubem Alves (Protestantismo e repressão), Martin N. Dreher (A Igreja Latino Americana no contexto mundial) e Ricardo Mariano (Neopentecostais – Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil).
Para dizer alguma coisa sobre os grupos religiosos em foco, eu desejaria neste texto seguir não somente o recurso tipológico, mais também algumas intuições teóricas sugeridas por Max Weber e Paul Tillich. Eu gostaria de propor um modelo tipológico relacionado às categorias do mago, do sacerdote e do profeta como enfocados por Weber, a fim de lançar nova luz sobre o entendimento dessas igrejas brasileiras. Por fim gostaria de instigar a submissão desses três tipos à crítica baseada na noção de princípio protestante cunhada por Paul Tillich.
Sobre o protestantismo mágico
Para Weber, forças mágicas são aquelas que podem ser forçadas a servir às necessidades humanas através do uso correto de certas fórmulas[1]. O mago, portanto, é aquele que detém o poder especial (o mana¸ o maga, ou como prefere Weber, o carisma) de forçar os deuses a atenderem suas necessidades. O mago, semelhantemente ao profeta, age em função de um carisma pessoal, a despeito de qualquer ligação institucional. Dessa maneira, o fracasso do mago seria um indicativo do fim do seu carisma, o que legitimaria o abandono por parte de seus seguidores.
Fundamentados nessa definição da atividade mágica, estaríamos autorizados a reconhecer uma espécie de protestantismo mágico como uma das faces do “caleidoscópio protestante” (Neilton Azevedo) brasileiro? A relação da atividade mágica com as práticas neopentecostais se faz por uma associação quase involuntária. A teologia e a prática religiosa que derivam do neopentecostalismo se afinam muito com a definição de magia em Weber.
O neopentecostalismo, sobretudo este representado pela Igreja Universal, parece ter consagrado uma casta eclesial – obreiros, pastores, bispos, apóstolos e os papas não-confessos – a quem cabe as mesmas atribuições do mago de Weber. Mais do que isso, funda-se na convicção de que a existência de Deus tem exclusiva relação com as necessidades humanas, e que tais necessidades devem ser atendidas quando o mecanismo simbólico-religioso é manipulado dentro das normas estabelecidas por aquela mesma casta. Dentro dessas práticas mágicas, o único elemento destoante da definição de Weber é o pertencimento a uma corporação institucional.
Mas uma advertência se faz necessária. Dizer que o protestantismo mágico mostra sua face explicitamente no neopentecostalismo, não é o mesmo que dizer que eles se confundem. Depois da irrupção do fenômeno neopentecostal todas as outras faces protestantes foram marcadas por ele no seu discurso e prática. Dessa forma, há muito desse protestantismo mágico também entre históricos, tradicionais e pentecostais.
Sobre o protestantismo sacerdotal
Conforme Weber, por sua vez, o que caracteriza a função sacerdotal e a distingue da atividade mágica é, em primeiro lugar, o pertencimento a uma agência coorporativa religiosa por parte do sacerdote, e o seu compromisso irrestrito com a mesma[2]. Em outras palavras, o carisma do sacerdote não lhe pertence, mas pertence à instituição que lhe abriga e que inclusive lhe remunera. Ele é um porta-voz de seus valores e de sua visão de mundo. É um dos seus instrumentos concreção e uma das forças operantes na perpetuação de seus valores.
Destarte, é legítimo identificar (como outros já fizeram antes) um protestantismo sacerdotal vivo em meio às múltiplas expressões protestantes no Brasil. Em linhas gerais, se poderia identificar esse protestantismo em todos os lugares onde a preservação de tradições descontextualizadas é mais importante que os chamados do Evangelho. Ou onde a repetição acrítica do passado é um valor mais presente do que uma abertura honesta às demandas do futuro. Ou onde a repetição enfadonha de discursos, práticas, processos educativo-religiosos, organização estrutural, se petrificaram. Ou onde o medo da novidade fossilizou e anacronizou tudo. Ou onde o institucionalismo representa uma ameaça e um engaiolamento da experiência do sagrado. Ou onde o discurso (ou mesmo a ausência dele) serve para legitimar as estruturas injustas da sociedade.
Onde quer que esses elementos estejam presentes, está presente o protestantismo sacerdotal, seja entre batistas, presbiterianos, assembleianos, deuséamoreanos ou renascereanos, por exemplo.
Sobre o protestantismo profético
Weber também tentará ajustar o conceito de profecia e da atividade profética. Para ele, a profecia não se trata de um mero exercício intelectual metafísico ou de especulação teológica, como comumente se representa no próprio âmbito religioso. O critério fundamental com que ele procurará entender a atividade profética é o seu chamado ao rompimento para com o status quo[3]. Essa atividade profética, conforme nosso sociólogo, tem duas expressões práticas fundamentais: o profeta emissário e o contemplativo. No entanto, ambos criticam formas estabelecidas de convivência social e apontam para algo novo nesses mesmos termos.
Nesse sentido, seria possível falar também na existência de um protestantismo profético como parte orgânica dos protestantismos brasileiros? Eu penso que sim! É bom nunca esquecermos o fato de que em todas as manifestações culturais os grupos de tendências mais progressistas são sempre menos propagandistas que os demais. Em termos de ocupação de espaços midiáticos no Brasil então, esses grupos estão cem por cento ausentes. Todavia, existem!
Entre os protestantes brasileiros, as iniciativas identificadas com uma tendência profética existem e se articulam na medida de suas possibilidades. Semelhantemente aos demais tipos – mágico e sacerdotal – não podemos ser seduzidos pela tentação de enquadrarmos estritamente a presença desse protestantismo profético aqui ou acolá. Ele se move em muitas partes, muitas vezes como expressão de gente sufocada, amante de sua tradição, e por isso mesmo desejosa de vê-la exalando a pertinência evangélica à qual cada geração de cristãos é convocada.
Concluindo provisoriamente
Pode parecer esquisito, mas a própria expressão protestantismo profético deveria soar nos nossos ouvidos como um pleonasmo. O ideal era que ao dizermos “protestantismo” estivesse implícito na nossa fala o termo “profético”. Mas infelizmente não tem sido assim.
