sexta-feira, 10 de setembro de 2010

EM NOME DE d-EU-S


Ou “Quando fé e violência são uma coisa só”

Listen when the prophet
Speaks to you
Killing in the name of God
Passion
Twisting faith into violence
In the name of God
Blurring the lines
Between virtue and sin
They can’t tell
Where God ends
And manking Begins
(In the name of God, Dream Theater)

Nos últimos dias, dois pastores batistas chamaram a atenção de muita gente, um nos Estados Unidos, e outro no Brasil. O primeiro teve a repercussão de sua fala ecoada mais intensamente na TV. O segundo, na Internet. Por si só, a repercussão de suas falas nos fala muito de nosso mundo dito pós-moderno. O que quer que pós-modernidade signifique, esse conceito deve incluir a convicção do quanto a religião continua presente como força cultural que afeta não somente a vida privada das pessoas, mas também repercute e influencia a vida pública.
Se a secularização fosse um fenômeno totalizante socialmente falando, os dois pastores mencionados não chamariam tanta atenção e nem causariam tanta preocupação. Mas num mundo onde o religioso permanece como força produtora de sentido absoluto e de conduta social, não se pode desprezar o impacto que as duas falas possam vir a causar no tecido social.
Tentando exercitar a brevidade, eu desejaria avaliar as duas falas à luz daquilo que Edgar Morin (2010) costuma chamar de “ecologia da ação”. Segundo Morin, dois princípios marcam a ecologia da ação:
(1) O fato de que toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar a um resultado contrário ao esperado;
(2) As conseqüências últimas da ação são imprevisíveis.
Outros referenciais teóricos que poderiam nos ajudar na avaliação dessas falas são a “análise do discurso” (Foucault, Heritage, Pêcheux, Bakhtin, etc.) e o “construcionismo social” (Gergen, Ibañez, Haking, Berger & Luckmann, etc.). Como se tratam de referenciais teóricos muito amplos, eu me contentaria em dizer que (mesmo correndo o risco de uma extrema simplificação) sua grande contribuição está no fato de nos ajudarem a pensar nos efeitos produzidos pela rede discursiva numa determinada sociedade. Eles nos ajudam a pensar nas táticas que transformam discursos relativos em “jogos de verdade” (Foucault, 1996). E como esses jogos de verdade contribuem na construção social da realidade.
Ambos os pastores pretendem falar em nome de Deus. Deus, conforme Paul Tillich (1993), é o nome que os seres humanos dão a tudo aquilo que os toca de forma incondicional e última. É o nome daquilo que é absoluto, estando acima de todos os valores, não determinado por condicionamentos históricos ou sociais. Portanto, existirão tantos deuses quanto a iniciativa humana desejar. Porque são muitas as criações humanas elevadas à qualidade do absoluto, do incondicional e do a-histórico.
Idéias filosóficas, dogmas religiosos, teorias científicas, projetos políticos, sistemas econômicos, são exemplos dos muitos deuses existentes entre os seres humanos. Tillich nos explica que toda vez que isso ocorre – ou seja, toda vez que uma realidade humana transitória, histórica, passageira, é elevada à categoria de ultimacidade e incondicionalidade –, cometemos idolatria. Toda vez que uma criação humana é revestida de valor absoluto e inquestionável, os seres humanos tornam-se idólatras. Não era a toa que João Calvino nos chamava a atenção para o fato de que a cabeça humana é uma fábrica de ídolos.
Nesse sentido, Jon Sobrino (1997) tem toda razão quando nos convida a tomar a idolatria a sério. Para ele, essa deveria ser a tarefa fundamental da Teologia nos dias de hoje. Mas por quê seria assim? Penso que por duas razões:
(1) A primeira vem de Nietzsche (1992), que nos dizia o seguinte: “o proprium de toda grande idolatria reside no fato de que ela apaga no ser idolatrado idiossincrasias e feições originais, feições com freqüência penosamente estranhas; ela mesma sequer as enxerga”. É verdade, o idólatra está cego para as feições monstruosas do deus a quem serve. Tal cegueira, conforme a antiga sabedoria do Salmo 115, faz com que idólatras e ídolos se assemelhem;
(2) A segunda diz respeito ao fato de que a sobrevivência do ídolo depende da negação e da morte dos infiéis, dos insubmissos, e dos arredios à sua vontade. O ídolo não pode suportar discursos opostos ao seu, pois ele é algo “absoluto”, “atemporal”, “inquestionável”, a quem as pessoas devem aderir sem contestação. A eliminação dos inimigos e o sacrifício de vidas humanas é o preço de sua sobrevivência.
Ambos os pastores falam, portanto, em nome de um ídolo a quem se assemelham. E o nome do ídolo é este: Religião. O sobrenome é este: Protestantismo.
O primeiro pastor o faz exigindo o sacrifício específico dos mulçumanos. O segundo, pelo viés da política, exigindo o sacrifício de gays, lésbicas, divorciados, e outros. O primeiro exige a pureza espiritual e étnica como vassoura para os impuros e hereges adoradores de Alá. O segundo exige a pureza política, moral e religiosa como vassoura para livres-pensadores, “petistas”, imorais e pagãos. Ora, ídolos não suportam diálogos, discussões francas de idéias, escuta dos outros. Para quê dialogar se de antemão estou convencido de que minha verdade deve ser o prumo do mundo? Por isso, onde os ídolos falam, seus porta-vozes apresentam-se como bastiões da moral, dos altos valores humanos, que necessitam da imposição como meio de efetivação.
Os discursos de ambos os pastores, observados os princípios da ecologia da ação, em lugar de promoverem a defesa da vida, espalham sementes de morte, de ressentimentos, e reforçam preconceitos já tão enraizados na sociedade. Em suas bocas, a palavra humana que deveria veicular a Palavra de Deus, torna-se a palavra do Diabo Humano que lateja em todos nós.
Ídolo e idólatras são cegos. Não vêem que naqueles em quem os discursos dos referidos pastores encontram adesão, cria-se e reforça-se uma legião de gente disposta a ir deixando o mundo cada vez mais feio. Não vêem que tais discursos formam gente que, por fidelidade ao ídolo, não percebem que a “cruzada pela vida” produz efeitos de segregação e morte.
O Dream Theater, numa de suas canções, nos convida a ouvir os profetas que falam em nome de Deus, misturando fé e violência. Mas para resistir a eles, e nunca acatar sua palavra.
Bibliografia
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita – Repensar a reforma, reformar o pensamento. 17ª edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo – Maldição do Cristianismo. São Paulo: Newton Compton, 1992
SOBRINO, Jon. Ateísmo e idolatria. In: SOARES, Afonso Maria Ligorio (org.). Juan Luis Segundo: uma teologia com sabor de vida. Tradução de Afonso Maria Ligorio, São Paulo: Paulinas, 1997
TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1993

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