Digo isso à luz de uma das expressões mais caras da teologia de Paul Tillich, que é o princípio protestante. Conforme este teólogo, o princípio protestante é a força geradora da Reforma, e se caracteriza por uma crítica aguda a todas as formas de absolutismos e de reivindicações de incondicionalidade por parte de ideologias condicionadas. Trata-se da convicção de que “Deus é um somente” (Dt 6,4), e que tudo abaixo dele é relativo, condicional e sujeito à crítica (incluindo as próprias igrejas protestantes). Então, não é equivocado dizer que o princípio protestante é o espírito subversivo que julga e corrige todo absolutismo e opressão: políticos, científicos, sócio-econômicos, religiosos, e etc.
Algumas perguntas finais seriam estas: Em que medida o princípio protestante ainda reside no protestantismo brasileiro? Em que aspectos o princípio protestante critica e reformula os protestantismosmágico e sacerdotal? Em que medida esse princípio protestante migrou para outros movimentos não-religiosos da sociedade e neles atualiza as convocações evangélicas relativas à humanização dos homens e mulheres desse mundo?
Forte abraço!
[1]“Magical forces can be ‘forced’ to serve humam needs by the magician’s correct use of formulae” (WEBER, Max. The sociology of religion, p. 30).
[2]“It is the hierarchical office that confers legitimate authority upon the priest as a member of a corporate enterprise of salvation” (op. cit., p. 47).
[3]“Prophecy is by no means an intellectual exercise in metaphysical or theological speculation […]. But the essencial criterion of prophecy is wheter or not the message is a call to break with an estabelish order” (op. cit., p. 35).
“Porque quem está em Cristo é uma nova criação, as coisas velhas passaram e agora tudo se fez novo” (2Co 5,17)
Como assim?
Em que sentido devemos entender a declaração de Paulo acima citada?
Talvez (frise-se esse advérbio: talvez) estejamos mais seguros quanto ao que significa esse estar em Cristo. Mas, e quanto à assertiva de que estando nele somos nova criação? E quanto à assertiva de que as coisas velhas ficaram para trás? Substancialmente, o que ficou para trás? Quais eram aquelas coisas velhas às quais o estar em Cristo proporcionou a superação? E ainda, onde estão todas as coisas novas? Onde está essa novidade oni-abrangente produzida por esse estar em Cristo?
Já as traduções mais arraigadas entre nós ampliam a dificuldade no entendimento dessa declaração. Por razões que somente João Ferreira de Almeida poderia nos dar a saber, preferiu traduzir kainê ktísis – literalmente nova criação – por nova criatura. Desde então, entendemos que Paulo está fazendo referência à estrita experiência subjetiva, intimista, personalista e individualista da conversão. Kainê, isto é, o novo que advém do estar em Cristo, seria uma dádiva estritamente antropológica. E o idoú gégonen kainá – tudo se fez novo – estaria referenciado exclusivamente aos impactos dessa novidade na dimensão íntima dos discípulos e discípulas.
Dessa forma, as expressões gregas kainê ktísis e idoú gégonen kainá estão, entre nós, reduzidas equivocadamente à experiência humana privatizada. Todavia, o que aquelas expressões denotam é a novidade ampla, cósmica e oni-abrangente que advém do estar em Cristo.Nele, tudo é novo. Portanto, ainda que a experiência da conversão tenha implicações profundas sobre a dimensão subjetiva, intimista, personalista e individual (metanóia) de cada um de nós, as expressões nova criação e tudo se fez novo não se exaurem nisso. Em outras palavras: kainê ktísis e idoú gégonen kainá não são sinônimos de metanóia.
Assim sendo, voltamos às nossas indagações iniciais, sobretudo a estas: Onde estão todas as coisas novas? Onde está essa novidade oni-abrangente produzida por esse estar em Cristo? Onde está essa nova criação?
Num primeiro olhar, não há qualquer mudança substancial no mundo e na criação, ainda que nossa conversão tenha sido a mais honesta entre todas. Pelo contrário, o que nos afronta é a terrível realidade de que o mundo permanece velho, e que suas estruturas velhas e caducas desafiam a todo e qualquer projeto focado em novidades. Nos convertemos aos montes enquanto o mundo somente vai ratificando suas velhas estruturas. Até aqui, a caducidade desse mundo vai derrubando um projeto utópico depois do outro.
E nenhum de nós deveria recorrer às revoluções científicas, tecnológicas e globalizantes da atualidade para supor que estamos num mundo novo, diferente, inédito. Não! A novidade de tais fenômenos consiste somente na novidade dos meios, dos métodos, dos caminhos, dos instrumentos cuja finalidade é repetir, naturalizar e de certa forma consagrar as antigas estruturas que compõem este mundo. Nesse sentido, o Qoelet (Eclesiastes) tem toda razão: “nada há de novidade debaixo do sol”.
Mas a quais estruturas estou me referindo quando falo da caducidade desse mundo?
Estou fazendo referência, sobretudo, às estruturas de dominação e suas múltiplas e variadas modalidades. A novidade dos métodos e das revoluções científica, tecnológica e globalizante tem servido somente à construção de mecanismos novos para perpetuar estruturas antigas. Essas estruturas são aquelas que se refletem na disparidade de classes, de gênero, de cultura, de crença, e etc... Ou seja, não há nenhuma novidade em nosso mundo, a não ser aquelas que ajudam a corroborar as repetições das injustiças de sempre.
Um exemplo.
Zygmunt Bauman, em O mal-estar na pós-modernidade, disserta acerca da necessidade perene que cada sociedade tem de identificar e eliminar os elementos considerados “impuros”. [Se observarmos bem, essa é uma tendência nascida na dinâmica religiosa. Toda tradição religiosa parece ter sua “teologia da impureza” e todas elas procuram definir os cânones de regulamentação e de diferenciação entre puros e impuros. Nosso mundo, emancipado da hegemonia religiosa, parece ter assimilado tal tendência.] Bauman afirmaria que nos tempos modernos, os revolucionários – isto é, todos aqueles e aquelas envolvidos na ruptura com os padrões estabelecidos socialmente – foram os impuros da vez, suscetíveis à proscrição. Em tempos pós-modernos (o nosso tempo), os impuros são todos aqueles e aquelas que não podem atender às demandas consumistas do mercado. Devem, portanto, ser semelhantemente proscritos da sociedade. Quando muito, esses novos impuros são cooptados à dinâmica do mercado como combustível humano que alimenta os meios de produção.
Moral da história: não há novidade alguma no mundo acerca da qual devamos celebrar.
Mas temos um paradoxo a enfrentar. É no meio desse mundo velho que recebemos o impacto da declaração de que em Cristo somos nova criação, uma vez que tudo se fez novo. Mas, outra vez, onde estaria essa nova criação e essa novidade oni-abrangente?
Iniciemos o enfrentamento desse paradoxo com uma pergunta: Existe um mundo objetivo radicalmente separado da relação com o sujeito que o percebe? Desde de Martim Buber já sabemos que não. Toda relação humana com o mundo é mediada pela dualidade sujeito-objeto. Todo conhecimento humano se faz à base dessa relação recíproca entre sujeito cognoscente e objeto cognoscivo, de tal maneira que não se pode afirmar a existência objetiva de um a despeito da existência do outro. O ato de conhecimento implica uma transformação tanto do mundo quanto do sujeito que busca conhecê-lo reciprocamente. Meu mundo tem necessariamente a minha marca, e a minha marca tem necessariamente o legado do meu mundo.
Dessa maneira, o estar em Cristo, que primeiro é uma experiência de novidade íntima e pessoal, só chega à plenitude se reconstrói o mundo velho e caduco à luz dessa mesma experiência. Em outras palavras, o estar em Cristo promoverá para o indivíduo a construção de um novo mundo, mesmo na presença das velhas estruturas de dominação e opressão.
Porque um é o mundo velho para aqueles que com ele convivem com uma atitude passiva e resignada. Outro é o mundo velho para aqueles que com ele convivem de forma ativa-transformadora. Embora as estruturas velhas sejam as mesmas, trata-se de dois mundos diferentes. No primeiro caso, a velhice e a caducidade de tais estruturas é vista como necessária, natural e ontológica – o que conduz à resignação. No segundo, a velhice e a caducidade de tais estruturas é vista como contingente, artificial e transitória – o que conduz à ação transformadora. No fundo, são mundos distintos. É nesse sentido que o estar em Cristo inaugura a nova criação.
É suspeita, portanto, toda conversão pessoal que não se traduz na conversão do mundo da pessoa. É suspeita toda conversão pessoal que não põe homens e mulheres em marcha, como brotos que antecipam a novidade que se instalará sobre toda a humanidade.
Por fim, a declaração paulina, ao mesmo tempo em que ratifica um paradoxo, também exorciza uma contradição. Primeiro, ratifica o paradoxo de que o estar em Cristo inaugura a nova criação ainda no seio de nosso mundo velho e caduco de injustiças e opressões. Depois, exorciza a contradição de se estar em Cristo e conviver passiva e resignadamente com este mundo velho, ímpio, feio e injusto. Com honestidade, eu jamais me sentiria atraído por um Deus interessado somente na mudança dos valores morais e religiosos de alguns indivíduos, e desinteressado da mudança desse mundo velho e injusto.
Formação teológica e comunidades eclesiais reflexivas
Todos/as aqueles/as que ingressarem na gestão e/ou no magistério teológico vão se defrontar com uma incômoda situação: um grande contingente de alunos e alunas nesse universo enxerga sua formação como um mero trampolim para a ordenação ao pastorado. É óbvio que cada pessoa tem o direito de autosignificar suas atitudes como bem quiser. No entanto, também é óbvio que ao proceder daquela forma, o/a estudante de teologia opera uma triste minimização no próprio conhecimento teológico do qual participa.
Tenho dito freqüentemente que o/a estudante de teologia talvez seja o/a único acadêmico/a que, concluídos os anos de sua formação, se desfaz de tudo aquilo com o que se ocupou em termos intelectuais. Se o que temos chamado de formação continuada tem sido um dilema em termos amplos no universo profissional, em termos estritamente teológicos a formação continuada sequer chega a ser uma suspeita para muitos daqueles/as que agora se ocupam da chefia de suas comunidades. Obviamente corro o risco inerente a toda generalização. Portanto, falo em termos de média.
Logo, havendo alguma pergunta a ser feita com santa honestidade pelo/a estudante de teologia, ela deve ser esta: o que farei com o amontoado de discussões a que fui submetido/a nesses anos? Porque se não nos expusermos a tal questionamento, nós mesmos reificaremos as representações às quais o conhecimento teológico é submetido, por exemplo, nas universidades.
Quem transita no ambiente universitário conhece muito bem tais representações. Todas elas confinam o conhecimento teológico no anacronismo e na impertinência, como um saber tipicamente medieval. Falar em teologia na universidade é o mesmo que falar em alquimia ou em astrologia. Os próprios estudantes de teologia, portanto, reificam essas representações quando fazem de sua graduação um mero trampolim para o pastorado. Quando descartam o conteúdo intelectual das discussões, das leituras e da produção acadêmica ao ingressarem no pastorado, eles/as mesmos/as endossam a percepção de que a teologia é imprestável e nada tem a contribuir no plano das questões humanas de nosso tempo.
Nesse tocante, já ultrapassamos o momento de romper com determinados preconceitos. É correto dizer que as representações que se dão no ambiente universitário relacionadas ao conhecimento teológico sejam preconceituosas. Mas devemos admitir que boa parte da atitude dos/as teólogos/as em descartar conhecimento burilado na graduação também é fruto de certos preconceitos. Quais seriam esses preconceitos?
Talvez o principal deles seja o preconceito muito arraigado de que a comunidade não esteja em condições de refletir sua fé teologicamente. Ou de que essa não é uma necessidade da comunidade. A meu ver, estamos aqui diante de dois fatos terríveis. Primeiro, eu diria que é terrivelmente paradoxal o fato de que a maioria de nossas comunidades não reflita sua fé teologicamente. Segundo, é mais terrível ainda é o fato de que a reflexão dada nos centros de formação teológica seja antagônica ao pensamento das comunidades. Infelizmente, toda essa atitude ocorre numa atmosfera de profundos preconceitos mútuos historicamente constituídos, contra os quais é mister rebelar-nos, caso essa coisa toda faça sentido de fato para nós.
Eu gostaria de suscitar brevemente aquilo que considero serem os pontos fulcrais a ser revolvidos tanto na dinâmica dos seminários quanto das comunidades.
Toda representação social é coletivamente construída. Este também é o caso do seminário como trampolim. Enquanto tal, esta é uma representação coletiva e socialmente construída no interior das próprias igrejas. As próprias igrejas são responsáveis pela infeliz representação do seminário como simples casa formadora do quadro operário-religioso da sociedade. O que quero dizer é que a “casa dos profetas” não é o seminário, mas a própria comunidade em seu contato com o mundo.
Se por um lado o trabalho intelectual é uma poderosa arma de que dispõe o profeta, por outro lado ele não é a fonte de onde deriva sua atividade. Nenhum autêntico profeta se faz nos bancos dos seminários. Essa atividade nasce do contato com o mundo. Isto é, todo profeta deve ser forjado em contato concreto com a vida, sobretudo com suas contradições e com suas negações. O profeta nasce do contato com a opressão, com a espoliação, com o cerceamento do direito de ser gente imposto por uns homens a outros. O útero de onde se fecunda todo profeta é o próprio mundo e suas contradições.
Mas nem por isso o seminário deixa de ser pertinente. Enquanto instituição identificada com os rigores acadêmicos e intelectuais, seu papel é oferecer as ferramentas fundamentais com as quais o profeta pode fazer uma leitura adequada da situação contemporânea. Ninguém deveria se matricular no seminário com a expectativa de aprender a teologizar, como se não o fizesse antes na igreja. Antes, tal expectativa deveria consistir em se munir de ferramentas acadêmicas com as quais se reflete tanto a fé em si mesma quanto a fé em sua relação com o mundo contemporâneo.
Mas se o seminário está firmado como ambiente de reflexão da fé, a comunidade eclesial também tem o dever de está-lo, na medida de suas possibilidades. Karl Barth dizia que uma comunidade autenticamente interessada no discernimento da verdade do Evangelho deve ser necessariamente uma comunidade interessada em teologia. A teologia que se praticaria aí cumpriria a função de sentinela. Vigiaria a comunidade em relação à sua aproximação à verdade do Evangelho. Porque o apego cego aos tradicionalismos e o ativismo alienante são todos elementos corriqueiros da vida eclesial que as distanciam sempre mais da verdade do Evangelho. Portanto, uma comunidade evangelicamente preocupada será não somente missionária e celebrante, mas também será forçosamente pensante e teologante.
Em palavras muito simples: lugar de se fazer teologia é na igreja. O seminário é parceiro desse ofício.
Eu sugeriria aos/às teólogos/as que ainda insistem no preconceito de que o povo não saber pensar e que a comunidade não tem necessidade de reflexão, que atualizassem sua leitura da sociedade. Foi-se o tempo em que as verdades pastorais eram aceitas passiva e incontestavelmente. A superafirmação da subjetividade, enquanto marca de nosso tempo, tem como um de seus produtos um super-relativismo que nenhum de nós, pastores/as, conseguirá domar. Foi-se o tempo em que uma tradição confessional determinava todo o perfil de um cristão. Cada vez mais a espiritualidade dos cristãos é produto sínteses pessoais forjadas à base de um superecletismo colorido e multifacetado confessionalmente.
Eu sugeriria aos/as teólogos/as que declinassem de pensar pela comunidade, e passassem a pensar com a comunidade. Porque esse pensar pela comunidade, notemos, se faz sempre à base de repetições estéreis, enfadonhas, pouco criativas e, o que é pior, mantenedoras de certas relações de poder às quais Jesus de Nazaré se opôs veementemente. Não seja assim entre vós, ele nos diria.
Que temores de fato guardamos nos nossos corações pastorais? Tememos de fato que o pensamento teológico “desvirtue” o povo de sua fé simples, como se costuma dizer? Ou tememos que uma comunidade pensante, teologante e reflexiva se encontre com certas emancipações ameaçadoras para o nosso status? Em verdade, o que mais nos assombra: um povo “desvirtuado” ou um povo “adulto”?
Foi no domingo passado, enquanto eu aguardava meus amigos Marcos Monteiro e o casal Jeyson e Rúbia para o almoço em minha casa, que me surgiu a convocação súbita para realizar um exorcismo. Alguém da comunidade estaria supostamente possesso pelo demônio e a família contava com meu auxílio na resolução do caso. No interior da residência desta família cheguei a brincar com todos ao dizer que aquele demônio tinha um nome bem conhecido: 51 Pirassununga. E meu trabalho de exorcista se resumiu a convencer a “vítima” a que tomasse uma ducha de água fria, um bom gole de café forte e a que se entregasse a algumas horas de sono. Deu certo! Sem resistências, o “demônio” bateu em retirada!
Eu acredito que todo pastor e toda pastora verdadeiramente honestos já se defrontaram com as questões: Como enfrentar problemas e situações tipicamente contemporâneas com fórmulas forjadas há dois mil anos atrás? Como atualizar a experiência cristã em nosso mundo (que é fundado sob bases novas) com uma visão de mundo do primeiro século da Era Cristã? Como conciliar a visão de mundo de ontem na qual foi burilada a fé cristã e a visão de mundo de hoje onde essa fé deve se atualizar? A visão de mundo que deu origem à fé cristã deve ser transposta literalmente às gerações subseqüentes ou o Cristianismo deve ser reinventado a cada nova geração?
Essas perguntas e sua validade não são novas. O grosso da teologia católica e protestante da primeira metade do século 20 nada mais é que uma tentativa de responder satisfatoriamente a esses questionamentos. Os diversos e diferentes constructos teóricos que constituem essas teologias são como um círculo concêntrico girando em torno desta responsabilidade: ser cristão em nosso tempo.
Embora não tenha sido o primeiro filósofo a tratar do tema da impertinência das crenças religiosas em nosso tempo, e nem mesmo o primeiro a escrever sobre isso, é certo que Augusto Comte comparece como a figura responsável por popularizar a convicção de que a percepção religiosa do mundo é anacrônica em relação ao homem moderno. Foi Comte quem popularizou a noção de que a visão de mundo religiosa pertence aos estágios primitivos do pensamento humano, tendo sido superada pela mentalidade metafísico/filosófica, que, por sua vez, deveria ser superada pela mentalidade científico/positivista, da qual Comte era o próprio sacerdote e arauto. Professar uma percepção dos fenômenos naturais e sociais a partir de convicções religiosas, a seu ver, era o mesmo que andar milênios para trás em termos cognitivos.
Se eu não estiver equivocado, esse posicionamento teórico/prático baseado em Comte se instaurou meio como uma coqueluche sobretudo no século XIX. Digo isso porque, cada um à sua maneira, foi exatamente essa a posição de Feuerbach, Nietzsche, Marx e Freud, por exemplo. Cada um em sua perspectiva considerou a visão religiosa do mundo como resquício de uma era primitiva, cuja superação deveria ser um imperativo a bem do desenvolvimento cognitivo da civilização.
Muito próximo dessa atitude está a posição de Leon Trotsky. Há uma passagem dele que poderia ser tranquilamente atribuída a qualquer dos teóricos que exemplifiquei acima. Dizia Trotsky:
Não é apenas nas casas dos camponeses, mas também nos arranha-céus das cidades, que o século XIII vive ao lado do XX. Cem milhões de pessoas usam a eletricidade e ainda acreditam nos poderes mágicos de sinais e exorcismos [...]. As estrelas de cinemas procuram médiuns. Os aviadores que pilotam mecanismos milagrosos criados pelo gênio do homem usam amuletos em seus suéteres. Como são inesgotáveis em suas reservas de trevas, ignorância e selvageria!
Para usar uma expressão de Edgar Morin, eu diria que avaliações como as de Trotsky são o produto de uma inteligência cega. Cega porque unilateral, e unilateral porque não consegue captar o fenômeno em sua complexidade, para usar outra expressão de Morin. Vou me justificar mais abaixo.
Por outro lado, sou muito simpático à postura de Antonio Gramsci.
Gramsci, que não era teólogo, mas que também produziu a maior parte de seu legado intelectual na prisão (como Paulo e Bonhoeffer), deu-nos, a meu ver, uma excelente dica para o enfrentamento dessa problemática toda. Eis o que ele diz lá nos miolos de seus Cadernos do Cárcere:
Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado freqüentemente bastante remoto e superado? Se isso ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarramente “compósitos”. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica.
Antes do surgimento de quaisquer suspeitas, esclareço que Gramsci não está fazendo referência explícita nem ao Cristianismo em particular nem à religião em geral. Sua crítica se dirige ao marxismo ortodoxo, que, a exemplo do que ainda acontece muito em nossos dias, insiste em fundamentar sua práxis revolucionária a partir de uma visão ideológica burilada (muito genialmente, diga-se de passagem) no século XIX, sem se dar conta dos múltiplos matizes de nosso tempo.
Mas se o pastor e a pastora verdadeiramente honestos devem se defrontar com as questões acima mencionadas, o filósofo e o cientista social (e em certa medida também o teólogo) honesto e inteligente deve também se defrontar com outras questões do tipo: Quais os fundamentos psicológicos da recorrência da visão religiosa do mundo ainda hoje? Que relações existem entre a insistência da visão religiosa do mundo e as condições sociais produzidas pelo próprio projeto da Modernidade? Em que medida a Modernidade produziu, ela mesma, as condições para uma nova irrupção do sagrado? Ao se colocar essas questões, o filósofo e o cientista social se inserem numa perspectiva ampla e complexa, mais apta a captar os porquês dos fenômenos sociais do que as perspectivas unilaterais próprias do século XIX.
Recordo-me com certo constrangimento o sufoco que passei durante uma aula de Filosofia da Ciência que ministrei para pastores, aqui em Maceió. Assistíamos ao filme Ponto de Mutação, baseado no livro do Fritjof Capra. Ao fim, meu amigo Neilton Azevedo disse muito acertadamente: “Enquanto filósofos, cientistas e poetas discutem a inviabilidade da visão de mundo fundada no século XVII por Descartes e levada a cabo por Newton [visão reducionista-mecanicista], nós sequer nos damos conta da caducidade de uma visão de mundo fundada no século I da Era Cristã”.
Julgo sumamente difícil chegarmos a um consenso desses na igreja. Muito dificilmente as pessoas se darão conta de que a Bíblia, embora tenha validade e pertinência universal nos seus propósitos, é, em termos literários, produto de uma época específica, marcada por uma visão de mundo específica. Contudo, tendo sido escrita nesse contexto específico de dois mil atrás (que é diferente do nosso), ela me suscita ainda assim um projeto de vida aplicável nesse novo mundo: um projeto de amor e de afirmação incondicional da vida.
A própria Bíblia é um livro que dá testemunho de visões de mundo diferentes, que vão sendo vencidas sucessivamente à base dos processos sociais corriqueiros, sobretudo a partir do intenso intercâmbio cultural experienciado por Israel. Por exemplo, o próprio imaginário religioso daquele povo é descrito de forma múltipla em sua caminhada histórica. Nesse imaginário, a própria percepção de “quem é Deus” é múltipla, fruto de uma caminhada histórica rica e diversificada. Quem reuniu o Canon Escriturístico em sua versão definitiva sequer sentiu-se constrangido com o fato de que ali se fala de um Deus que manda matar os inimigos e de um Deus que manda amar incondicionalmente aos inimigos como sendo o mesmo Deus. Duvido que isso tenha sido fruto de distração!
Tenho certeza de que ao tratar meu “endemoniado” a partir de categorias desse tempo, tratei-o também biblicamente. Se a visão de mundo contemporânea – seus avanços científicos, suas discussões filosóficas, os resultados das ciências humanas, etc. – forem utilizados na promoção da vida e dos valores mais prementes dos seres humanos, não tenhamos dúvida: nesse momento fizemos a profunda experiência de termos sido homens e mulheres desse tempo e homens e mulheres bíblicos concomitantemente. Porque a Bíblia – embora seja produto literário de um tempo – é convite e proposta existencial para todos os tempos!
Discipulado e espiritualidade a partir de Lucas 5,1-11
Introdução
Os Evangelhos canônicos podem ser vistos sob três pontos de vista distintos. Há quem os veja como produto artificial da fé dos primeiros crentes. Geralmente essa é a posição de uma fé mais intelectualizada, alimentada pelos resultados da exegese. Gente com iniciação teológica formal. Na contramão dessa posição, há aqueles para os quais os Evangelhos representam ipso facto a caminhada histórica de Jesus de Nazaré. Isto é, para esses, aqueles relatos correspondem aos fatos concretos de um determinado período de sua história. É o povo de fé simples, sem iniciação formal em teologia e que mal suspeita da existência de algo chamado exegese.
Numa posição que se poderia chamar de intermediária se situam aqueles que mesclam essas percepções e dizem que os evangelistas promoveram uma amálgama de elementos históricos com elementos não-históricos, frutos da fé. O símbolo dessa amálgama seria o próprio nome Jesus Cristo: Jesus representando os elementos históricos; Cristo representando os construtos não-históricos da fé.
Sem penetrar mais nessa discussão um tanto estéril, o que não se pode negar, qualquer que seja a posição assumida aí, é que os Evangelhos sejam produto da fascinação exercida por Jesus de Nazaré nas mentes das comunidades surgidas em torno do seu ideal. Em paralelo aos elementos da fé, da esperança messiânica, e mesmo dos ideais nacionalistas de Israel como motivadores para a redação desses escritos, os Evangelhos surgem também sob a força da fascinação provocada por Jesus de Nazaré naquelas testemunhas.
A perícope de Lucas 5,1-11 que se irá observar aqui, além de ser juntamente com os demais relatos evangélicos, produto da fascinação exercida por Jesus de Nazaré, constitui-se como relato mínimo dos porquês e do como esse poder fascinante foi exercido pelo jovem nazareno. A nosso ver, ela sintetiza elementos que permanecem eficazes como fatores fascinantes a fim de informar e alimentar a caminhada das comunidades e dos homens e mulheres que insistem na senda do discipulado ainda hoje.
Jesus de Nazaré permanece fascinante. Seu legado, seu sonho, sua companhia revivida e atualizada na comunhão dos discípulos de hoje, permanecem fascinantes. Por outro lado, nenhum de nós pode negar que as instituições de todo tipo, mormente as religiosas, parecem reservar uma pulsão ontológica para a repetição acrítica como preservação da tradição. Tal impulso acaba por embotar a caminhada comunitária e pessoal com o enfado inerente a toda ausência de novidade e de criatividade. A rotinização da fé é uma maldição para a fé. Talvez o fascínio que emana de Jesus de Nazaré ajude a todos e todas a recuperarem o fulgor de um seguimento vivo, alegre, celebrante e espontâneo. Se não for atravessado pela fascinação, o discipulado poderá ser expressão de opressão existencial, oculta sob as formas das obrigações religiosas e institucionais.
Doravante, chamaremos de fascínio totalizante a esse poder que é concomitantemente destrutivo e construtivo. Porque somente à luz dessa idéia é que se pode compreender que Pedro, Tiago e João tenham “deixado tudo” (v. 11) a fim de que o discipulado lhe devorasse as vidas. O fascínio totalizante é destrutivo porque faz ruir antigas visões de mundo, junto com toda esperança que delas deriva. Mas é também construtivo, visto que no lugar disso edifica a esperança que se funda no sonho do Reino de Deus e em tudo que lhe é peculiar.
1. O fascínio totalizante nasce de uma palavra cheia de vida e de amor (v. 1-3)
A palavra é fio condutor das relações humanas. Ao mesmo tempo em que é veículo de significados, a palavra é a própria forma concreta com que o significado existe. De outra forma, nenhum significado é imparcial e totalmente estéril do ponto de vista afetivo. A palavra, qualquer que seja o contexto onde se dê, comunica e encarna afetos, para além do seu significado. Se digo “casa”, não comunico apenas um significado que remeterá às imagens correlatas com as quais identificamos esse ente. Ao dizer “casa”, além disso, evoco a afetividade apegada à imagem que a casa comporta para quem me ouve: afago, proteção, descanso, miséria, tormento, humilhação, e etc.
Fundamentalmente a palavra e o discurso podem se articular sob duas expressões: uma dirigida pelo caráter conceitual/digital, e outra dirigida pelo caráter imagético/icônico. Essas expressões da palavra e do discurso não são antagônicas. São derivações inerentes à própria comunicação humana. As culturas orientais, tais como a própria cultura judaica, sempre foram notoriamente caracterizadas pela articulação imagético/icônica da palavra. Por exemplo, se desejo dizer quem é Deus, evoco uma imagem que melhor exprima minha percepção: Deus é o Leão da Tribo de Judá. Já a articulação conceitual/digital da palavra e do discurso, embora tenha fortes raízes entre os antigos gregos, é um dos desenvolvimentos da modernidade e particularmente do projeto positivista no que diz respeito à descrição do mundo. Por exemplo, se desejo dizer quem é Deus, faço-o por meio de conceitos objetivos, neutros e frios: Deus é o fundamento do Ser.
Logicamente a linguagem imagético/icônica comporta maior possibilidade de afetividade em relação à linguagem conceitual/digital. Dificilmente nos emocionamos perante a leitura de uma dissertação científica. As teses, dissertações e monografias, ao custo da eficácia, devem pagar o preço da frieza e da imparcialidade afetiva. Por outro lado, é comum que nos emocionemos perante um breve trecho de poesia, porque perpassado por imagens que fazem eco no interior de nosso ser. Acessam mais facilmente as “zonas quentes” de nossa personalidade.
Jesus de Nazaré, fiel à cultura do entorno, foi prolixo no uso de uma linguagem imagético/icônica cheia de vida e amor. No lago de Genesaré, no barco emprestado de Pedro (v. 3), exerce um dos papéis mais recorrentes de sua atividade: o de didáskalos – mestre das multidões.
A sua palavra carregada de vida e amor, ou a sua palavra que deriva de uma vida de amor, é uma palavra fascinante. É palavra fascinante capaz de aguçar o senso crítico perante outras palavras, pois é palavra dita “com autoridade”, a despeito da palavra que diziam os teólogos (Mt 7,29). É palavra fascinante porque redescobre a santidade do cotidiano do povo pobre. À luz dessa palavra fascinante não é sacrílego que se compare o Reino de Deus, por exemplo, com uma mulher que perde e procura uma moeda dentro de casa (Lc 15,8-10). Fascina, portanto, porque devolve ao povo pobre uma dignidade de dimensões inauditas: Deus e seu mistério lhe são tão próximos que podem ser a eles comparados. É palavra fascinante porque rejeita o logocentrismo e a verbolatria, vícios da religião organizada. O mistério de Deus e de sua vontade – para além do que informa a Lei – reverberam nas imagens proporcionadas pela natureza: entre as aves do céu e os lírios dos campos, por exemplo (Mt 6,25-33).
Geralmente, o caminho da religião organizada faz com que a vida sirva à palavra. Também no barco de Pedro se presentifica a inversão desse vício. A palavra de Jesus de Nazaré é fascinante porque é palavra que serve à vida. Daí deriva a liberdade interpretativa de Jesus perante a Lei: “ouvistes o que foi dito aos antigos, mas eu vos digo...”. Se o povo se aglomera junto ao lago de Genesaré (e em muitos outros lugares) para ouvir e dar assentimento a essa palavra fascinante que serve à vida, é porque já doíam as algemas de uma vida subserviente à palavra da religião.Portanto, essa palavra é fascinante porque é palavra libertadora e emancipadora.
Por todos esses motivos a palavra e o ensino de Jesus de Nazaré são portadores do fascínio totalizante. É ela que, em primeiro lugar, fundamenta o “deixaram tudo” de Pedro, Tiago e João. É essa palavra, em primeiro lugar, que veicula e encarna o fascínio totalizante de Jesus de Nazaré.
2. O fascínio totalizante cresce em meio ao milagre (v. 4-7)
Definitivamente eu não desejaria me envolver numa discussão acerca da legitimidade dos milagres descritos nos Evangelhos. Sim, é verdade que a sociedade na qual viveu Jesus de Nazaré era uma “sociedade milagreira”, como afirmava José Comblin. Se tomarmos a mentalidade de nosso tempo como referência, também é correto dizer com Bultmann que aqueles dias eram caracterizados pela hegemonia de uma visão pré-cientifica do mundo, onde os relatos de milagres e intervenções divinas faziam parte do cotidiano das pessoas.
Não obstante, nenhuma dessas opiniões é suficiente para obstaculizar a possibilidade do milagre. Mais ainda: a fé em Deus traz a possibilidade do milagre na sua raiz. Confessar a fé em Deus é, desde já, confessar que esse mundo está aberto à transcendência. Portanto, é contraditório confessar a fé em Deus e obstaculizar definitivamente a possibilidade do milagre.
Sendo assim, o que nos importa aqui não é tanto a legitimação da historicidade do fato. Nem os autores dessas narrativas se esforçaram para isso. Simplesmente narraram! A evidência dos fatos repousa sobre a própria força da narrativa. Então, o que nos importa aqui é o sentido que a narrativa evoca, e esse sentido é: o milagre reforça o fascínio exercido pela palavra dita por Jesus no barco!
Mas por que o milagre fascina? O que justifica dizer que o milagre também veicula um fascínio totalizante capaz de fazer aqueles pescadores “deixarem tudo”?
Uma resposta rápida seria a de que o milagre fascina por seu poder visual. É verdade! Eu também me fascinaria diante dos peixes transbordando de uma hora para outra no barco depois de uma longa noite de trabalho debalde no lago de Genesaré (v. 6-7). Eu babaria perante uma mão atrofiada que se recompõe à sua postura normal num segundo. Eu não saberia o que dizer perante alguém que diante de mim caminha sobre as águas. Eu permaneceria estupefato por uma semana se presenciasse a cura instantânea de um leproso, de um paralítico ou de um cego de nascença. O milagre fascina, portanto, já pelo poder visual que se diferencia de toda normalidade da vida. Mas isso não é tudo. É somente a dimensão superficial do fascínio que o milagre exerce.
Mais profundamente, o milagre fascina por sinalizar a abertura de nosso mundo ao transcendente. O milagre não é a única maneira de dizer isso, mas é uma das possibilidades. A oração, mesmo aquela não atendida, é milagre, porque se funda na mesma lógica: a de que não há obstáculos em relação à transcendência! Em linguagem bíblica, tanto o milagre quanto a oração são vaticínios de que “o véu da separação se rasgou de alto a baixo”. Por isso oro! Oro porque, conforme o milagre sinaliza, a cisão entre transcendência e imanência já não faz mais sentido.
Outra questão sobre o milagre necessita ser dita.
Tornou-se senso comum entre crentes de todas as confissões (e mesmo entre teólogos notáveis!) a idéia de que o milagre é um recurso de última instância. Em outras palavras, o lugar do milagre estaria na incapacidade humana, no extremo das suas impossibilidades. O milagre ocorreria quando já não houvesse recursos disponíveis no plano habitual das coisas. Dietrich Bonhoeffer se opunha a essa idéia ferrenhamente. Dizia ele que aí se trata de um deus ex machina, ou seja, de um “deus que sai da máquina” quando a força humana termina. Também dizia que Deus (e o milagre) deve sair dos extremos e vir para o centro da vida. O milagre, enquanto a abertura do mundo à transcendência, não se dá somente nos extremos das impossibilidades humanas, mas também se dá nos interstícios do cotidiano a fim de fascinar, de reforçar a confiança e de legitimar a parceria de Deus junto ao ser humano.
O milagre da perícope que nos ocupa ratifica essa noção. Ocorre no centro da vida, e não nos extremos das impossibilidades humanas. Embora o trabalho de toda uma noite não tivesse logrado sucesso, Pedro, Tiago e João não estavam definitivamente impossibilitados do sucesso da pescaria. O fracasso de uma noite poderia ser sucedido pelo sucesso da próxima. Não se trata, portanto, de algo “impossível” o milagre que Jesus realiza. Trata-se de algo perfeitamente “possível” e até “provável”.
É justamente por causa dessa parceria incondicional – nos possíveis e nos impossíveis da vida – que o milagre é fonte de um fascínio totalizante e arrebatador. Os discípulos “deixam tudo” justamente porque o milagre de Jesus aponta para uma inserção de Deus em todo o cotidiano, e não somente nos extremos da vida. Junto com o fascínio de uma palavra cheia de vida e amor, o milagre faz crescer esse poder arrebatador que temos adjetivado de fascínio totalizante.
3. O fascínio totalizante se consolida no seguimento e no discipulado (v. 8-11)
O seguimento e o discipulado surgem como efeitos diretos do fascínio exercido por Jesus de Nazaré por meio da palavra e do milagre.
“Deixar tudo” é uma profunda decisão existencial. É normal que “deixar tudo”, qualquer que seja o caso, seja uma atitude tomada com muita ponderação, como resultado de extensa reflexão pessoal. Mas nada disso esteve implicado no episódio, posto que não houve tempo. Então, o mais correto seria dizer que Pedro, Tiago e João foram “arrebatados” por isso que temos chamado de fascínio totalizante presente em Jesus de Nazaré.
Todavia, o texto também indica que essa não foi a reação súbita daqueles pescadores. Certamente marcados pelo imaginário religioso popular, a reação súbita é um senso de indignidade diante de alguém tão especial. Dessa forma, Pedro pede que Jesus se afaste dali (v. 8). Talvez essa atitude corrobore a suspeita posterior de Rudolf Otto, de que ninguém atravessa a experiência do sagrado sem o sentimento de estar diante de um mistério tremendo e fascinante. Ao mesmo tempo em que o sagrado atrai por meio de um fascínio peculiar, ele também repele por meio de um assombro peculiar, psicologicamente traduzido num sentimento de auto-depreciação. Também Isaías parece ter experimentado a dimensão de mistério tremendo do sagrado: “estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo impuro” (Is 6,5).
Todavia, o que recebem como resposta é algo de fato surpreendente. O fascínio antes exercido por meio da palavra e do milagre se plenifica no interesse pessoal que Jesus de Nazaré expressa por aqueles pescadores.
Mas a adesão ao discipulado e o seguimento súbito e incondicional não reservam um poder per se. Isso porque estão imbricados aí um elemento objetivo e um elemento subjetivo nesse ato. O elemento objetivo é a própria causa à qual estão sendo arrastados. É o fator externo da questão. Esse elemento é objetivo porque não procede dos próprios pescadores. Antes, está dado a eles de fora. O elemento subjetivo, por sua vez, é a possibilidade de “encontro com o sentido da existência” que se caracteriza como uma pulsão universal, embora encontre as mais diversificadas respostas. Em outras palavras, se Pedro, Tiago e João são capazes de “deixar tudo e seguir a Jesus”, é porque essa exigência de suas personalidades (a busca de sentido) foi aplacada mediante o fascínio totalizante que Jesus de Nazaré havia exercido sobre eles.
É inegável que encontrar o sentido para a existência humana é uma exigência de nossa personalidade. Mesmo o sujeito que diz “a vida não possui sentido” acabou de professar um dos possíveis sentidos para ela. Quer acreditem que o sentido da vida seja uma responsabilidade de cada pessoa (como os filósofos existencialistas), quer acreditem que o sentido da vida é objetivamente verificável em alguma religião, filosofia ou ideologia, viver em conformidade com isso é um poderoso elemento de integração da personalidade. A anomia de viver num “mundo sem sentido” ou de “perder o sentido da existência” é sempre um fator de desintegração do ego. O suicídio, em média, permanece como um ótimo exemplo disso.
O seguimento de Jesus, para além de seus aspectos objetivos, resolve um dilema subjetivo ao posicionar Pedro, Tiago e João num lugar específico no mundo: “vocês serão pescadores de homens” (v. 10). O peculiar do episódio narrado é que esses pescadores já exerciam o que hoje chamamos sociologicamente de papéis sociais. Eram pescadores. Entretanto, como podemos ver, os papéis sociais nem sempre se prestam a integrar a personalidade e aplacar a sua exigência por sentido. Se assim fosse, Pedro, Tiago e João teriam permanecido no exercício de sua atividade. Abandonaram-na porque foram expostos a um apelo maior que relativizou tudo o mais. Abandonaram-na porque foram fisgados por um fascínio incomum e extra-ordinário, porque totalizante.
Conclusão
O caminho de Jesus é uma proposta para encher a vida de encanto. É um caminho que nasce do encanto, do espanto, e de uma fascinação que chamamos de totalizante, e que se traduz numa entrega existencial capaz de “deixar tudo” a fim de segui-lo.
A maioria daqueles que entre nós abraçou o caminho de Jesus e se inscreveu na vereda do discipulado, o fez pelas diferentes vias institucionais. E eis aqui um dilema não confessado, mas presente e real. Pois o próprio Jesus de Nazaré fez seu caminho histórico desatrelado das formas institucionais da religião em seus dias. Seu movimento foi periférico, marginal, desviante e subversivo. A palavra servindo à vida, o discipulado de iguais (mulheres e homens), a intimidade não-mediada com o Abba, a legitimidade da experiência de fé dos “pagãos”, a percepção de um Deus visível no cotidiano do povo pobre, e muitos outros elementos da práxis de Jesus de Nazaré são todos exemplos claros do caráter subversivo de sua proposta.
O elemento fascinante de sua práxis compõe a arché (o princípio) do discipulado daqueles que iam abraçando seu caminho. Uma vez que nesse caminho não existem os rigores e as obrigações institucionais (lembremos, é esse o espírito que mantém viva a dinâmica institucional), o fascínio acaba sendo uma das forças que mantém viva a esperança do Reino de Deus. Nesse sentido, os Evangelhos constituem o testemunho de como Jesus de Nazaré manteve coeso por meio de atos fascinantes um grupo de homens e mulheres crentes.
Nossa confissão sincera é a de que não é nada fácil atualizar essa experiência no interior da instituição. A lógica desta é outra. Seus vícios são poderosos e seus ranços já mortificaram boa parte daquilo que deveria ser expressão espontânea de um discipulado vibrante e alegre, cheio de vida e de amor verdadeiros.
A despeito disso tudo Jesus de Nazaré e seu caminho permanecem fascinantes. Homens e mulheres, ainda que na realidade institucional de suas igrejas, podem à luz de tamanho poder encher sua espiritualidade de amor, de vida e de alegria. O fascínio totalizante mediado pela palavra e pelo milagre (entre os quais o maior de todos é o da Graça) pode infundir nova vitalidade ao caminho que abraçaram. Homens e mulheres cujos papéis sociais não satisfazem a exigência de suas personalidades por sentido, ainda podem dar nova e plena orientação às suas existências.